12/08/19

Ainda a respeito de esquerda, direita e intervenção do Estado

N'O Delito de Opinião, Alexandre Guerra escreve que «[e]m tese, e dando um exemplo clássico, poder-se-á presumir que alguém ideologicamente de “esquerda” seja mais favorável à intervenção do Estado nos assuntos da “polis” do que alguém de “direita”, ou vice-versa.» e que «[n]a óptica do tal quadro de análise “esquerda-direita”, não seria descabido prognosticar, há umas semanas, que, perante um cenário extremado de greve, o Governo (esquerda) assumisse uma posição suavizada perante aquilo que tem historicamente considerado um princípio constitucional intocável ainda herdeiro da boa e velha tradição sindicalista dos tempos do “proletariado” marxista. Partindo dessa “fórmula”, dir-se-ia também que a oposição (direita) seria menos conivente com o tom radicalizado dos grevistas e viesse defender uma acção mais “musculada” por parte das autoridades no garante da normalidade da sociedade».

Não sei se Alexandre Guerra se apercebeu que a segunda passagem entra em contradição com a primeira - afina, se em teoria seria de esperar que um governo de direita fosse mais "musculado" para reduzir o impacto de uma greve de que um de esquerda, isso quer dizer que nem sempre se está à espera que alguém de esquerda seja mais a favor da intervenção do Estado do que alguém de direita (o resto do post é a dizer que a direita e a esquerda não estão a ter a posição esperada neste assunto, mas o próprio facto de ele achar que a posição esperada era a direita tentar restringir a greve e a esquerda ser mais permissiva refuta a passagem inicial sobre a intervenção do Estado).

[Há uns tempos, num contexto completamente diferente, eu escrevia - acerca de Margaret Thatcher, Robert Taft e Barry Goldwater - que «há um assunto em que todos os "liberais económicos" atrás referidos até eram bastante estatistas: greves e sindicatos; mas haver defensores do liberalismo económico a defenderem que o Estado deve intervir para restringir a ação dos sindicatos é tão comum que...»; eu não faço a mínima ideia de qual o posicionamento político de Alexandre Guerra, nem da sua opinião sobre a greve em si, mas essa parte do post parece um sintoma da tal tendência geral para não contar o intervencionismo estatal contra as greves como intervencionismo estatal]

3 comentários:

FR disse...

Para mim não faz sentido considerar a intervenção de Thachter face aos sindicatos como um ato de estatismo puro. Vejamos: o governo dela herdou uma situação em que os sindicatos têm determinados direitos (o da greve) com os quais um liberal não concorda (porque na sua ótica o trabalhador e o empregador celebram contratos por livre vontade, logo não há uma parte fraca que tem de ter direitos como a greve para compensar o desequilíbrio). De qualquer modo, essa tentação de esmagar os sindicatos via ação policial originaria uma ação própria de um período "revolucionário" até se mudar a constituição ou os incomodos resquícios da social democracia. E pensando bem, existe alguma diferença fundamental entre isso e esvaziar os sindicatos fantoche nos países do socialismo real? Não sei muito sobre essa história mas parece-me que os trabalhadores teriam mais de obedecer a uma linha justa definida pelo comité central, o que até certo ponto faz sentido - a este respeito lembro-me de ler as dúvidas de Bertrand Russel sobre o anarco-sindicalismo, ele escreve preto no branco que os setores que podem de facto paralisar a sociedade estariam numa vantagem injusta face ao resto dos trabalhadores se decidirem exercer uma paralisação total do país como forma de chantagem (e de facto quem é que tem o direito de dizer se os camionistas de matérias perigosas devem ganhar mais ou menos do que um médico em início de carreira?)

Miguel Madeira disse...

"Para mim não faz sentido considerar a intervenção de Thachter face aos sindicatos como um ato de estatismo puro. Vejamos: o governo dela herdou uma situação em que os sindicatos têm determinados direitos (o da greve) com os quais um liberal não concorda (porque na sua ótica o trabalhador e o empregador celebram contratos por livre vontade, logo não há uma parte fraca que tem de ter direitos como a greve para compensar o desequilíbrio)."

Esse argumento poderia fazer sentido se a política da Thatcher tivesse sido na linha de "antes as faltas por greve eram faltas justificadas, e agora passam a ser faltas injustificadas como outras quaisquer, passando a lei a ignorar o conceito de greve"; mas não - foi no sentido de dar às entidades patronais a possibilidade de processar os sindicatos pelos prejuízos causados pelas greves (e mais umas quantas coisas), o que me parece já implicar o Estado a agir ativamente contra as greves, em vez de simplesmente deixar de agir ativamente a favor das greves.

Dois artigos que acho que podem ser relevantes para isto (nomeadamente para perceber esta diferença):

- Labor Market Reform in the United Kingdom : From Thatcher to Blair[pdf], de John T. Addison e W. Stanley Siebert, The Journal of Private Enterprise, volume 15, nº 2, primavera de 2000, onde refere em pormenor as reformas thatcheristas.

Sobretudo, veja-se esta passagem, logo na página 2: «The legal immunities point requires some elaboration. In Britain there has never been a right to strike. Instead, since 1906, there has evolved a series of immunities for trade union actions undertaken "in contemplation or furtherance of a trade dispute." These came in response to legal challenges by the courts.»; isto é, na legislação britânica (e creio que na irlandesa é igual) nunca chegou a haver um direito positivo à greve (em que o Estado protege grevistas), o que há é um direito "negativo" aos sindicatos, em certas condições, não serem processados por organizarem greves, e a política de Thatcher consistiu largamente em reduzir o ambito dessas condições.

- A new look at trade union immunities, por Graham Smith, Free Life - The Journal o the Libertarian Alliance, volume 2, nº 1, inverno de 1981 (que penso representar o que na altura seria a linha dos liberais mais radicais); aí o autor argumenta que realmente vai contra os princípios liberais dar aos sindicatos o privilégio de estarem imunes da aplicação de certas leis, mas que a maior parte das leis em questão eram iliberais, portanto se calhar o que deveria ser feito não era abolir as imunidades sindicais, mas sim as próprias leis em causa.

Miguel Madeira disse...

Já agora, outro artigo da Libertarian Alliance (de 1982) que também não me parece muito entusiástico da legislação anti-greve do governo britânico de então

http://www.la-articles.org.uk/FL-2-4-2.pdf