08/02/17

Descolonização, retornados, Mário Soares, etc.

A respeito da morte de Mário Soares, houve quem tenha falado do seu papel no processo de descolonização, seja para o criticar (o mais usual, suspeito), seja para elogiar.

Em primeiro lugar, uma nota - eu sou uma espécie de retornado (vindo de Moçambique com 17 meses de vida...).

Outra nota - ultimamente tenho ouvido/lido algumas pessoas a dizerem que o termo correto é "refugiado", não "retornado"; sinceramente, crescido numa família de retornados, e que tinha muitos outros retornados no seu circulo de relacionamentos, nunca ouvi a expressão "refugiado" - sempre ouvi, ou "retornado", ou "pessoal que veio de África" (só tomei contacto que essa suposta problemática do "Não somos retornados, somos refugiados" com a série "E depois do adeus"; antes nunca tinha ouvido ninguém com essa conversa - por outro lado, não tenho praticamente memórias de 75/76, quando de qualquer maneira vivia numa aldeia do barrocal algarvio; talvez não seja a pessoa mais indicada para falar desse assunto?).

Agora, a respeito das criticas à descolonização - dá-me a ideia que há duas criticas que costumam ser feitas à descolonização, que me parecem bastante diferentes na sua essência; uma é a crítica "Aqueles povos não estavam preparados para a independência - viu-se o resultado: fome, guerra e destruição"; outra é a crítica "os retornados, que tiverem que vir para cá de repente e perderam tudo".

A minha experiência entre a "comunidade retornada" é de que sempre houve uma atitude muito crítica face à descolonização - mas essencialmente do primeiro tipo, a conversa do "sem nós, eles não se conseguem governar, coitados" ou "dá dó, ver aquelas cidades todas destruídas" (para os mais sentimentalistas-nostálgicos, com algumas referências a "abandonamos milhões de portugueses", e mais o clássico "a culpa foi das grandes potências, dos russos e dos americanos - não foram os [negros] que quiseram correr connosco"); já a respeito da sua sorte pessoal, a atitude dominante entre os retornados (pelo menos nos anos 80/90) pareceu-me ser o "estamos melhor cá do que alguma vez estivemos lá" (ouvido literalmente assim, de um amigo da minha família - diga-se que não me parece uma raciocínio lá muito rigoroso, já que estava a comparar Portugal do final dos anos 80 com África no principio dos 70), e um certo orgulho implícito (se não mesmo explícito), em tom de "vêm como demos logo a volta por cima?".

Se era frequente uma queixa, tinha menos com a saída de África e mais com a receção em Portugal, nomeadamente com as alegações que os retornados vinham "tirar o emprego aos de cá", ou que era quem tinha introduzido "a droga/a rebaldaria/a SIDA" (bem, eu suponho que, na altura em que apareceu em Portugal, já a meio dos anos 80, ninguém tenha dito que a culpa da SIDA era dos retornados, mas entre alguns retornados houve receio que fossem dizer isso). Já a conversa do "perdi tudo", para falar a verdade, não sei se até não seria mais comum entre as pessoas que tinham perdido propriedades ocupadas ou nacionalizadas em Portugal a seguir ao 25 de abril do que propriamente entre os retornados. Veja-se, aliás, que o Partido da Democracia Cristã, o único partido que nas campanhas eleitorais levantava regularmente a questão dos "espoliados", nunca teve votações de jeito (o que, num país com meio milhão de retornados, é indicativo que estes não davam grande prioridade ao tema).

No Blasfémias, JCD fala no "ódio desmedido de meio milhão de retornados" a Mário Soares por causa da descolonização, mas nunca dei por isso: a maior parte da minha família deve ter votado em Soares em quase todas as eleições que ele concorreu; além disso, penso que uma das regiões que recebeu mais retornados foi o Algarve - sendo essa região praticamente um feudo eleitoral do Partido Socialista (e ainda mais nos anos 70 e 80), duvido muito que esses retornados tivessem um grande ódio a Soares. Aliás, suspeito que a variável "retornado" quase não têm influência no comportamento político, e que o retornado típico tende a votar da mesma maneira que o não-retornado típico da mesma faixa etária, região de residência e classe social (se forem funcionários públicos ou empregados de grandes empresas ou viverem de Lisboa para baixo, tenderão a votar na esquerda, se forem empresários ou viverem acima de Lisboa, tenderão a votar na direita) - atenção que isto é um palpite, sem qualquer estudo sério por trás (ou seja, corro o risco de alguém me mostrar uma sondagem indicando que os retornados são significativamente mais de direita que o resto da população). Inclusive algum fator de auto-seleção pode ter moldado a natureza da "comunidade retornada" - a escolha entre vir para Portugal (ainda por cima em 1975) ou ir para a África do Sul, logo do outro lado da fronteira, pode não ter sido totalmente aleatória: não me admirava que os mais conservadores ou com menos suporte familiar em Portugal (e portanto mais dados a entrar em modo "perdi tudo") tenham ido desproporcionalmente para a África do Sul.

Admito que alguém basear a sua opinião sobre o sentimento dos retornados apenas com base em experiências pessoas (ainda por cima sendo um bebé em 1975) não é muito científico, mas é o que se arranja (se me puderem indicar algum estudo mais rigoroso - e não é difícil ser mais rigoroso que isto - que tenha sido feito sobre o assunto, estejam à vontade). Ainda por cima, nós somos retornados de Moçambique, e desconfio que pode haver diferenças significativas entre os retornados de Moçambique e os de Angola (nem que seja porque, apesar do 7 de setembro, não apanharam com uma guerra civil em cima, como em Angola).

Já agora, e ainda falando de "retornados", onde entram neste esquema as pessoas de etnia indiana que também vieram em 1974-75-76 de África para Portugal?

[Ver também este post do Ricardo Noronha]

Agora, a respeito da descolonização, se foi bem feita ou mal feita - como já muita gente notou, não é muito rigoroso associar Mário Soares com a descolonização: o facto de ele ser Ministro dos Negócios Estrangeiros quando ela sucedeu foi mais um acidente que outra coisa qualquer, já que o processo foi muito mais conduzido pelo MFA do que pelo governo formal (e, de qualquer maneira, sabendo que se estava a negociar um acordo, a maior parte dos soldados portugueses já não estavam dispostos a arriscar a vida por uma causa já assumidamente perdida, pelo que também não havia grande margem de manobra para negociar). Mas, independentemente disso, e a solução adotada?

Uma coisa que me parece é que, num assunto, houve uma curiosa inversão (ou que seria "curiosa", se assumíssemos que essas posições derivassem de coerência lógica e não interesses momentâneos) a seguir ao 25 de abril: de um lado, muitas pessoas que antes insistiam que "esses povos não estão preparados para se autogovernar" passaram a defender entusiasticamente a "autodeterminação" (ou seja, fazer-se um referendo ou eleger-se uma assembleia para decidir o futuro desses territórios) por contraponto à entrega do poder aos "movimentos de libertação" - mas será que quem achava que esses povos "não estavam preparados", se fosse coerente, não deveria achar que a entrega do poder aos "movimentos de libertação" era o mal menor (afinal, era nesses movimentos que estava grande parte da elite académica e intelectual das colónias), em vez de ir a pedir a opinião ao africano médio (o tal que não estava preparado)? De qualquer maneira, é difícil dizer o que teria acontecido se não acontecesse o que aconteceu, mas o exemplo da África francófona parece sugerir que provavelmente um referendo ou coisa parecida teria acabado à mesma por ter conduzido à independência .

Do lado oposto, não é (ou, pelo menos, não era) ver pessoas a justificar a implantação de ditaduras de partido único nesses países após a independência com o argumento "pois, mas há o problema do tribalismo; os estados-nação na Europa também precisaram de monarquias absolutas para se consolidarem e deixarem de ser uma manta de ducados e condados", sem pelos vistos perceberem que isso era praticamente o mesmo argumento dos colonialistas (de que se esses povos não podiam ser entregues a si próprios, porque se não iria ser o caos e a destruição).

Eu suspeito que o ideal teria sido uma autodeterminação que tivesse, inclusive, permitido a cada região (idealmente cada aldeia...) se proclamar independente se fosse essa a vontade dos seus habitantes, mas se nenhuma descolonização de África foi feita assim, duvido que fosse a portuguesa a ser assim (mas pelo menos poderia-se ter dado a Cabinda a possibilidade de uma independência separada?).

Já agora, para a escola "o mal foi termos tido o 25 de abril, e não uma transição gradual como em Espanha", convém lembrar que a descolonização espanhola foi se calhar ainda mais desordenada que a portuguesa - ao menos no nosso caso ainda houve uma espécie de acordos e negociações, que deixaram governos implantados nas ex-colónias; já Espanha, na altura da morte de Franco, com a Frente Polisário e Marrocos a reivindicarem ambos o Saara Ocidental, simplesmente retirou as suas forças, deixando lá um Timor-Leste gigante.

Finalmente, também não é muito claro o que é que os críticos da descolonização (nomeadamente os que pegam mais na parte dos "retornados que perderam tudo") queriam:

- Uma federação entre a "metrópole" e as antigas "províncias ultramarinas", um pouco à maneira dos "territórios" e "departamentos do ultramar" franceses? Por vezes vejo ideias nesse sentido, mas se realmente existisse essa tal Federação Luso-Africana-Oceânica, com um parlamento eleito pelos seus cerca de 60 milhões de habitantes, quase que aposto que os críticos da descolonização seriam os primeiros a criarem um "Movimento de Libertação de Portugal" (ainda mais se, como nas fantasias de alguns "ultras", a capital fosse em Luanda).

- Uma independência que tivesse permitido aos portugueses lá ficarem? De qualquer maneira, penso que não houve nenhuma expulsão formal dos portugueses (creio que em Moçambique, se alguma coisa, a partir de certa altura - já depois de virmos para Portugal - o que houve foi o contrário: tentativas - na melhor tradição do bloco soviético? - de proibir os portugueses remanescentes de se irem embora), mas, seja como fôr, tudo indica que a maior parte dos portugueses nesses territórios não estariam dispostos a lá ficar sob um governo de maioria negra.

- Uma independência que permitisse aos portugueses virem para Portugal mas ficando com os seus bens lá? Além da discriminação entre burgueses e assalariados implícita numa proposta dessas (isto é, o meu pai teria tido à mesma que procurar emprego em Portugal, mas o dono do prédio onde vivíamos continuaria a receber as suas rendas), é duvidoso que tal situação fosse viável - um país formalmente independente mas com as suas principais empresas, grande parte das terras e casas, etc. nas mãos de pessoas a viver noutro hemisfério rapidamente enveredaria pelo caminho do nacionalismo económico; veja-se como em Portugal não nos calamos com a conversa dos "centros de decisão nacional", e agora imagine-se isso ao quadrado.

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