26/06/17

A politização das catástrofes. Quem falou em crimes?

No Reino Unido o deputado trabalhista, e um dos mais destacados dirigente da corrente mais à esquerda do partido, John McDonnell, veio a público declarar que as vitimas do incêndio na Torre Grenfell - 79 pessoas  e não 100 como aqui escrevi - foram assassinados pelas decisões politicas que se tomaram[ou que se omitiram].

Esta declaração proferida num debate organizado pelo jornal Guardian no âmbito do festival de Glastonbury -  que constituiu uma oportunidade para mais uma vez mostrar a extraordinária popularidade de que gozam  neste momento Corbyn e as suas ideias - foi repudiada pelos conservadores que acusaram McDonnell de estar a politizar a tragédia.

O Reino Unido ter-se tornado o pais mais desigual da União Europeia representa uma vitória do projecto político liderado pelos conservadores. O Reino Unido é a máxima expressão do neoliberalismo na Europa. Thatcher se pudesse assistir estaria muito orgulhosa do trabalho feito e dos seus seguidores,

Acidentes como o incêndio na Torre Grenfell são determinados pelas decisões politicas que se tomam. Pelas opções que se fazem.  Já aqui escrevi sobre isso. Não  me vou repetir.
Pretender que, seja sob que pretexto for,  criticar os politicos pelas consequências dos seus actos  é uma tentativa de politizar as desgraças que causaram, é uma pura irracionalidade e uma tentativa de os colocar  incólumes e intocados  pelas decisões que tomaram.

As decisões politicas visaram diminuir os custos do Estado com as suas obrigações e permitir às empresas maximizar os lucros, promovendo uma reabilitação de segunda qualidade para cidadãos de segunda qualidade, para os quais uma segurança de segunda qualidade é considerada mais do que suficiente. Por isso o braço-direito de Corbyn se mostrou tão implacável:

“The decisions not to build homes and to view housing as only for financial speculation rather than for meeting a basic human need, made by politicians over decades, murdered those families,” he said. “The decision to close fire stations and to cut 10,000 firefighters and then to freeze their pay for over a decade contributed to those deaths inevitably and they were political decisions.”

Politica de habitação, com, entre outras,  a decisão de não construir casas para os mais necessitados. Deixar a habitação entregue ao mercado e encarada como (mais) um negócio e não como um direito e uma necessidade básica. Fechar serviços públicos relacionados com a segurança dos cidadãos. Cortar postos de trabalho, neste caso 10 mil bombeiros, mas podia ser em qualquer outro sector. Congelar os salários públicos - há uma década -  para forçar o emagrecimento do Estado e abrir os diferentes sectores aos negócios, ao mesmo tempo que se promove uma violenta redução nos salários.

Todos os que acompanham a politica do Reino Unido sabem bem que MacDonnell quando se refere a décadas de crimes contra as pessoas, sobretudo de crimes contra os mais pobres, não está só a falar dos conservadores.

Posto isto, e salvaguardadas as diferenças entre o incêndio de Londres e o incêndio de Pedrógão, sobre a qual já aqui escrevi, não se percebe como pode o que se passou em Pedrogão Grande e na região, passar sem uma urgente responsabilização politica. Responsabilização politica dos que ao longo de décadas tomaram as decisões que tornaram a floresta um pasto deste tipo de incêndios que são o que resta para toda a população portuguesa depois dos abutres distribuirem os dividendos dos negócios que o Estado subserviente lhes atribuiu.

Responsabilização politica daqueles que, neste preciso momento, prosseguem, apesar da retórica reforçada depois de cada tragédia, as nefastas politicas que culminam numa qualquer estrada da morte onde os cidadãos são abatidos.  Quer seja a politica da eucaliptização acelerada  do espaço rural, com fundos comunitários mobilizados para potenciar as tragédias futuras, quer seja uma politica de comunicações que atribuiu aos privados, organizados sob a sinistra sigla SIRESP. a possibilidade de distríbuirem os seus garantidos dividendos, mesmo quando a falência desse sistema acelerou a condução de 64 pessoas para o local onde seriam mortos.

Não se percebe por isso duas coisas: a conversa sem sentido de Passos Coelho, ele que geriu o País durante uma legislatura e que nada fez, nem para mudar a politica florestal, antes pelo contrário,  nem para questionar os negócios que os privados, quase todos da sua área politica, asseguraram com a conivência do Estado. Negócios em que a única coisa que interessa é a renda sendo a simples eficácia uma coisa secundária, morra quem morrer;
a lentidão de António Costa, que conhece como poucos esta área de actuação do Estado, já que foi ministro da Administração Interna e da Justiça, e que parece estar  à espera do último relatório técnico para depois agir. Como se o que se passou tivesse uma causa próxima, relativa aos últimos dias ou semanas e não resultasse de opções politicas de fundo, com décadas, que o seu Governo ainda não foi capaz de inverter.
Como se mostra de forma chocante  com a absurda decisão de manter o financiamento público de 9 milhões para alimentar a gula das celuloses. Tudo devidamente embrulhado na lenga-lenga do costume sobre a necessidade de ordenar a floresta e de garantir a matéria prima de uma fileira industrial estratégica.

António Costa tem que ser capaz de fazer as coisas de forma diferente e de uma forma comprometida com o futuro,  independente dos poderes corporativos que oneram desde sempre o desenvolvimento do país. Conta com um apoio parlamentar e politico sem precedentes. Está nas suas mãos fazer aquilo que tem de ser feito. Há decisões que são, como ele sabe melhor do que ninguém, do domínio da política.

6 comentários:

Pedro Viana disse...

Excelente! Não o diria melhor. Concordo totalmente. Infelizmente, algo que se torna evidente quando se compara a actuação política no Reino Unido e em Portugal, é que aqui não há quem seja tão claro na atribuição de responsabilidades, inclusive criminais, como John McDonnell. É que essas responsabilidades têm longo alcance... sendo por isso os acordos PS/BE/PCP/Verdes um empecilho à sua atribuição.

Abraço,

Pedro

José Guinote disse...

Meu caro Pedro,

a diferença que há neste momento entre o Reino Unido e Portugal ou a restante União Europeia é a diferença que há entre o Labour e os restantes partidos socialistas europeus. No Reino Unido há um compromisso claro de romnper com alógica neoliberal que domina e tolhe desde os anos oitenta os partidos da Internacional Socialista.
Trouxe esta questão à baila porque o actual discurso da direita sobre a tragédia de Pedrogão suscita uma reacção do lado do Governo contra a politização da tragédia. Sejamos claros: quando a politica não está no centro da questão, isto é, quando entre a "nossa politica" e a "politica deles" não há qualquer diferença a tendência é cairmos neste tipo de retórica sobre a "politização" dos desastres. Ora, como mostra MacDonnell é sempre disso que devemos estar a falar e que somos obrigados a falar. É de politica que se trata, ainda que seja de má politica, aquela que tem sido seguida pela direita e pela esquerda.
Deixa-me dizer-te que acho ser o acordo de Governo uma oportunidade para romper com este paradigma. Julgo que as pressões colocadas pelo Bloco e pelo PCP vão obrigar Costa aescolher o lado.Apenas por uma grande inépcia do Bloco e do PCP - e inépcia é o que não tem faltado do lado dos parceiros da Geringonça, muito acomodados a gerir a agenda mediática - é que Costa não seria obrigado a mostrar ao País para que lado é que resolveu caminhar: no sentido de mudar de politica prevenindo catástrofes, ou apenas e só no sentido de melhorar a resposta às catástrofes futuras.

joão viegas disse...

Meu caro José Guinote,

Compreendo e subscrevo completamente o fundo do post. Mas serei o unico a ver, senão uma incoerência, pelo menos uma contradição logica entre o proposito, salutar, de querer aferir as responsabilidades politicas, e a tonica posta na denuncia de "crimes" ou de "assassinatos" ?

E' que falar em "crime" e querer a todo o custo apontar responsabilidades penais, logo juridicas (embora ninguém duvide que elas têm de ser investigadas e, se caso for, sancionadas) é muitas vezes uma forma de evitar falar da responsabilidade politica. Encontra-se um "culpado" e o desastre passa a ser imputado à sua actuação malévola, ou à sua negligência culposa, como se o problema principal fosse ele ter saido dos trilhos e se ele não fosse, também, uma vitima de um sistema que favorece este tipo de desgraças. No dominio particular dos incêndios, sabemos que o risco que estou a apontar é uma constante. De cada vez que ha um incêndio, procuramos o incendiario, como se o problema numero um, politico e não juridico, não fosse o eucalipto (e antes dele o pinheiro, que isto não começou hoje), mais a desertificação, mais a falta total de politicas de ordenamento do territorio, mais a inexistência de uma politica exequivel de prevenção, etc.

O caso de Pedrogão Grande é emblematico. Anda tudo à procura de saber quem vai ser vergastado, so se fala em inquéritos parlamentares, em processos-crime, em punição dos assassinos. Não eram ainda conhecidos os detalhes da catastrofe, ja sabiamos que seres demoniacos tinham enviado as pessoas para a "estrada da morte", que nos esconderam que os sistemas de comunicação não tinham funcionado bem (noticia auto-probatoria tipica como os nossos jornalistas gostam : não sabemos, logo ha um culpado, como diz o Guimarães Rosa : "Não sei nada, mas desconfio de muita coisa").

Nisto tudo, quem é que fala do que mencionas, José, ou seja daquilo que verdadeiramente importa, que é discutir o que deveriamos ter feito no passado para procurar evitar o acidente e, sobretudo, daquilo que talvez fosse tempo de começarmos a fazer para evitar que sucedam outros ?

Portanto de acordo com o que dizes quanto ao fundo. Mas tenho ligeiras reservas acerca da propensão que temos em falar de "crime" quando queremos debater de uma questão "politica".

Abraços

joão viegas disse...

Ola,

Relendo o post com mais atenção, estamos a dizer a mesma coisa, o que é sinal que não foi resolvida a armadilha retorica de que nos queixamos. Tanto quanto percebo, dizes, e bem, que acusar as politicas irresponsaveis e desastrosas de serem "criminosas" é uma mensagem assumidamente politica e não deve ser disqualificada, mesmo que seja violenta.

No caso, se percebi bem, a tentativa de disqualificação é particularmente baixa, porque acusa sem fundamento o deputado trabalhista de estar a fazer diversão, quando na realidade é quem acusa que esta a fazer diversão, pois não quer de maneira nenhuma que se discuta a questão politica.

A resposta então poderia ser esta : "politizar é precisamente o que estamos a fazer e o que deve ser feito, porque neste caso, para além das responsabilidades criminais dos empreiteiros e de todos aqueles que vão ter de responder judicialmente pelo ocorrido, com aplauso nosso, ha também responsabilidades politicas, porque o desastre não se explica apenas, nem principalmente, pela ganância ou pela negligência de um ou dois empresarios, o que significa que quando estes estiverem presos, como merecem, não vamos poder dormir descansados. E a melhor prova é que os inquéritos ja iniciados mostram que ha mais de uma dezena de outras torres que correm riscos semelhantes no RU. Portanto o que esta em causa não é apenas o comportamento de um ou dois empresarios, mas um sistema... O facto de os conservadores protestarem contra a politização do debate apenas confirma que eles não têm a consciência tranquila."

Abraço

José Guinote disse...

Meu caro João Viegas, não tenho tido tempo para vir aqui participar no debate. Mas os teus comentários suscitam-me uma próxima abordagem ao tema da politização das catástrofes.
No essencial concordo com a tua análise e percebo a mudança entre o primeiro e o segundo comentário.
Hoje o debate sobre Pedrogão no Parlamento, suscitado por um agendamento do PSD, permite-nos olhar da perspectiva que eu queria enfatizar quando escrevi o post. O PSD quer encontrar responsáveis políticos e o Governo quer temporizar a discussão politica, submetendo os factos a uma prévia avaliação técnica independente,salienta-se este carácter purificado da avaliação.

O PSD quer politizar o debate na lógica de encontrar pelo menos um responsável politico, neste caso a Ministra da Administração Interna, cuja cabeça possa recolher como um troféu e dessa forma atingir o chefe do Governo. O PSD não está minimamente interessado na discussão da politica florestal, cujos aspectos mais funestos largamente promoveu.

O Governo foge a sete pés do debate politico porque é incapaz de o canalizar para a discussão das politicas e teme as consequências de um debate centrado na culpa e na responsabilização politica pessoal. O Governo sabe que foi co-autor desta politica florestal desastrosa, deste ordenamento do território que nos conduziu para esta catástrofe.É a sua maior fragilidade, que o conduz para o domínio confortável da comissão técnica independente.

O que foi mais triste no debate de hoje foi a forma como o Governo desvalorizou a politica argumentando com a pureza, a verdade, o carácter cientifico desta famosa futura comissão técnica independente. Uma reacção desajeitada, mas reveladora, face ao oportunismo justiceiro do PSD.

MacDonnell na minha opinião colocou a responsabilidade politica no centro da discussão. O crime que foi cometido, o assassinato das pessoas de que ele fala, não são o tipo de crime que pode ser imputado ao agente A ou B, mas o tipo de crime que resulta da adopção de um conjunto de politicas erradas, e da omissão do Estado por razões que se relacionam com a lógica austeritária e como eu normalmente digo, pela cedência das funções do Estado ao Mercado.
Um tipo de crimes politicos que devem ser imputados ao Governo e a todos os que defenderam e concretizaram politicas que nos conduziram ao incêndio e possibilitaram o seu carácter devastador.

Volto ao debate ASAP. Um abraço.

joão viegas disse...

Ola José,

Estamos de facto a dizer o mesmo, que eu me atrevo a resumir da seguinte forma : a questão das culpas é legitima, mas so tem sentido (e por conseguinte não deve ocultar nem preterir) na pespectiva da questão fundamental, que é a das responsabilidades, a qual neste caso é principalmente politica.