20/06/17

Incêndios: Um debate esclarecedor.

Sendo os incêndios uma catástrofe natural - a menos que a ignição seja provocada por meios humanos criminosos - as suas consequências não são de todo naturais. Sobre isso já aqui escrevi repetidamente. Passa-se com os incêndios o que se passa com os sismos, sendo que no caso dos sismos as consequências são vistas à escala dos edificios e no caso dos incêndios elas fazem-se sentir à escala do território.

O debate sobre esta questão tem sido uma conversa de surdos. Quer isto dizer que não tem havido debate nenhum. O que tem acontecido é a adopção de uma orientação politica consensual - o consenso pode ser uma coisa péssima, como sabemos - que, infelizmente para todos nós, tem tanto de consensual como de profundamente errada.

A opção que os sucessivos governos valorizaram foi a do combate. Os seus esforços centraram-se na protecção civil e dentro deste opção, ainda ontem o Secretário de Estado o esclarecia sem tibiezas, todos os esforços são canalizados para a primeira intervenção.

Esta intervenção do secretário de estado aconteceu no Prós e Contra de ontem à noite. Um programa profundamente esclarecedor. De um lado estavam os membros do Governo e das forças que no terreno corporizam toda a estratégia de combate aos incêndios. No outro lado alguns poucos académicos, com destaque para o professor catedrático do Instituto Superior de Agronomia de Lisboa. De um lado o poder  do outro o saber. Afastados por milhões de hectares queimados, centenas de vitimas e milhões de euros consumidos. Quase incomunicáveis, apesar da cordialidade. Com o poder a mostar quão insensível é aos apelos do conhecimento.

Do lado do Governo defendeu-se com tenacidade a estratégia seguida. A aposta no combate, acha o senhor secretário de estado, é inatacável, já que cerca de 99% dos fogos não sobrevivem à primeira intervenção da estrutura operacional. Um resultado estatisticamente esmagador, acha ele, bem como os comendantes que usaram da palavra. Havia na sala um lago consenso sobre os méritos da politica seguida.

Este convencimento com o mérito da politica pública adoptada manteve-se inalterado, pouco importando o que o debate acrescentou. Os efeitos devastadores em termos de vidas humanas e de área ardida foram insuficientes para retirar os representantes governativos das posições onde se encontram ... entricheirados. Nenhuma politica se fará com estas pessoas porque mesmo perante o resultado chocante das suas opções não parecem sequer poder ser assaltados pela dúvida.

Claro que a aposta deve ser na prevenção e numa intervenção permanente e continua na floresta e no território. Claro que o problema estando em parte no poder das celuloses não se resolve acabando com o eucalipto. Claro que há problemas gravíssimos associados à estrutura fundiária e ao facto de se ter verificado um crescente exôdo rural e uma crescente urbanização das geracções mais novas.

Claro que nenhum país sobrevive à rotura sistemática com a cultura profunda e com o conhecimento adquirido ao longo de centenas de anos. Sobretudo quando essa cultura e esse conhecimento eram o fruto de um longo percurso de defesa e de valorização do interesse público. É por isso que nenhum decisor politico aparece a defender a recuperação dos serviços florestais. A classe politica é iminentemente moderna e não olha para o passado, tem os olhos postos no futuro.


Há um problema de fundo com a prevenção. Ela impede os negócios do combate, um pasto fértil que se renova ano após ano. Numa lógica neoliberal o Estado deve ceder o passo aos negócios, ao Mercado, e deve reservar-se  meras funções de cordenação e de regulação. Para que tudo funcione bem deve abster-se de adoptar politicas intervencionistas deixando às empresas a intervenção reparadora e disponibilizando os fundos públicos - pagos com o dinheio dos contribuintes - de que elas se alimentam.
Quando o Mercado entender que retirará mais benefício da prevenção do que do combate, a politica pública mudará e o cluster dos incêndios mudará de orientação mantendo no essencial os mesmos protagonistas.

Há politicas que desde o ínicio da decada de 2000 se mantiveram inalteradas. Esta foi uma delas. Podemos dizer que Portugal foi um País Neoliberal avant-la-lettre e que a esquerda democrática tem muita responsabilidade nessa façanha. Parece ser verdade que ninguém renega aquilo que criou.

PS - este é um debate em que de um lado se colocam os politicos e do outro os especialistas. O que aqui escrevo não beneficia de qualquer dessas protecções. É sempre do lado da cidadania.

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

Por que é que ninguém podia prever a catástrofe?

O que impede a previsão do imprevisto não é a imprevisibilidade, é a confiança na verificação das condições da impossibilidade da ocorrência.
Quem mais promover essa confiança, na qualidade de garante, mais se torna garante da mesma, ou seja, responsável pela sua ocorrência.

Vital Moreira disse...


Portucaliptal (19) - Portugal, líder mundial do eucalipto

(…)

Tem havido uma manifesta falta de vontade política para enfrentar os interesses dos produtores florestais e da indústria de celulose, que deveriam suportar os custos do reordenamento fundiário (emparcelamento ou gestão comum do minifúndio), da limpeza das matas e especialmente do reordenamanto e da diversificação florestal, incluindo a reversão da invasão do eucalipto.
Há muita gente que continua a pensar que as plantações florestais, e em especial o eucalipto, são uma espécie de "petróleo verde", que só tem de ser extraído e que importa acarinhar e, mesmo, subsidiar a troco de nada (o setor tem recebido centenas de milhões de subsídios públicos...).
Pagamos quatro vezes as "rendas" da fileira da celulose: (i) subsídios e outros apoios; (ii) danos ambientais (solos, recursos hídricos, paisagem e diversidade biológica); (iii) custos do sistema de prevenção e combate a incêndios; e (iv) perda de vidas humanas.
A FLORESTA QUE TEMOS FICA DEMASIADO CARA AO PAÍS!
Enquanto os governos continuarem a cortejar a indústria de celulose e a namorar a CAP, pautando a política florestal pelos interesses comuns de ambos, os interesses de poucos continuarão a prevalecer sobre os interesses de todos. É essa captura do Estado que tem de ser revertida!

Adenda
Em janeiro do ano passado, o Governo anunciava ir cumprir o seu compromisso de revogar a lei de liberalização do eucalipto "em três semanas". Passado um ano e meio, esse compromisso continua por cumprir e vários diplomas da nova reforma florestal arrastam os pés na AR. O lobby da celulose rejubila, agradece a folga e aproveita para eucaliptizar a toda a velocidade: só no passado inverno foram plantados mais de três milhões de eucaliptos e o Governo decidiu subsidiar a sua plantação com 9 milhões de euros. Decididamente, este país não tem emenda!

https://causa-nossa.blogspot.pt