17/09/13

A lógica ecológica


Não era minha intenção retomar a minha participação neste blog com um texto sobre ecologia, mas confeso que o post do Diogo me deixou ligeiramente desconcertado. Não pretendo sair em defesa dos textos do João Bernardo, que passa muito bem sem ela, mas como já tive oportunidade debater noutras paragens o assunto com o Diogo, aproveito o embalo. 
Evidentemente que as variações no campo do pensamento ecologista são virtualmente infinitas e que, a essa luz, toda e qualquer generalização se apresenta precipitada e potencialmente abusiva. Mas trata-se aqui de identificar um núcleo de assunções e pressupostos comum à maioria das posições expressas nesse campo e não de as apresentar a todas na sua singularidade. Parece-me incontornável que esse núcleo existe e que corresponde, grosso modo, ao retrato que dele faz o João Bernardo. 
«Ecologista» não quer aqui dizer «vagamente preocupado com o impacto do modo de produção capitalista no planeta» ou «ligeiramente consciente de que o lixo que produzimos é cada vez maior e importa fazer qualquer coisa a esse respeito». Penso que este debate só tem a ganhar com a assunção de que falamos em «ecologia» quando nos referimos a uma concepção do mundo assente na centralidade da interacção entre os seres humanos e o meio ambiente, enquanto critério para aferir e interpretar as relações sociais entre esses seres humanos. As conclusões a que se pode chegar a partir dessa concepção são inúmeras e variadas, as posições possíveis diversas, mas o que está aqui em causa é a centralidade e é precisamente isso que se procura refutar na crítica da ecologia (sem aspas). 
Não vou enfastiar o leitor com exemplos concretos de discursos que partem dessa centralidade para conclusões tendencialmente reacionárias, como a de que devemos «reduzir o consumo», ou ligeiramente obscurantistas, como a de que «atingimos o limite da Terra consumindo recursos numa velocidade 50% maior do que a sua capacidade de se recompor». Tão pouco pretendo sugerir que por vezes emerge de preocupações ambientais perfeitamente estimáveis uma certa tendência para sacralizar árvores ou animais ou a natureza nos seu conjunto.
Chamo apenas a atenção para o facto de uma perspectiva de classe, que tenha em conta as desigualdades que fazem mover o capitalismo, se ver quase sempre ausente e sempre menosprezada em semelhantes raciocínios. Quem é o «nós» que deve reduzir o consumo e que é responsável pela ultrapassagem do suposto limite das capacidades do planeta? Evidentemente, todos e todas... O que poderia ser mais conveniente para quem conduz os seus negócios do que esta diluição das responsabilidades pelo conjunto da humanidade?
E vale a pena sublinhar que mesmo lutas justas em si mesmas, como é o caso do combate ao monopólio das sementes pelas grandes empresas do agro-negócio, se vêm frequentemente canalizadas para formas de «resistência» duvidosas, como é o caso aqui:
Não podemos deixar que a indústria química e biotecnológica assuma os meios de produção de alimentos como está a tentar fazer. Eles não estão interessados em fornecer um benefício para o mercado. Eles estão interessados apenas em controlar o mercado. Resiste à tirania da comida cultivando o teu próprio jardim, guardando sementes vivas na terra, ou pelo menos, apoiando o teu agricultor orgânico local.
Ou como se aponta para um capitalismo verde enquanto horizonte privilegiado da acção política,  aqui
Individualmente podemos pressionar nossos governantes a adotarem posturas que fortaleçam a sustentabilidade em seus processos produtivos e também calcular como nosso estilo de vida impacta negativamente a capacidade da oferta de serviços ambientais pelos ecossistemas.
 Ou como se projecta um futuro em forma de harmonia e simplicidade voluntária:
Vida Verde é um Encontro exclusivamente dedicado à partilha de práticas ecológicas, em que uma das finalidades é informar, sensibilizar e proporcionar a todos os participantes os conhecimentos e a sabedoria para viver uma vida mais Simples, Natural e Sustentável, que esteja em harmonia com a Natureza e com as pessoas. [...] Acreditamos que para a construção e desenvolvimento de uma comunidade verdadeiramente sustentável, devem ser prioridades a adopção e implementação de critérios e práticas que respeitem o Planeta, a Humanidade, os Animais não-humanos e a Mãe Natureza como um todo.
O que interessa não é tanto partilharmos umas gargalhadas a propósito das formulações mais ou menos místicas e extravagantes relacionadas com o tema, mas interrogarmo-nos se não existirá algo que o atravessa, que está no seu âmago e não corresponde a uma caricatura ou a um momento infeliz, que explique a multiplicação de afirmações deste género.
 Porque é que palavras como «soberania», «desenvolvimento», «sustentabilidade», «regeneração» ou «equilíbrio» surgem com semelhante facilidade nesse contexto? Porque é que se pretende, com tanta insistência, «criar paradigmas de pensamento sócio-culturais biocêntricos em oposição ao especicismo e antropocentrismo», ao ponto de fazer disso um dos projectos em destaque numa das mais activas organizações ambientalistas em Portugal? E porque é que haveríamos de ir em busca de um «ecologismo» outro para criticar e polemizar, se aquele que se exprime de forma mais visível e prática, aqui mesmo paredes meias connosco, corresponde precisamente à descrição que serviu de ponto de partida para tudo isto? Não corresponderia semelhante exercício, esse sim, a uma «selectividade arbitária»?

13 comentários:

João Valente Aguiar disse...

Ricardo,

tem cuidado ou ainda aparece aí alguém a dizer que estás a ser deferente com o João Bernardo ou que estás a ser autoritário por estares a desmontar as patranhas ecologistas...

Só falta virem dizer que o ecologismo que criticaste é invenção tua. Tristeza das tristezas, o ecologismo que criticaste é de uma organização concreta mas não vem nos livros. Isso não se faz pá. E, vê lá tu, que afinal as concepções ecologistas são muito mais sobre ideologia e sobre as relações sociais e não sobre a natureza, precisamente o contrário que os projectores de deferência e de autoritarismo pensavam...

E, corolário do cataclismo que é o teu texto para essa gente, citas uma organização ecologista que, ao contrário do que alguns disseram sobre uma pretensa inseparabilidade entre a ecologia e os direitos dos animais, defende explicitamente «a implementação de critérios e práticas que respeitem o Planeta, a Humanidade, os Animais não-humanos e a Mãe Natureza como um todo».

De resto, como não sou dado a salamaleques, acho o teu texto péssimo. Para as crenças dos irracionalistas ecológicos, pois claro.

Agora vou lá dentro grelhar um bife em homenagem à Mãe Terra.

Zé Nuno Matos disse...

De facto, o texto do Noronha fez-me lembrar alguns dos debates/conversas em que participei nos últimos tempos. Pequenos manifestos como «temos que ir para o campo» ou «prefiro estar a plantar couves do que feito parvo à frente de um computador» foram pronunciados mais que uma vez.

Porém, e não obstante estarmos perante uma tendência dominante, não tenho os conhecimentos que me permitam identificar, de forma taxativa, a existência de uma matriz comum a todos os ecologismos.

Se nos julgassem pela aquela que é a tendência dominante na esquerda estávamos bem fo**dos!

Miguel Serras Pereira disse...

Poderoso camarada Ricardo,
tens decerto razão ao escrever: 'Penso que este debate só tem a ganhar com a assunção de que falamos em «ecologia» quando nos referimos a uma concepção do mundo assente na centralidade da interacção entre os seres humanos e o meio ambiente, enquanto critério para aferir e interpretar as relações sociais entre esses seres humanos. As conclusões a que se pode chegar a partir dessa concepção são inúmeras e variadas, as posições possíveis diversas, mas o que está aqui em causa é a centralidade e é precisamente isso que se procura refutar na crítica da ecologia (sem aspas)'.

Todavia, parece-me que estás a caracterizar mais o "ecologismo" do que a "ecologia", pou lado, e que, por outro, não podemos definir como "ecologismo" no sentido que lhe dás a inclusão na agenda da "questão social" ou da acção e proposta políticas de preocupações ecológicas e/ou ambientais.

Assim, no meu caso, por exemplo, é o horizonte de uma sociedade autónoma, o programa político de um governo dos iguais e da abolição das relações hierárquicas de matriz classista entre os membros da sociedade, ou a afirmação da cidadania governante, o que me leva a não poder excluir da agenda dessa democratização instituinte, a dimensão ambiental.

Ou seja, e para encurtar razões, como Castoradis punha a questão há quase vinte anos:

'Não é concebível que [uma sociedade autónoma] institua o autogoverno das colectividades […] e que o exclua nas colectividades de produção [… que exclua] a realização da democracia no domínio em que os indivíduos passam metade do tempo da sua vida desperta.
[…]
Devemos dizê-lo mais claramente ainda: o preço a pagar pela liberdade é a destruição do económico como valor central e, de facto, único. […] Quem pode crer que a destruição da Terra poderá continuar por mais um século ao ritmo actual? Quem não vê que essa destruição seria ainda mais acelerada se os países pobres se industrializassem? E que fará o regime quando deixar de poder conter as populações fornecendo-lhes constantemente novos gadgets?
Se o resto da humanidade tiver de sair da sua miséria insuportável, e se a humanidade inteira quiser sobreviver neste planeta num steady and sustainable state, será necessário aceitarmos uma gestão de bom pai de família dos recursos do planeta, um controle radical da tecnologia e da produção, uma vida frugal. […] para assentar as ideias, podemos dizer que já seria bastante bom que pudéssemos garantir 'indefinidamente' a todos os habitantes da Terra o 'nível de vida' dos países ricos em 1929.
O que pode ser imposto por um regime neofascista; mas pode ser também livremente feito pela colectividade humana, organizada democraticamente […] abolindo o papel monstruoso da economia como fim e voltando a pô-la no seu lugar adequado, de simples meio da vida humana. Independentemente de muitas outras considerações […], é nesta perspectiva, e como momento desta transformação de valores, que a igualdade dos salários e dos rendimentos surge como um aspecto essencial' ("Fait et à faire", retomado em Fait et à faire. Les carrefours du labyrinthe V, Paris, Seuil, 1997).

Um abraço para ti

miguel (sp)

Diogo Duarte disse...

Ricardo, estou de acordo em praticamente tudo, ainda que ache que haja aqui alguma confusão em relação a uma ou outra coisa – talvez por eu não ter sido muito claro no que queria dizer. No meu texto não coloquei em causa o tipo de posições particulares que um ou outro grupo pode defender. Em relação ao tipo de argumentação do JB isso é irrelevante porque o que está em causa nos seus textos (e nos comentários do JVA) não é a atribuição de uma matriz dominante ao que entende por ecologia, mas sim uma matriz essencial, ou seja, algo que nos diz que a ecologia redunda toda, inevitavelmente, na mesma coisa como se a consequência inevitável, senão mesmo o ponto de partida, de qualquer posição ecologista (quer um auto-denominado ecologista reconhecesse quer não) fosse o anti-urbanismo, o anti-industrialismo, o ruralismo, grelhar bifes à Mãe Terra, etc. etc. Se o JB discutisse estas ideias como propostas ecológicas e não como a ecologia em si, eu não teria qualquer problema com o texto dele. É que eu também temo os anti-urbanistas, quem abomina a ciência e a tecnologia, e essa gente toda.

Logo, não estou de acordo contigo quando dizes isto: "Parece-me incontornável que esse núcleo existe e que corresponde, grosso modo, ao retrato que dele faz o João Bernardo". Não que não exista um núcleo de ideias, até pode existir (isto é, se por núcleo entendes um conjunto de propostas dominantes e não um princípio universal, normativo ou essencialista de base como faz o JB). Nunca tentei negar os extremismos e absurdos associados à ecologia, nem que estes podem ser mais populares do que gostávamos que fossem. Não creio que tenham a centralidade que lhes atribuis, só porque estão “paredes meias connosco” (como também o Zé Nuno assinala), mas terão certamente importância e alguma expressão em certos meios.

Por outras palavras, as propostas dos ecologistas não fazem A Ecologia, fazem, isso sim, se quisermos, parte da Ecologia. “Ecologia” tem uma definição ou conceptualização abstracta e neutra. Não tem nem implica nenhum conteúdo programático. O GAIA até podia defender a urinoterapia, a obrigatoriedade de uso de chinelos para toda a humanidade e acreditar no impacto positivo dos incensos para o buraco do ozono que nem isso quereria dizer algo sobre a ecologia per se; diria somente sobre as posições ecológicas particulares do GAIA. Mais: o GAIA até podia formar governo e ter todo o poder do mundo que aquilo que defende continuaria a não ter de ser confundido com A Ecologia. Percebes a diferença? Em suma, dum cojunto de princípios gerais e abstractos podem surgir muitas posições diferentes e até antagónicas. E o princípio geral que podemos reconhecer à ecologia (e que acho que pode ser aceite por qualquer ecologista como ponto de partida) não implica nenhuma posição anti-industrialista, anti-urbanista, anti-científica ou seja lá o que for que o JB considera estar no âmago da ecologia. O que não quer dizer que não existam ecologistas a defender essas posições de forma mais ou menos sistemática, porque é mais do que evidente que existem. Agora, por existirem, e até por corresponderem à maioria das posições ecológicas (se fosse esse o caso), não poderiamos depreender que isso era inevitavelmente a ecologia. Até porque, tal como lembra o JB e muito bem, a ecologia já não é só preocupação dos ecologistas.

De resto, estando em desacordo com a maioria das posições do GAIA e achando uma boa parte delas risíveis, não chegam ao extremismo dogmático do JB.

Além disso, mais uma vez, (anti-)especismo só vagamente se relaciona com ecologia. Desde logo, a grande maioria dos ecologistas (e aqui falo dos militantes) não são anti-especistas e não há necessariamente contradição nisso. Da mesma forma, eu sou anti-especista e não o sou por nenhuma razão ecológica. Mais do que isso, nunca me relacionei com movimentos ecologistas, nunca fiz campanha por nenhuma causa ecologista, e, pior ainda, sou daqueles que lava os dentes com a torneira aberta e se esquece de separar o lixo.

Abraços

Diogo Duarte disse...

João,
tu elevas imenso a qualidade do debate… Não é muito saudável confundir as nossas obsessões com causas, nem com os males da humanidade ou com o que nos é conveniente para a nossa argumentação. Quando debatemos algo com alguém acho que não custa nada ouvir e, no mínimo, respeitar os nossos interlocutores, mesmo que estejamos certos que temos toda a razão do mundo. Ainda por cima não estás propriamente a falar com radicais ou militantes da causa. Estás a falar com pessoas que têm tanto interesse quanto tu em discutir estes assuntos e que, ao contrário do que possas pensar, nem têm posições assim tão diferentes. E mesmo com pessoas com posições radicalmente diferentes das nossas é possível discutir com o mínimo de racionalidade e sem tratá-las como parvas ou retardadas. A altivez e as ofensas gratuitas só causam ruído na discussão. Aliás, é lamentável e sintomático que seja mais fácil discutir este assunto com um hippie qualquer com ideias esquisitas do que contigo, com o qual tenho certamente muito mais em comum politicamente. Até porque ideias idiotas e absurdas não são sinónimo de dogmatismo; podem ser, como o são na maior parte dos casos, resultado da ignorância. Tu, infelizmente, és dogmático.

Abraços

João Valente Aguiar disse...

Diogo,

quem começou a "elevar" o debate não fui eu (nem tu). Por conseguinte, a partir do momento em que fui insidiosamente chamado à colação de forma rasteira por outrém vejo-me no direito de responder na mesma moeda. Bem ou mal, até esse momento sempre tinha debatido estritamente no plano político.

abraço

Ecologista disse...

Pintem as empresas industriais e centrais nucleares de vermelho, chamem ao Pingo Doce e Continente armazéns do povo, transformem o centro comercial Colombo em Forum Engels. Dessa forma teremos todos os problemas sociais e ambientais resolvidos na sonhada sociedade socialista.

Mas não vale a pena esquecer Baku, o Mar Cáspio e Tchernóbil...

Miguel Madeira disse...

Logo um ponto - porquê usar como exemplo de "ecologistas" o GAIA (uma organização quase completamente desconhecida fora de Lisboa e só não é "quase" por causa da Herdade da Lameira) e não, digamos, a QUERCUS ou a LPN?

Se o argumento for "a QUERCUS e a LPN não são ideologicamente ecologistas porque a sua defesa da «natureza» não serve de base para uma proposta de modelo social" então temos um raciocínio algo circular

Anónimo disse...

Caros senhores,

Não me considero um ecologista, por que não acredito em "ismos" seja de que natureza forem. Já trabalhei numa organização não-governamental de ambiente e reconheço que há uma dimensão nos seus discursos que não é pensada até às suas consequências últimas. Mas isso não significa que os dados em que apoiam a sua acção estejam errados, apenas que muitas vezes não há tempo nem espaço, em muitas dessas organizações, para uma reflexão ao nível dos fundamentos político-filosóficos da sua acção (não por falta de vontade, mas por que trabalham num registo reactivo, como muitas organizações assentes no voluntariado). Julgo que há preocupações ecológicas que não devemos ignorar, embora reconheça que os discursos de um certo ecologismo new age (e também da sua contraparte conservadora) apresentem tendências fascizantes das quais me parece que a maioria dos seus defensores não estão plenamente conscientes. Julgo que a solução para os problemas ecológicos actuais passa maioritariamente por uma redefinição do modo de vida que contemple uma maior justiça social, com maior igualdade e equidade na distribuição da riqueza. Por isso, colocar a necessidade de redução do consumo ao mesmo nível de palermices como a defesa do biocentrismo ou afirmações idiotas acerca da Mãe-Natureza é pura e simplesmente desonesto do ponto de vista intelectual e manifestação de desinteresse/ignorância relativamente aos dados de uma ciência - sim, a ecologia é uma ciência - que mostram que a capacidade de suporte do planeta já ultrapassou os seus limites e que algo tem de ser feito para inverter essa tendência. Infelizmente, alguns de vós estão a ser vítimas do maior receio de quem trabalha em questões ecológicas, mas não só: como os palermas têm maior tempo de antena, o trabalho sério e importante, aquele trabalho chato de ler e analisar, passa ao lado da discussão. Suspendam um pouco os vossos juízos, consultem o site da UNEP, ou vejam, para dar dois exemplos portugueses, o trabalho que a Plataforma Sabor Livre faz para tentar salvaguardar o bem-estar das populações junto à barragem do Sabor, ou os pareceres da LPN, nomeadamente à Avaliação Ambiental Estratégica ao Novo Aeroporto de Lisboa ou ao Programa Nacional de Barragens de Elevado Potencial Hidroeléctrico, e julguem a partir desse tipo de coisa. Enquanto se discutem caricaturas, estas organizações estão em tribunal, sem outro dinheiro que não o angariado junto dos sócios, contra grandes empresas e o Estado português, não só para denunciar violações legais e atropelos ao estado de direito, mas para defender a relevância da participação pública nos processos de decisão e a salvaguarda da nossa capacidade futura de decidir e gerir os nossos recursos. As ONGA lutaram contra os desmandos dos sucessivos governos que agora são vistos publicamente e foram muitas vezes vítimas deste discurso caricatural. Se tivéssemos ouvido muitas das suas preocupações e reivindicações em termos de direitos de cidadania não estaríamos onde estamos actualmente. Ao contrário de boa parte da esquerda (com muita pena minha), que parece um saco de gatos e deixa de ver a floresta por causa de um piropo, por causa de acontecimentos com 80 anos, ou por causa de egos inchados, muitas destas organizações conseguem ultrapassar as suas diferenças - e acreditem, elas existem, são históricas e profundas e contêm mesmo algumas dessas caricaturas, que são bem conhecidas no meio - em nome de um interesse comum, através de negociações duras, de compromissos difíceis e de cedências mútuas.

Anónimo disse...

continuação....

É certo que a economia verde tem um argumentário muito poderoso, muito perigoso e tomou conta de muitas destas organizações. Mas a luta seja por aquilo que for tem uma natureza processual, é normalmente negociada, pelo menos até ao momento em que existam condições para uma mudança radical. Reconheço a presença de elementos politicamente perigosos no ecologismo, mas seria injusto não dizer que foi muito por causa de "ecologistas" - como aqui lhes chamam depreciativamente - que foi assinada a convenção de Aarhus e que, por isso, temos acesso a documentos públicos que anteriormente estavam vedados, temos possibilidade de participar nos processos de decisão, e por aí fora. É claro que os "ecologistas" estão algumas vezes errados. E é claro que o seu trabalho tem uma dimensão política inegável, e ainda bem que assim é. Mas é preciso saber fazer distinções e não tomar a parte pelo todo. E só uma última observação: ao invés de tomarem a teoria pela prática e determinarem esta última através de abstracções caricaturais, recuperando um preconceito tão caro à tradição de pensamento ocidental, vão ao terreno, assistam ao trabalho de quem está a sério nas coisas, com competência e sem romantismos, vejam as condições em que trabalham, participem na consciencialização política das pessoas, e depois façam a crítica e discordem à vontade. Fica mal a gente tão inteligente deixar-se levar pelo preconceito e a generalização fácil.
Perdoem a franqueza e alguma confusão na exposição, mas este é um tema demasiado complexo, com muitas interferências, para caber numa caixa de comentários.
Cumprimentos.

Anónimo disse...

Só uma última observação: mesmo que se aceite - e isso já é fazer demais - a etiqueta "ecologismo" tomada depreciativamente como é neste texto para a diversidade de perspectivas e práticas em torno das questões ecológicas e ambientais que nos afligem, afirmar que o "ecologismo" do Gaia é a expressão mais visível e prática de ecologismo é confundir aquilo que conhecemos - e mal - com aquilo que existe. Seria uma boa anedota, se estas questões não fossem tão sérias.

Ricardo Noronha disse...

Caros, continuo a não encontrar uma definição de «ecologia» que possa servir de referência satisfatória neste debate. Sempre que uma é avançada responde-se que ela é redutora. Nunca se avança outra qualquer mais rigorosa e assim sendo continua-se a discutir o assunto como se estivesse em causa a conveniência de salvaguardar a água potável ou o ar respirável ou não acumular uma montanha de plástico em cada quarteirão. Penso ter tornado claro que não é isso que está em causa nos meus argumentos, nem, penso, nos do João Bernardo.
Esclareço ainda que tive a oportunidade de ir ao acampamento em defesa do Tua e sei por isso um par de coisas sobre as lutas concretas contra este ou aquele abuso ambiental, a começar pelo Plano Nacional de Barragens. Simplesmente, não é isso que está em causa.
Miguel Madeira, a Quercus cabe na definição de «ecologia» que avancei no texto: "falamos em «ecologia» quando nos referimos a uma concepção do mundo assente na centralidade da interacção entre os seres humanos e o meio ambiente, enquanto critério para aferir e interpretar as relações sociais entre esses seres humanos", como se pode ver aqui http://www.quercus.pt/documentos/campanhas/acabar-com-o-ecocidio-na-europa ou aqui http://www.quercus.pt/images/PDF/Jornadas/XX_JA.pdf.
Simplesmente, trata-se de uma ONG muito mais integrada do que o GAIA, que já fez a sua longa marcha pelas instituições e está perfeitamente confortável em pregar um capitalismo verde sem ter a necessidade de percorrer os trilhos mais exóticos.

Miguel Serras Pereira, parece-me claro que numa sociedade comunista, para além de pintarmos de vermelho o Pingo Doce e lhe chamarmos «armazém do povo», teremos de ter um longo debate sobre a melhor forma de transformar a natureza em prol de uma sociedade de abundância, preguiça e hedonismo.

Miguel Serras Pereira disse...

Pois é, Ricardo, justamente não basta pontar de vermelho as redes de distribuição: para as gerirmos democraticamente e as fazermos acompanhar uma democratização radical do mercado dos bens de consumo será preciso reorganizá-las, das caixas de atendimento aos produtos que vendem e às modalidades de produção, das formas aos conteúdos, dos horários de trabalho à inscrição espacial, e por aí fora. Do mesmo modo que não basta pintar de vermelho os aparelhos de Estado ou as empresas nacionalizadas, como bem sabes e muitas vezes tens lembrado.

Não vejo grandes divergências entre os nossos pontos de vista. Só não percebo bem a tua insistência numa definição de "ecologia" (pois nem seuar foi de "ecologismo" que começaste por falar) manifestamente equívoca. As questões ambientais não são a nossa política, mas a nossa política não pode deixar de considerá-las, nem está condenada à degenerescência ideológica quando as levanta ou lhes responde.

Abraço

miguel(sp)