20/12/12

Para já, algumas críticas construtivas

Nos textos que o João Valente Aguiar (I, II e III), o João Rodrigues e o Jorge Bateira (I e II) publicaram existe muita matéria para discussão. Vou tentar pegar aqui em alguns temas.

Em primeiro lugar, não acho que a Esquerda deva definir a sua estratégia de actuação preferencialmente, e muito menos exclusivamente, com base em argumentos económicos. Nomeadamente, defendendo que o objectivo principal de qualquer acção deva ser o aumento ou protecção do rendimento absoluto dos trabalhadores. Porque é óbvio que tal pode acontecer em simultâneo com a manutenção, ou mesmo agravamento, de situações de exploração, submissão e desigualdade. A Esquerda não deve perder de vista que os seus objectivos são a justiça na distribuição (relativa) dos recursos gerados pelo trabalho, e igualdade nas relações de trabalho e propriedade. E pugnar por eles, mesmo que isso implique uma menor produtividade do trabalho e capacidade de aquisição de bens materiais da parte dos trabalhadores. De outro modo, dificilmente poderíamos contestar o sistema Capitalista, que tem provado, ao longo da História recente, ser aquele que mais produtividade gera, em grande medida exactamente devido à exploração dos trabalhadores (que se vêm forçados a trabalhar mais do que precisariam para atingir os seus objectivos de bem-estar) e dos recursos naturais (com a consequente degradação ambiental, que afecta de modo desproporcionado os que têm menos Poder). Portanto, contestar a saída da zona euro com base (essencialmente) na eventual degradação (mesmo que duradoura) do rendimento absoluto dos trabalhadores não julgo ser o modo correcto de analisar a situação do ponto de vista da Esquerda. Aliás, não vejo como é que é possível qualquer alteração substancial no sistema sócio-económico, por exemplo através da tomada de controlo das unidades de produção pelos trabalhadores, sem que haja enormes perturbações sociais e económicas que inevitavelmente levariam à queda (potencialmente duradoura) dos rendimentos absolutos dos trabalhadores. As revoluções, a sério, não dão origem a transições suaves... Ou seja, apelar à manutenção da zona euro porque as perturbações sócio-económicas induzidas se esta desaparecesse seriam imensas não bate certo com um apelo simultâneo à tomada das unidades de produção pelos trabalhadores, que geraria potencialmente ainda mais instabilidade.

O que para mim é mais importante é discutir onde queremos chegar, e os caminhos para o fazer. Deste ponto de vista, o que me parece mais relevante nos textos que têm vindo a ser publicados no Passa Palavra, pelo João Valente Aguiar mas não só, é o alerta para o perigo da instauração dum sistema (ainda mais) autoritário do que o actual em resposta à instabilidade gerada por uma saída da zona euro. Resposta essa que poderia tornar-se permanente, porque constituiria um objectivo de certas forças a nível nacional, nomeadamente do PCP.

As posições em defesa da saída da zona euro tomadas no Ladrões de Bicicletas sofrem também, talvez ainda mais, duma focagem nos aspectos económicos da questão. E, ao contrário das análises publicadas no Passa Palavra, ignoram possíveis consequências sistémicas da saída do Estado Português da zona euro, quer ao nível das relações com a UE (da qual poderia ser obrigado a sair), quer sobre a própria estabilidade da UE e da economia mundial. Essencialmente assumem que fora de Portugal tudo se manteria igual, após a saída deste da zona euro. O uso dos exemplos da Argentina e Islândia é paradigmático nesse aspecto, pois em ambos os casos as implicações políticas e legais nas suas relações externas da desvalorização das suas moedas eram potencialmente muito menores. Estes dois exemplos são também enganadores, porque ambos os países assentam as suas exportações na exploração dos seus recursos naturais (agricultura/pecuária no caso argentino, e peixe/alumínio no caso da Islândia), ao contrário de Portugal, situação em que o preço externo da maioria dos produtos exportados pode descer mais facilmente por via da menor incorporação de produtos importados, permitindo uma mais rápida recuperação económica. No entanto, também existem análises, que mesmo tendo em conta o potencial de desestabilização sistémica, acabam por relevar-se optimistas relativamente às consequências económicas duma reconfiguração da zona euro. Outras, em sentido contrário, apontam, tal como no Passa Palavra, para o crescimento do autoritarismo em reposta à instabilidade económica e social daí resultante, apoiados no precedente histórico.

No entanto, sendo a re-emissão de moeda própria por parte do Estado Português uma via de resultados muito incertos e perigosa, com certeza, esta oferece-nos a possibilidade de evoluir para um sistema sócio-económico potencialmente mais justo e democrático. Esse potencial deriva simplesmente do facto de durante a transição para uma nova moeda abrir-se a porta para uma reconfiguração radical das relações sócio-económicas, em particular, no sentido duma maior justiça na distribuição dos recursos gerados pelo trabalho e maior igualdade nas relações de trabalho e propriedade. Nunca tais reconfigurações, mesmo que depois corrompidas (como por exemplo a revolução russa), ocorreram em situações de estabilidade social e económica. Pelo contrário, a aposta alternativa numa maior união política e fiscal, aqui defendida, exactamente porque tem o potencial para gerar uma situação de maior estabilidade sócio-económica, não me parece que ofereça perspectivas revolucionárias. Aliás, muito provavelmente acabaríamos numa situação em que mesmo reformas limitadas do sistema no sentido dos objectivos de Esquerda acima enumerados, ou seja de cariz social-democrata, se tornariam ainda mais difíceis, dado que uma maior integração política e fiscal só se fará (as classes dominantes não o permitiram de outra forma, preferindo a desintegração da UE em alternativa) no quadro duma regressão dos mecanismos de decisão democrática, nomeadamente através dum reforço muito substancial dos poderes do Banco Central Europeu.

Finalmente, nenhuma estratégia pode ignorar a situação em que se encontra o Estado Português, e evitar responder à pergunta: o que deve fazer o Estado Português perante as exigências da Troika UE-BCE-FMI? E não vale responder que não se acredita nas virtudes da existência dum Estado, nem afirmar que não lhes compete delinear políticas de governo. Porque o que tem sido efectivamente feito por aqueles que se opõem à saída do Estado Português da zona euro é exactamente opinar sobre o que deve ser a actuação do governo do Estado Português. Se o fazem sobre uma dada questão que se coloca a esse governo, então não será um problema de princípio que fará com que não possam abordar qualquer outra questão que se coloque ao mesmo governo. Mas, no Passa Palavra, tal questão tem sido sistematicamente ignorada. E isso, obviamente, só enfraquece a coerência das suas posições, em particular porque sugere a anuência táctica perante as exigências da Troika, dada a muito diminuta improbabilidade de sobrevivência da estratégia que preconizam (manter o Estado Português na zona euro) em caso contrário.

Serão outras vias possíveis? Voltarei ao assunto na próxima semana.

10 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,
vou, com certeza, ter de voltar ao assunto deste post, tanto mais que o apresentas como destinado a ter continuação. Mas, para já, duas ou três observações.
Embora pense que nem sempre o formularia nos mesmos termos, chegaria facilmente a acordo contigo sobre o primeiro ponto. Ou seja, a democratização da economia deve primar sobre outras considerações.
No entanto, receio a tua aparente aposta no "quanto pior, melhor", e sobretudo não vejo seja o que for à nossa volta que indique a existência de forças e organização autónoma em condições de impedir que, a favor da saída do euro, uma solução autoritária e militarizada se imponha como via de "salvação nacional". O que pode ser obra de novas coligações de forças, resultantes desta ou daquela rápida recomposição político-partidária subsequente à ruptura com a UE.
Do mesmo modo, não vejo porque é que a via alternativa da resistência imediata ao austeritarismo articulada a nível europeu teria de comprometer, em vez de ser favorável, aos objectivos de democratização que enuncias no início.

Mas voltaremos a falar melhor mais tarde.

Abraço

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Caro Miguel,

Não é uma questão de "tanto pior, melhor", mas sim da necessidade duma situação de instabilidade política e/ou sócio-económica para que seja possível a implementação de mudanças radicais de âmbito político e sócio-económico. Obviamente essas condições tanto podem ser utilizadas para avançar os objectivos de Esquerda enunciados, como para aprofundar a exploração (como está a acontecer agora) ou aumentar o autoritarismo. Não tenho nenhumas certezas sobre o resultado dessa instabilidade, mas tenho a certeza que a manutenção da "estabilidade" equivale a uma capitulação perante as classes dominantes, que continuarão a aprofundar a exploração.

A articulação da luta a nível da UE não é alternativa à luta ao nível de cada Estado. Na verdade, são complementares. Mas não podem ser vistas como dependentes. Em particular, não podemos atrasar ou mesmo suspender a luta ao nível de cada Estado, nomeadamente ao nível do Estado Português, porque a luta ao nível europeu não está suficientemente desenvolvida. Aliás, tal seria devastador para a luta europeia, porque levaria à desmobilização e desmoralização dos trabalhadores, efectivamente impedidos de lutar no espaço institucional onde a maior parte das medidas que directamente os afectam (desemprego, salários) são decididas. Porque essa luta, nomeadamente a ocupação dos meios de produção, não é de todo compatível com a manutenção da estabilidade sócio-económica necessária para que o Estado Português cumpra os objectivos da Troika, mantendo-se assim na zona euro.

Um abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,
eu não te falei em estabilidade nem em atrasar as lutas aqui ou seja onde for até haver condições noutro sítio.
Em contrapartida, tu partes um tanto gratuitamente da ideia que será mais difícil estabilizar a dominação só em Portugal do que no conjunto da UE.
Também não explicas porque é que a adopção da via da "saída do euro" é mais eficaz ou radical do que outros
objectivos e vias.
Podemos desencadear reivindicações mais vigorosas e imaginativas contra a Troika e o memorando, podemos tentar tornar o país ingovernável (greves parciais constantes, desobediências civis, outras acções) sem ter de apostar na saída do euro. Porque não? E abalaremos mais a dominação dentro da UE e da zona euro do que pela via da "salvação nacional". É claro que onde escrevo "podemos" e "abalaremos", o condicional seria mais rigoroso: seria o que poderíamos fazer se tivéssemos força para tanto. Mas, de qualquer modo, não vejo em que é o tema da saída do euro radicalizaria os objectivos ou as formas de luta. E, pelo contrário, vejo muito bem os perigos políticos, ao nível das formas de organização e da proposta de alternativas, que a via nacionalista acarreta.

Abraço

miguel(sp)

Anónimo disse...

A Alemanha sem o querer está a dar cabo do sonho da Democracia Liberal na Europa.Numa sessão de debate público em Nantes, Emmanuel Todd parece ter razão nas análises compreensivas que dirige à " força terrível da economia alemã " que está a gerar um " sistema de desigualdade entre nações " europeias; e refere que a Europa sob comando técnico-financeiro alemão não está paradoxalmente a favorecer a Democracia Liberal, o objectivo central da União Europeia e do Euro, segundo sublinha. Como a intervenção de Todd é canalizada em video de um grande fórum realizado pelo famoso diário Ouest-France em finais de Novembro passado, contempla mais de duas horas de intervenções,avançarei posteriormente mais tópicos nucleares da sua profunda análise. Niet

Pedro Viana disse...

Caro Miguel,

Mas concordamos. Neste post não defendo a saída da zona euro, nem em nenhum outro, como primeira opção. Agora, parece-me óbvio que a oligarquia que controla a UE não assistirá impávida à degradação das condições políticas e sócio-económicas necessárias à persecução dos seus objectivos (nominais: diminuição do déficit corrente do Estado e aumento das exportações; reais: privatizações e embaratecimento do factor trabalho), que inevitavelmente resultariam de "tornar o país ingovernável". Mais tarde ou mais cedo, como esteve para acontecer com a Grécia e acabará por acontecer, perante as exigências dos trabalhadores, apoiados ou não por um governo eleito, a troika terá de marcar uma posição, sob perigo de transferência da agitação para o interior dos Estados nucleares para a oligarquia europeia (como muito bem advogas). Portanto, mesmo não sendo a saída do euro um objectivo, é muito provável que nos vejamos perante essa questão. As alternativas serão então abandonar de livre vontade a zona euro, o que é defendido por vários dos colaboradores do Ladrões de Bicicletas, ou então tentar nela nos mantermos, mas sem capitular perante as exigências que nos serão impostas. A 2a solução é a mais difícil, e não é de todo claro que seja possível. O Rui Tavares, no comentário que deixou há uns dias a um post meu, aparentemente não pensa que seja possível.

Abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Sim, Pedro, a segunda via é a mais difícil, mas é também a que mais mossa faria e mais desestabilização poderia causar. É por isso que a privilegio - embora, evidentemente, não possa garantir um desfecho vitorioso.

Abraço para ti

miguel(sp)

Anónimo disse...

A soberania europeia está nas mãos de Berlim, para o bem e para o mal,frisa Emmanuel Todd numa mesa-redonda que pode ser vista no video: forumdemocratique.fr/2012/11/29/video-emmanuel-todd-comment-changer-leurope
E se a classe politica europeia adianta agora o choradinho de ter que abandonar mais soberania a Bruxelas, isso é falso porque a soberania europeia está em Berlim fruto de uma economia super-potente, a alemã,e de um sistema preso/enrodilhado ao diktat do Euro dirigido pelo BCE de Frankfurt, sublinha o historiador. Que enfatiza também que a Alemanha sairá do Euro dentro de 4 a 5 anos quando deixar de haver indústria(s) no resto do continente...A não perder, pois, existindo no discurso de Todd outros factores de muito interesse sobre a estruturação do modelo social e histórico da Alemanha pós-guerra e o papel de intermediária de Merkel entre o corpo eleitoral e a estratégia do patronato prussiano. Salut. Niet

Anónimo disse...

Cumprimentos ao Pedro Viana por conseguir sintetizar as posições e colocar uns pontos extra nos iis. Repescando algo que tanto eu como ele escrevemos em comentários passados no vias de facto, é preciso levar estas questões também à arena político-partidária: nomeadamente a falta de posição assumida pelo BE insatisfaz-me muito. A não ser que consideremos o post que cita o JVA, no seu mais recente post, como uma posição. É uma posição pela negativa, e isso não é admissível. Além disso, é vergonhoso que os companheiros do Syriza, que irão assumir o poder mais cedo ou mais tarde, não se pronunciem sobre o que acontecerá (porque é isso que vai acontecer) quando se perceber que a renegociação com a troika é apenas possível nos termos em que elas já têm acontecido.

João Valente Aguiar disse...

Diz o anónimo:

«A não ser que consideremos o post que cita o JVA, no seu mais recente post, como uma posição. É uma posição pela negativa, e isso não é admissível.»

Eu nao tenho de andar sempre a propor seja o que for. O que eu sei é que o nacionalismo é uma arma terrível contra os trabalhadores. E sendo esse o actual maior perigo político para os trabalhadores, procuro dar o meu modesto contributo nesse sentido. Por outro lado, é interessante ver como as pessoas hoje se "armam" em propositivas quando os maiores contributos da esquerda anticapitalista do passado foram em dois níveis: 1) a crítica da economia política. O Marx preocupou-se sobretudo com a crítica do capitalismo e não em tornar-se em aspirante a governante; 2) quem constrói novas relações sociais são os trabalhadores e a sua prática autónoma e democrática. E não é chavão. Foi o que se passou em muitíssimos contextos distintos ao longo dos últimos 150 anos. E foram práticas desenvolvidas e criadas de raiz pelos próprios trabalhadores comuns e anónimos de modo colectivo e autónomo. Não seguiram receitas de vanguardas inspiradas e iluminadas. À esquerda cabe sobretudo o papel de auxiliar as lutas dos trabalhadores, de reflectir criticamente sobre elas e não de se arvorar em sapiente substituidora ou comandante do que ela acharia que deveriam ser os interesses dos trabalhadores.

Sobre a luta que há a fazer na actualidade em que infelizmente o grau de auto-organização em Portugal é quase inexistente (e essa inexistência reflecte um perigo profundo no caso de uma saída portuguesa/grega do euro). Muito recentemente saiu um artigo no Passa Palavra com algumas questoes que me parecem muito interessantes para discussão e que penso que valeria a pena ler e debater. O artigo pode ser encontrado aqui: http://passapalavra.info/?p=69300

Anónimo disse...

Peço desculpa, não era a si que me referia mas sim ao BE. Faltou acrescentar que nesse ponto me referia a Louçã, que apontava os perigos de saír do euro; isso é apontar um caminho por onde seguir, logo é assumir uma posição pela negativa. Cumprimentos.