Dizia eu que, entre os rebeldes
à portugalidade folclórica, entre os alérgicos à imagem do «bom e trabalhador
povo português», há quem tenha ficado zangado com a brincadeira de mau gosto da
Gaiola Dourada.
Aqui algumas das reações que circulam...
Até ri várias vezes, com risos de várias cores. Quando,
por exemplo, a jovem em plena ascensão social oferece aos seus pais (ele
trabalha nas obras, ela é porteira, claro) um fim-de-semana num castelo. Uma
situação que acho humilhante, mas enfim, certamente cheia de boas intenções.
Durante o jantar, servido por um pinguim, são-lhes servidos pratos muito
“nouvelle cuisine”, mas insípidos, com pouca comida, que nem dá para encher o
buraco de um dente. Eles fazem caretas, poem o jantar de lado, sentam-se no
chão e sacam da gamela de operários... Divertido, não? Divertido e como uma
faca de dois gumes. Esses alarves nem são capazes de apreciar a fineza.
Talvez até me tenha comovido. Quando a jovem faz uma crise
de vergonha social perante o seu namorado, filho do patrão do pai. Aí, pensei: enfim um problema
autêntico: porque é que o facto de ser português é em si vergonhoso, ou tão
degradante? Não: aparentemente isso não foi senão um esboço de interrogação...
Não nos podemos esquecer que isto é uma comédia que escolhe e utiliza
evidências, personagens tipificados e outras caricaturas, isso sem nunca fazer
soprar outro vento que o que aconchega. Não é uma comédia italiana dos anos
60...
Mas o âmago do filme é ainda mais revelador. Quando este
fica conhecido, ainda é pior que no inicio, pois toda a conflitualidade
desaparece. Esses Portugueses bonzinhos são árduos trabalhadores, que não são
reconhecidos pelos seus exploradores, um rico empresário no caso do homem, e os
coproprietários dum prédio burguês do 16ème arrondissement
no caso da mulher. Goza-se com a sua submissão. Eles lutam constantemente, são
pisados, devorados, calam-se e são rebaixados... Sentimos a revolta a
preparar-se. Com efeito, um estranho negócio de herança vem subitamente alterar
as coisas. Tornar-se-ão ricos com uma condição, a de ir viver para Portugal.
Perante o prejuízo financeiro que a sua partida iria causar, a velha
lambisgoia, o casal constantemente sobrecarregado e os outros moradores do
prédio, o patrão e a sua mulher totalmente fora da realidade, todos tentam
retê-los. Aumentam-lhes o salário, são simpáticos, com uma simpatia suja e
sorrisos hirtos... Inicialmente comovidos, os nossos corajosos escravos acabam
por descobrir a verdade e revoltam-se. Fazem-nos crer na subversão de um mundo
–por mais pequeno que seja- mas tudo acaba por voltar à ordem, uma ordem ainda
mais lisa e consensual que antes. Nojento! A vingança: ela suja a rampa das
escadas do prédio com graxa, deixa os pais atabalhoados com os seus filhos
insuportáveis, passa as roupes demais a ferro, para de regar as plantas do
pátio e amua... Ele, que era um artista do bloco, constrói muros tortos. Que
sacrilégio! Sim, conseguiu fazê-lo. Esse diretor de obras, habitualmente tão
rigorosos, sério, tão chato no trabalho, sabota as “suas próprias” obras. Aí sentimos que o que está a
fazer é mesmo grave, ele não aguenta, chegou o grande momento de emancipação
social. Mas não... Ele ficou tão combalido com esse ato contra natura que
regressa a meio da noite para deitar abaixo esse muro inclinado. Talvez nos
revoltemos afinal com os meios que se encontram à nossa disposição, não será? O
facto de estragar o seu trabalho chateia os patrões, é óbvio. Mas aqui, são os
sabotadores que ficam perturbados a nível moral. Não conseguem assumir, isso põe-nos doentes. Essa devoção ao
valor do trabalho, só lhes diz respeito a eles próprios, é muito estranho. Como
se esses imigrantes portugueses trabalhassem duro e silenciosamente não para
obter reconhecimento, mas porque estaria inscrito nos seus genes... Em todo o
caso, não conseguem aguentar, a crise estala por todo o lado mas tudo acaba
bem, com um reencontro social e familiar. Por fim, a jovem e o filho do patrão
regressam ao pais, todos os outros vivem em harmonia, cada um em conformidade
com a sua “natureza”. Cada um fica no seu lugar, porque todos o apreciam.
Porque é que fui ver esse filme? Pelas mesmas razões que
muitos que têm origens portuguesas. Por ser tão raro ver imigrantes portugueses
no cinema. Era intrigante pensar no modo com que seriam representados, vistos,
no que seria contado? Precisamente, interrogo-me sobre o seu silêncio, a sua
aparente submissão, a sua tendência em aceitar passivamente esse suave estatuto
de integrados, de trabalhadores zelados, sem histórias.
Na altura, penso que o filme até passa, que escorrega,
acaricia, afaga. Mas quando volto para casa, sinto nojo, repulsa.
Dentro da sua categoria é uma boa máquina de guerra, ou
mais exatamente um excelente produto, com todos os ingredientes, os cordéis
necessários, e com estratégia. Há de tudo, para todos os gostos, gerações,
graus de integração, escalões sociais... Um filme complacente com todos,
principalmente quando finge a revolta e a “denuncia” de algumas “injustiças”.
Tais como o oportunismo dos patrões e proprietários que fazem tudo para guardar
os seus fiéis tugas, fingindo que gostam deles. Enquanto que o que apreciam é a
sua capacidade de trabalho e de silêncio.
Um filme que agrada. E o pior é que não só agrada, como
posso perceber porquê. Por fim, os portugueses tão diluídos, integrados,
anónimos, representados. É algo raro. Percebo que se possam sentir lisonjeados,
divertidos, provocados e até caricaturados.
Marfadinha
Paris,
23 de Setembro de 2013
2. Porque não vi A Gaiola
dourada
Já nem conto as agressões das quais fui vitima: “Como é que ainda não
foste ver A Gaiola dourada???”. Não, eu não vou ver filmes comerciais
patrocinados por bancos. A publicidade dà-me vontade de vomitar, é a propaganda
do sistema liberal. “Mas mesmo assim, respondem-me, devias ir vê-lo porque fala
dos Portugueses e que é engraçado”. Respondia aos meus interlocutores que me
tinha informado a respeito do filme. As criticas que li eram flácidas e os meus
amigos que o viram, e com quem partilho a paixão do cinema, aconselharam-me a não
ir gastar 10 euros para ir ver Portugueses bonzinhos a tentarem
desenvencilhar-se. A primeira critica que li dizia que o filme era do género telefilme.
Não tenho televisão, não é para ir ver um telefilme ao cinema. A minha recusa
tenaz até me levou a ser acusado de não gostar de “cinema popular”, e de me
enclausurar no “cinema de autor”. Tentei confortar os que pensavam que eu ia ao
cinema para apanhar uma seca. Gosto de comédias, sobretudo italianas, e
recentemente vi filmes romenos que me fizeram rir bastante.
Percebi bem que alguns pensavam que eu tinha inveja do sucesso do
filme, visto fazer “filmes sobre Portugueses”. Sim, trabalho muito sobre a imigração
(também realizei filmes sobre Italianos, Polacos, Romenos, etc.) a partir da
minha experiência de imigrante, criticando a exploração capitalista (perdoem a
utilização deste termo mais que nunca atual) que leva à imigração. Tento,
partindo da memória dos imigrantes, fazer uma história social e política da
imigração. Sei que não é divertido, não está na moda, não é consensual e não está
na ordem do dia. Evidentemente, recusei ser patrocinado por um desses bancos da
aldeia que são os abutres de cada imigração, e que, no caso da imigração
portuguesa, foram estupores autênticos que lucraram do trabalho dos imigrantes
que pensavam no seu regresso como se pensa no paraíso. Disseram-me muito: “é o
primeiro filme que sai no cinema onde se fala dos Portugueses”. Sabia que
vivíamos numa sociedade amnésica, mas não a esse ponto... Não, “A Gaiola
dourada” não é o primeiro filme que fala dos Portugueses no cinema. Em 1967, Christian
de Challonges realizava « O salto », mais tarde houve o magnifico « Gens
des Baraques » de Robert Bozzi ou ainda o « Sans elle » de Ana
da Palma, e João Canijo até realizou « Ganhar a vida », um mau filme
sobre a imigração portuguesa repleto de clichés, e ainda há outros dos quais não
me lembro. Esses filmes foram exibidos no cinema mas os novos-ricos fazem de
amnésicos para fazer-nos acreditar que inventaram a faca de cortar o bacalhau.
Ah, esquecia-me do argumento de peso: “O filme fez muitas entradas”. Desde
quando é que a qualidade de um filme se mede segundo o número de entradas? Porcarias
de Hollywood fazem milhões de entradas sem deixar de ser merda enlatada. Não, não
irei ver o “Bem-vindo à terra dos Tugas”, tal como não fui ver o “Bem-vindo ao
Norte”. E que os amnésicos que fazem storytelling para a TF1 e que estão
prontos a todos os compromissos para mostrar o seu cu se lixem.
José Vieira
23 de Setembro de 2013
3.
Sou um porteiro
que viu a Gaiola da merda, sou mais porteiro que trabalhador da industria do
espetáculo, espetáculo da vida ao qual assisto da minha gaiola negra. Para
dizer a verdade, é uma boa profissão, eu gosto, sou bem pago e tenho tempo para
ler, escrever, montar os meus videozinhos... um pouco como os personagens do
filme... ahah
As mulheres
portuguesas têm os bairros de Paris entre as suas mais... por isso é que
procuro o poder, alguns decidem afiliar-se em partidos sociais-democratas, eu
decidi infiltrar-me nas gaiolas de prédios parisienses esperando doirar a minha
vida.
A conclusão é uma
interrogação: porque é que depois de 7 anos de experiência não me torno
porteiro com um contrato sem prazo, com direito a um alojamento de graça, sem
pagar eletricidade, telefone e internet, e para além disso, deixando
definitivamente de lado os problemas económicos do meu quotidiano? Precisamente
porque apesar do poder do porteiro de controlar os que entram e saem do prédio,
um prédio tem muito mais controlo sobre o porteiro, pois este vive no seu local
de trabalho, e esse local de trabalho transforma-se na sua própria gaiola, uma
gaiola fechada do domingo até ao sábado de manha, onde os outros podem vir
bater para nos pedir que reguemos as suas plantas, os salvemos das suas fugas
de água, façamos as suas compras...ou até fodemos. Nada mau, não?
Eis a triste
realidade, que não é a vida das gaiolas, porque nos, os porteiros, não nos
queixamos, mas a triste realidade da sociologia contemporânea... Acreditem, em
Portugal até os mais sépticos confessam ter gostado do filme... eis a grande
produção do Banco BCP... os bancos também gostam de cultura...Deus realmente não
gosta dos ateus, é por isso que permite coisas destas.
abc
Setembro de 2013
[1] “Complaisant” em francês. A autora faz um jogo de
palavras escrevendo “Con-plaisant”, “con” sendo estúpido e “plaisant” agradável.
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