27/10/14

Encruzilhadas de PODEMOS (4): o triunfo do "pablismo"

Não é necessária uma clarividência invulgar nem grande erudição teórica, mas basta pensar um momento no assunto, ou examinar serenamente a questão com olhos de ver, para se alcançar que, através de uma organização hierarquicamente centralizada, coroada por um chefe carismático, assistido por responsáveis em grande medida coptados, se poderá eventualmente derrubar um governo ou mudar de constituição, mas que o regime e as relações de poder resultantes serão tudo menos realmente democráticos, pelo menos, se não nos limitando a uma concepção representativa da democracia, considerarmos que a democracia "real" só pode instaurar-se através da generalização da participação no exercício do poder e no governo dos diversos aspectos colectivos da vida social do conjunto dos cidadãos.

É por isso que, tendo presente, por um lado, o carácter antidemocrático — que procurei documentar aqui, aqui, aqui e aqui — das medidas organizativas do "pablismo" e do regime interno que se destinam a instaurar e blindar no interior do PODEMOS, e, por outro lado, o facto de que o mesmo "pablismo" obteve na asamblea ciudadana o apoio de mais de 80 por cento dos votos, que lhe concderam "plenos poderes", resta concluir que, até mais ver, é apostar numa impossibilidade lógica e material que o novo partido possa agir de outro modo que não seja como um obstáculo à democratização e à emergência das formas de organização alternativas sem as quais essa demcratização não poderá avançar. Parafraseando um célebre aforismo de Marx, que afirmava que a liberdade do Estado é inversamente proporcional à dos cidadãos,  é caso para dizermos que o poder que o PODEMOS possa exercer só poderá ser inversamente proporcional ao da democracia.

4 comentários:

João Valente Aguiar disse...

É delicioso o culto ao chefinho Pablito. Tanta conversa com a democracia de base e, no fim de contas, aclamam o líder e repetem todos os tiques autocráticos... Em suma, eles não querem transformar o modo de fazer política, mas simplesmente escolher um líder - com um «projecto ético» (http://www.publico.es/publico-tv/video/219910/podemos-le-da-pleno-poder-a-la-pola-tica-de-pablo-iglesias) - mais impoluto. Precisamente a maneira como alguns no passado viam a substituição e a circulação de elites.
E isto já para não falar do anti-europeísmo dos meninos.

O mais espantoso de tudo é verificar como os traços mais perniciosos e estruturais do leninismo - a sua forma de organização decalcada do Estado - podem subsistir em organizações que nada têm a ver com essa tradição política. Isto demonstra que o que subsiste sempre nos processos sociais e políticos é uma dimensão estrutural, independentemente de mudarem as pessoas, os símbolos e as bandeiras. Não estou com isto a dizer que o Podemos é leninista (e não o é), mas que os traços estruturais do estatismo, do elogio do líder e das medidas nacionalistas podem perfeitamente circular para outros pontos do espaço político, a partir do momento em que processos políticos de base perdem fulgor e perante as suas ambiguidades deixam que os gestores políticos da hetero-organização recomecem o ciclo.

A esquerda que venera o Pablito e o Podemos no fundo está a dizer-nos a todos que se pudesse fazia exactamente a mesma coisa: uma concentração de poderes e das tomadas de decisões no líder carismático e na organização centralizada.

Abraço

Miguel Serras Pereira disse...

Nem mais, João.
Só um reparo: aparentemente, nas últimas semanas Iglesias tem atenuado o seu anti-européísmo radical, ainda que com recaídas e, sobretudo, lamentando ter de o fazer. Mas não só parece tratar-se de um recuo táctico e eleitoralista, como se insere numa estratégia mais ampla que, como os dois entendemos, temos todas as razões para recusar.
Em contrapartida, a esquerda soberanista francesa — ver a entrevista De E. Toussaint publicada no esquerda.net, em que o "europeísmo" do Syriza é atacado, ainda que com falinhas mansas e paternalismo académico q.b. — parece cada vez mais firme na sua vontade de disputar ao FN a vanguarda do nacionalismo.

Abraço

miguel(sp)

João Valente Aguiar disse...

Miguel,

quando há uns dias falava em leninismo mal sabia que um dos líderes do Podemos me iria dar razão de uma maneira tão explícita: «P. (...) há algo que aproxima o Podemos dos partidos clássicos: uma liderança forte, encarnada na figura de Pablo Iglesias. Era necessário este personalismo?

R. Costumo dizer que vivemos tempos em que precisamos de um "leninismo amável". Porque são tempos de incerteza em que o velho ainda não morreu e o novo ainda não chegou e, na incerteza, há muito medo. Então é necessário um trabalho de liderança que reduza a incerteza, que marque linhas, que estabeleça os marcos de discussão, que identifique. Mas não é o leninismo próprio dos partidos de esquerda. É um leninismo que tem que enfrentar o que chamamos a "casta" de uma maneira dialogada e deliberativa. Somos uma força que conjuga uma altíssima participação popular com a capacidade de decisão popular. Ao mesmo tempo, temos uma direção eficaz, ágil, fresca e jogamos nesses dois lados.» (http://www.jn.pt/PaginaInicial/Mundo/Interior.aspx?content_id=4217736&page=-1)

O mais giro é que este menino, entrevistado hoje no Jornal de Notícias, reitera o que um seu camarada tinha dito em entrevista ao jornal i, há uns meses atrás: «Pensamos que a linha que separa esquerda e direita se esgotou». Interessante o apoio de libertários, autonomistas, leninistas, trotsquistas, etc. a uma formação que se coloca para além da definição política e se dedica a resgatar alguns dos grandes temas fascizantes: nacionalismo (expresso no seu anti-europeísmo e na defesa de uma Europa das nações); oposição entre capital internacional parasitário e capital produtivo; fim da divisão entre esquerda e direita, etc. E ainda se acha que esta gente pode ser alternativa à austeridade, quando conseguem a proeza de estar, nalguns assuntos centrais, à direita dos tecnocratas...

Um abraço

Miguel Serras Pereira disse...

João,
sim, cada vez mais vai ficando claro qie, para os porta-vozes mais autorizados de PODEMOS, o "governo da codadania" de que se reclamam não aponta para o governo exercido pelos cidadãos comuns, mas o governo exercido por um partido de especialistas ou profissionais que governarão em vez dos representados, claramente considerados tecnicamente incompetentes para o fazerem eles próprios, e devendo por isso deixar na máxima medida possível as mãos livres aos líderes, só eles capazes de acção eficaz. Não há praticamente notícia sobre PODEMOS que não deixe transparecer isso mesmo.
Mas ontem li uma notícia em El País particularmente saborosa.
"La popularidad del líder de Podemos, Pablo Iglesias, …, le ha llevado a incrementar su seguridad cuando participa en actos públicos o acude a lugares muy transitados, como el Aeropuerto de Barajas. … Así, …, el también eurodiputado cuenta desde hace aproximadamente un mes con apoyo del Ministerio del Interior para garantizar su seguridad, en concreto, con un escolta cuando acude a coger un avión, y con dos cuando asiste a algún evento público, según han informado fuentes del partido. …[P]ara evitar incidentes, el Ministerio del Interior y el partido han coincidido en la necesidad de reforzar la seguridad del eurodiputado". (cf. http://www.heraldo.es/noticias/nacional/2014/11/02/pablo_iglesias_usa_escoltas_interior_para_acudir_aeropuerto_actos_publicos_319708_305.html )
Eloquente em matéria de aito-organização democrática alternativa, não te parece?

Abraço

miguel(sp)