Os ajustes directos ocuparam o penúltimo capítulo da "agenda mediática" enquanto efeito colateral do famigerado caso do "famlygate", antes da greve dos camionistas ter varrido o assunto para o arquivo morto. As regras da bolha mediática que ocupa o espaço caricaturalmente designado nas democracias degradadas ou em acelerado estado de degradação por "espaço público" são estas. Nas democracias que definham as regras não se discutem.
Admita-se pois, para início de conversa, que os ajustes directos estiveram mais ou menos na moda, entre um dia qualquer do presente mês e o dia em que o Governo decretou o estado de emergência energética, uma designação bastante cool que liga muito bem com o ar exausto, dir-se-ia exaurido, com que Vieira da Silva e Matos Fernandes alertaram o país para a coisa.
Alguns cronistas dos "jornais de referência" mostraram nesse curto espaço temporal, nessa estreita janela de oportunidade, um grande interesse pelo tema. Grande como são grandes os interesses que se organizam nos termos e nas medidas determinadas pela agenda mediática. O mais notório, aquele que mais insistiu messe jogo entre linhas-mediáticas, foi o João Miguel Tavares no Público, que articulou nos seus escritos mais recentes a denúncia do familygate e os ajustes directos, enquanto mecanismo legal de contratação pública. (aqui e aqui e aqui )
Os ajustes directos, como já escrevi algumas vezes aqui no Vias de Facto, são desde há muito - desde muito antes da Troika, mais exactamente desde a aprovação do Código da Contratação Pública, no Governo de José Sócrates, em 2008 - um dos mais danosos mecanismos de contratação pública. São o mecanismo de eleição de todos os que contratam no âmbito das funções em que foram investidos, quer por eleição, no caso dos autarcas, quer por delegação no caso dos organismos desconcentrados da Administração Central.
Danosos porquê? Porque conferem ao Senhor Manuel e à senhora Maria, que para o caso podem ser o Dr Manuel e a Drª Maria, ou o Engenheiro Manuel e a Engenheira Maria, ou o Arquitecto Manuel e a Arquitecta Maria, ou pura e simplesmente o nosso presidente Manuel e a nossa Presidente Maria, que se podem chamar Medina, Moreira, Francisco, António, Nuno, ou qualquer outro nome, um poder absoluto não escrutinável. Não escrutinável como assim?
Nesta época em que a Administração Pública atingiu o zénite da simplificação administrativa em que o Simplex veio "facilitar" as nossas vidas, como se pode afirmar que alguma coisa não é escrutinável, quando essa coisa e todas as coisas que se identificam com "ajustes directos" estão plasmadas no Base.Gov, para poderem ser fiscalizados por toda a gente?
Poder absoluto porquê? Como é que uma democracia consolidada pode viver paredes meias com poderes absolutos distribuídos por todo o território nacional tendo apenas que observar o devido respeito pelas fronteiras concelhias? Não se vá dar o caso de aparecer alguém a "ajustar" directamente no concelho do vizinho.
Temos que ser sérios. Quando alguém recorre aos ajustes directos para adjudicar um estudo sobre a mobilidade urbana do seu concelho à empresa A, é a urgência que o obriga. A necessidade "imperiosa, inadiável, de compreender os mecanismos que determinam as formas de mobilidade adoptadas pelos cidadãos e pelas empresas, bem como uma necessidade urgente de definir uma estratégia para uma nova mobilidade que possa ainda beneficiar dos apoios do quadro comunitário em curso" leva a que esse estudo seja "ajustado directamente" com a empresa A por 74,5 mil euros. Não podia ser por mais porque a lei impunha os 75 mil euros como limite aos ajustes directos, quando se tratava de prestação de serviços. Generosa lei que a União Europeia veio obrigar a rever. Uma maçada. Agora com a imaginação que nos caracteriza cada ajuste directo pode dar até três ajustes mais pequenos para que tudo continue a fazer-se da mesma maneira.
A escolha da empresa A também não tinha ciência nenhuma. Basta ir ao Base.Gov e consultar algumas dezenas de milhares de ajustes directos. Encontrar-se-á uma explicação muito simples e até recorrente na sua simplicidade: recorre-se ao ajuste directo à empresa A, tendo presente o carácter urgente do trabalho, por não se encontrar localmente empresas ou técnicos capazes com as capacidades requeridas.
Contrariamente ao que se pensa este mecanismo é na maior parte dos casos utilizada para excluir empresas locais - que não se encontrem alinhadas com os poderes autárquicos do momento - e/ou para beneficiar empresas "amigas", sendo que neste caso a base geográfica não interessa.
Com base na localização do contratante e do contratado pode-se começar a traçar uma "geografia da corrupção na Administração Pública no pós aprovação do Código da Contratação Pública". Talvez esteja em marcha, sem que se possa dar por isso, uma forma sórdida de regionalização.
Com base no carácter perene das empresas escolhidas - uma graça de cada um dos senhores ou senhoras que escolhem - podemos traçar um diagnóstico sobre a "longevidade empresarial, e novas formas de empreendedorismo de base local. O contributo dos ajustes directos".
Já aqui escrevi que depois de muitos anos em que o urbanismo foi a mais utilizada via para transferir bens públicos para mãos privadas, através de um esquema corrupto centrado na captura das mais-valias urbanísticas. os ajustes directos conquistaram o primeiro lugar entre as prácticas preferidas para concretizar o tráfico de influências, o compadrio, a corrupção, a sobrefacturação e a transferência de bens públicos para mãos-privadas. Toda a gente sabe disso. Há por esta via a destruição de qualquer ideia de mercado concorrencial e de eficiência na gestão dos recursos públicos e do dinheiro dos contribuintes. O nepotismo, a promoção da mediocridade e da incompetêmcia, a corrupção pura e dura sem apelo nem agravo são estruturantes da desigualdade existente e garantem uma desigualdade duradoura.
Há muita gente que utiliza os lugares para os quais foi eleito para favorecer este ou aquele cidadão - pequeno ou médio empresário, amigo do partido e financiador das suas campanhas, sócio de um familiar e amigo generoso da família, técnico cujas opiniões públicas são muito favoráveis à orientação política dominante - ou para punir este adversário político ou aquela empresa indesejável recorrendo a um poder quase absoluto - dentro dos generosos limites legais que a lei fixou e que a União Europeia tem paulatinamente mas ineficazmente tentado limitar - de decidir "quem pode e quem não pode", quem "deve ser contratado e quem não deve ser".
Em Portugal as coisas acontecem e, passados anos de estragos pesados, os escândalos acumulados obrigam a que alguma coisa mude. Normalmente a "mudança" começa com a denúncia na imprensa de referência de casos chocantes porque envolvem o autarca fulano de tal, a sua jovem esposa e as empresas de consultadoria que ela, com a sua capacidade empreendedora inata, criou para poder ajustar directamente ... com ele. Depois surgem algumas opiniões que aparecem com o carácter de descobertas de uma realidade "velha e relha" que se pensava ser imune a qualquer descoberta. Passados poucos dias uma qualquer crise energética, ou outra porra qualquer, lança um manto de silêncio sobre a coisa. A vida volta à sua normalidade.
Aqui no Vias de Facto há muito que variados autores denunciaram a corrupção implícita na utilização dos ajustes directos. Nem a justiça - limitada nos meios de investigação, como aconteceu com os crimes urbanísticos - nem a classe política, nem o jornalismo de referência, alguma vez passaram algum cartão ao tema. Ficam aqui um conjunto de links para vários desses textos que, inclusivé, questionam a Geringonça por nada ter feito para colocar um ponto final nesta questão. Do mesmo modo que Alvaro Santos Pereira, o ministro de Passos-Portas, nada fez para os limitar, apesar de recentemente ter renascido equipado - poder-se-ia dizer, subjugado - com enormíssimas preocupações com a corrupção em Portugal.
Portugal é um país muito marcado pela corrupção. É um velho hábito. Há quem ganhe e há quem perca. Quem ganha naturalmente não pretende mudar nada. Ninguém muda a realidade da qual é um dos maiores beneficiados.
A falta de separação entre o sistema de justiça e o poder político levou-nos a esta pós-democracia na qual uns recebem do povo o poder para o representar e agirem em sua defesa e dos seus interesses colectivos, optando por, uma vez investidos nesse poder, tratarem da sua vidinha, o que pode apenas significar "ajustar directamente" com as pessoas e as empresas certas.
A degradação da democracia não se combate dando 10 euros por mês aos mais necessitados e colocando o acento tónico na distribuição de verdadeiras misérias que o sistema fiscal se encarrega de reduzir a ... zero. Combate-se com uma mudança de fundo na forma como o Estado se relaciona com a coisa pública. Obriga a restaurar urgentemente a ética perdida. Apenas dessa forma será possível combater a desigualdade de forma séria e promover a justiça social . Se não se conseguir promover esta mudança de fundo podemos continuar a viver como agora à sombra da bananeira.
(Para consultar por antiguidade pode clicar aqui, aqui , aqui, aqui , aqui , aqui entre outros textos publicados).
Declaração de Interesses: tive uma empresa de prestação de serviços que desde 2005 até ao final do "reinado", do então senhor todo poderoso do município, foi excluída de todos os ajustes directos. Depois do final do reinado com a mudança política a empresa continuou "sem ajustar" sendo obrigada a encerrar.
Não há forma de trabalhar junto da administração local para as pequenas e médias empresas que não passe pelos ajustes directos.
11/08/19
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