20/09/13

Liberace reloaded, ou o kitsch a reanimar a pátria

Há uns meses atrás e por indicação de um amigo tomei conhecimento com o cantor Liberace, figura cimeira da cena musical norte-americana dos anos 60 e 70. Liberace apresentava-se então como um tipo específico de síntese entre luxo, kitsch e futilidade.

Liberace


Esta fusão exuberante pode parecer apenas uma mera excentricidade de uma estrela. Mas a verdade é que as estrelas mediáticas só se constituem como modelos sociais na medida em que produzem mas também espelham aspirações e representações do cidadão comum. Nesse sentido, a figura de Liberace ultrapassou em muito a sua obra musical e é representativa de um tipo social maneirista e que hoje surge em diversas personagens públicas.
A este propósito o caso da figura de Joana Vasconcelos no campo das artes plásticas e da personagem Liliane Marise, personagem de uma telenovela que se tornou igualmente num sucesso de vendas discográficas.
Num caso, uma versão feminina e nacionalista de Liberace que liga as elites a um público desejoso de reconhecimento cultural. No outro, uma versão popularucha da artista que utiliza o calão e a boçalidade para granjear simpatia.
Num caso, a reconstrução da nação portuguesa a partir de um rococó pós-moderno. No outro, a reconstrução do cidadão português genuíno, com um discurso cheio de erros de linguagem e que faz da superficialidade uma cartilha de actuação quotidiana.

Joana Vasconcelos

Num caso, o resgate de determinados traços tradicionalistas e historicamente selectivos numa linguagem formal espampanante e ostentatória. Se os trabalhadores que se identificam com uma mirífica classe média e que até há pouco viam na respeitabilidade das classes dominantes um factor de desenvolvimento do país, hoje com a austeridade, porque não poderiam substituir essa confiança nas elites respeitáveis na busca saudosista de uma pátria perdida nos confins do tempo e que só o kitsch poderá dar sentido?

Liliane Marise

No outro, a elevação de um suposto sujeito popular português a personagem televisiva. Se os trabalhadores que consomem novelas não se reconhecem como trabalhadores, porque não aproveitar para personificar expectativas e recreá-las na televisão? Não se enchem as algibeiras nem a barriga dos trabalhadores mais pobres, mas ao menos os olhinhos e as meninges são reconfortados com uma visão distorcida deles mesmos.

No fundo, personagens que não são mais do que uma recriação da aldeia mais portuguesa de Portugal em carne e osso. Se a nação portuguesa somos todos nós, porque não aproveitar as figuras que estão aí à mão de semear? Em tempo de crise económica e de destruição de empregos, redução de salários e precarização da vida, nada melhor do que uma portugalidade personalizada para nos confortar no regaço da pátria.

O kitsch nunca foi tão nosso.

2 comentários:

José F. disse...

Para além de ser uma personagem de uma novela que ganha vida própria (que não me parece ser algo inédito) o que há de particularmente inovador na Liliane Marise em relação ao Quim Barreiros, Emanuel, Saul, personagens de teatro de revista, festas de verão televisionadas que acompanham a Volta a Portugal, etc? Não me parece que seja uma novidade característica de um "tempo de crise económica e de destruição de empregos, redução de salários e precarização da vida"...

João Valente Aguiar disse...

O luxo, a ostentação, etc. Não digo que seja apenas novidade mas que a apatia dos trabalhadores no pós-75/76 também não é independente da ascensão dessas figuras. Mas a tal Liliane vai além no plano de um certo rococó pós-moderno. O Quim Barreiros não tem nada de kitsch.