14/12/12

O euro à luz do Tratado de Lisboa

O João Valente Aguiar (I e II), o João Rodrigues e o Jorge Bateira (I e II) publicaram recentemente textos que enriquecem claramente o debate em curso sobre qual a melhor estratégia de actuação, no actual contexto político e sócio-económico, para quem se considere de Esquerda. Em particular, no que se refere à postura perante a possibilidade do Estado Português decidir criar uma nova moeda com curso legal (legal tender, ou aqui para uma definição mais simples).

Antes de abordar, num próximo post, de forma crítica, mas construtiva, o que é dito nesses textos, parece-me conveniente tentar esclarecer uma dúvida que me parece fundamental no debate em curso: quais são as consequências legais, em termos de inserção do Estado Português na União Europeia, do acto acima descrito?

No Tratado de Lisboa, que determina o actual modo de funcionamento da União Europeia, o artigo 128 da versão consolidada do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, tem a seguinte redacção:

"1. O Banco Central Europeu tem o direito exclusivo de autorizar a emissão de notas de banco em euros na União. O Banco Central Europeu e os bancos centrais nacionais podem emitir essas notas. As notas de banco emitidas pelo Banco Central Europeu e pelos bancos centrais nacionais são as únicas com curso legal na União.

2. Os Estados-Membros podem emitir moedas metálicas em euros, sem prejuízo da aprovação pelo Banco Central Europeu do volume da respectiva emissão. O Conselho, sob proposta da Comissão e após consulta ao Parlamento Europeu e ao Banco Central Europeu, pode adoptar medidas para harmonizar as denominações e especificações técnicas de todas as moedas metálicas destinadas à circulação, na medida do necessário para permitir a sua fácil circulação dentro da União."

Note-se que este artigo não diz respeito apenas ao países integrados na zona euro, mas a todos os que fazem parte da União Europeia (UE). Ou seja, todos os Estados membros da UE são obrigados a respeitar este artigo, a menos que tenham negociado para si uma excepção à sua aplicação (casos da Dinamarca e Reino Unido). No entanto, antes dum Estado membro da UE poder ser obrigado a respeitar o artigo mencionado, tem de cumprir os chamados "critérios de convergência", descritos no artigo 140 da actual versão consolidada do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. É devido a tal que o Estado Sueco não é obrigado a respeitar o artigo 128 da actual versão consolidada do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Porque deliberadamente decidiu (continuar a) desrespeitar um dos "critérios de convergência" (não aderindo ao denominado MTC II).

Portanto, parece-me claro que se o Estado Português decidisse criar uma nova moeda com curso legal, tal infringiria o ponto 1 do artigo 128 da actual versão consolidada do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. O que também aconteceria se o Banco de Portugal decidisse começar a emitir euros sem autorização prévia do Banco Central Europeu (BCE). O que isto quer dizer é que, tal acontecendo, as instituições da União Europeia poderiam abrir um processo contra o Estado Português, que poderia levar à imposição de multas e à suspensão dos direitos que resultam do seu estatuto de membro da UE. Neste último caso, tal procedimento teria de apoiar-se no artigo 7 da actual versão consolidada do Tratado da União Europeia. Mas este só pode ser invocado

"Sob proposta fundamentada de um terço dos Estados-Membros, do Parlamento Europeu ou da Comissão Europeia, o Conselho, deliberando por maioria qualificada de quatro quintos dos seus membros, e após aprovação do Parlamento Europeu, pode verificar a existência de um risco manifesto de violação grave dos valores referidos no artigo 2.o por parte de um Estado-Membro."

em que o artigo 2.o tem a seguinte redacção:

"A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados-Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres."

Note-se que a suspensão dum Estado membro da UE não pode tornar-se numa expulsão. Segundo o Tratado de Lisboa, a saída da UE apenas é permitida de forma voluntária.

Nos próximos dias tentarei analisar as possíveis consequências práticas de diferentes cursos de acção, tendo em conta a situação que acabei de descrever.

3 comentários:

rui tavares disse...

Caro Pedro,

A tua leitura parece-me correta e creio perceber onde ela pode levar, mas não esquecer que com o Tratado Internacional (não-UE) do "bloco orçamental" os estados mais poderosos já encontraram uma forma de contornar posições de força dos estados mais fracos (ou seja: falência do estilo "daqui não saio e daqui ninguém me tira").

1. Desobediência ao "bloco orçamental" corta os laços do estado-membro ao Mecanismo Europeu de Estabilidade, após o que os seus juros explodem pelo telhado.
2. Em caso de necessidade, faz-se um tratado da UE(bis) e cria-se um euro(bis) sem o estado-membro indesejável. Com sorte, guardamos acesso ao Tribunal de Justiça por fazer parte da UE "antiga", que se transformaria cada vez mais numa espécie de Conselho da Europa de conversa e pouco mais.
3. O espaço Schengen, desde a última revisão, pode ser fechado, primeiro por um par de meses, e não tenhas dúvidas que logo a seguir definitivamente, ao estado-membro relapso (os planos de contigência estão prontos e os membros do centro não estão a pensar receber dezenas de milhares de emigrantes a precisar de ganhar em euros).
4. O mesmo pode ser feito ao mercado único, talvez com um pouco mais de esforço, bloqueando as exportações ao membro relapso.
5. Tudo isto está certamente previsto e 2012 não é 2010, ou seja, as coisas estão sendo preparadas para que um membro relapso esteja forçado a sair do euro e da União, lixando-se sozinho, ainda que os tratados, como bem interpretas, digam o contrário.
Abraço
Rui

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Rui,
várias vezes dei por mim a pensar que seria interessante ouvir-te no debate que tem sido travado - no Passa Palavra, nos Ladrões de Bicicletas, no 5dias e aqui no Vias -sobre a "saída unilateral do euro", essa saída como primeiro passo - consciente ou não - para a implosão da UE, o ressurgimento do nacionalismo, as alternativas federalistas a defender e reformular, e, enfim, as questões propriamente políticas que tudo isto levanta.

Li com o maior interesse esta tua nota, mas pergunto-me se não estarás disposto a precisar o teu juízo político sobre uma eventual "saída unilateral do euro" e as suas consequências relativamente à sobrevivência da UE. A questão parece-me ainda mais pertinente, agora que pareces pensar - mas posso ter sido eu a ler-te mal - que pões em dúvida a viabilidade de uma hipótese na linha do Münchau, ou, noutros termos, mas afins, na do Syriza (combate dentro do euro; integração orçamental, fiscal e política, etc.).

Abraço

miguel serras pereira

Pedro Viana disse...

Caro Rui,

Obrigado pelo comentário, que adiciona informação importante para decidir o rumo a tomar. Não é claro para mim que a estratégia da "falência do estilo "daqui não saio e daqui ninguém me tira")." seja a melhor opção. Não tenho dúvidas que tal levaria a um boicote do financiamento do Estado Português. Mas, caso este se conseguisse aguentar apenas com o recurso a impostos, o custo de fazer um "tratado da UE(bis) e cria-se um euro(bis) sem o estado-membro indesejável" não seria pequeno para os outros estado-membros. O mesmo se passa quanto à implementação dos pontos 3 e 4. Os outros estado-membros da UE não formam de modo nenhum um bloco coeso. O simples facto de terem de decidir desde os símbolos aos artigos dos novos tratados levaria tal celeuma, que não acredito que durmam direito quando pensam na eventualidade de terem de enveredar por essa via. Portanto, há capacidade de pressão e margem negocial que simplesmente não tem sido explorada, antes de mais porque o actual governo concorda com as medidas do Memorando, mas também porque se delicia com a sua condição de "subordinado favorito" dos poderosos.

Um abraço,

Pedro