21/10/13

A Gaiola dourada, ou o regresso da propaganda (II)


Dizia eu que, entre os rebeldes à portugalidade folclórica, entre os alérgicos à imagem do «bom e trabalhador povo português», há quem tenha ficado zangado com a brincadeira de mau gosto da Gaiola Dourada.
            Aqui algumas das reações que circulam...

Saindo da gaiola, um filme complacente[1].


Até ri várias vezes, com risos de várias cores. Quando, por exemplo, a jovem em plena ascensão social oferece aos seus pais (ele trabalha nas obras, ela é porteira, claro) um fim-de-semana num castelo. Uma situação que acho humilhante, mas enfim, certamente cheia de boas intenções. Durante o jantar, servido por um pinguim, são-lhes servidos pratos muito “nouvelle cuisine”, mas insípidos, com pouca comida, que nem dá para encher o buraco de um dente. Eles fazem caretas, poem o jantar de lado, sentam-se no chão e sacam da gamela de operários... Divertido, não? Divertido e como uma faca de dois gumes. Esses alarves nem são capazes de apreciar a fineza.

Talvez até me tenha comovido. Quando a jovem faz uma crise de vergonha social perante o seu namorado, filho do patrão do pai. Aí, pensei: enfim um problema autêntico: porque é que o facto de ser português é em si vergonhoso, ou tão degradante? Não: aparentemente isso não foi senão um esboço de interrogação... Não nos podemos esquecer que isto é uma comédia que escolhe e utiliza evidências, personagens tipificados e outras caricaturas, isso sem nunca fazer soprar outro vento que o que aconchega. Não é uma comédia italiana dos anos 60...

Mas o âmago do filme é ainda mais revelador. Quando este fica conhecido, ainda é pior que no inicio, pois toda a conflitualidade desaparece. Esses Portugueses bonzinhos são árduos trabalhadores, que não são reconhecidos pelos seus exploradores, um rico empresário no caso do homem, e os coproprietários dum prédio burguês do 16ème arrondissement no caso da mulher. Goza-se com a sua submissão. Eles lutam constantemente, são pisados, devorados, calam-se e são rebaixados... Sentimos a revolta a preparar-se. Com efeito, um estranho negócio de herança vem subitamente alterar as coisas. Tornar-se-ão ricos com uma condição, a de ir viver para Portugal. Perante o prejuízo financeiro que a sua partida iria causar, a velha lambisgoia, o casal constantemente sobrecarregado e os outros moradores do prédio, o patrão e a sua mulher totalmente fora da realidade, todos tentam retê-los. Aumentam-lhes o salário, são simpáticos, com uma simpatia suja e sorrisos hirtos... Inicialmente comovidos, os nossos corajosos escravos acabam por descobrir a verdade e revoltam-se. Fazem-nos crer na subversão de um mundo –por mais pequeno que seja- mas tudo acaba por voltar à ordem, uma ordem ainda mais lisa e consensual que antes. Nojento! A vingança: ela suja a rampa das escadas do prédio com graxa, deixa os pais atabalhoados com os seus filhos insuportáveis, passa as roupes demais a ferro, para de regar as plantas do pátio e amua... Ele, que era um artista do bloco, constrói muros tortos. Que sacrilégio! Sim, conseguiu fazê-lo. Esse diretor de obras, habitualmente tão rigorosos, sério, tão chato no trabalho, sabota as “suas próprias” obras. Aí sentimos que o que está a fazer é mesmo grave, ele não aguenta, chegou o grande momento de emancipação social. Mas não... Ele ficou tão combalido com esse ato contra natura que regressa a meio da noite para deitar abaixo esse muro inclinado. Talvez nos revoltemos afinal com os meios que se encontram à nossa disposição, não será? O facto de estragar o seu trabalho chateia os patrões, é óbvio. Mas aqui, são os sabotadores que ficam perturbados a nível moral. Não conseguem assumir, isso põe-nos doentes. Essa devoção ao valor do trabalho, só lhes diz respeito a eles próprios, é muito estranho. Como se esses imigrantes portugueses trabalhassem duro e silenciosamente não para obter reconhecimento, mas porque estaria inscrito nos seus genes... Em todo o caso, não conseguem aguentar, a crise estala por todo o lado mas tudo acaba bem, com um reencontro social e familiar. Por fim, a jovem e o filho do patrão regressam ao pais, todos os outros vivem em harmonia, cada um em conformidade com a sua “natureza”. Cada um fica no seu lugar, porque todos o apreciam. 

Porque é que fui ver esse filme? Pelas mesmas razões que muitos que têm origens portuguesas. Por ser tão raro ver imigrantes portugueses no cinema. Era intrigante pensar no modo com que seriam representados, vistos, no que seria contado? Precisamente, interrogo-me sobre o seu silêncio, a sua aparente submissão, a sua tendência em aceitar passivamente esse suave estatuto de integrados, de trabalhadores zelados, sem histórias.
Na altura, penso que o filme até passa, que escorrega, acaricia, afaga. Mas quando volto para casa, sinto nojo, repulsa.
Dentro da sua categoria é uma boa máquina de guerra, ou mais exatamente um excelente produto, com todos os ingredientes, os cordéis necessários, e com estratégia. Há de tudo, para todos os gostos, gerações, graus de integração, escalões sociais... Um filme complacente com todos, principalmente quando finge a revolta e a “denuncia” de algumas “injustiças”. Tais como o oportunismo dos patrões e proprietários que fazem tudo para guardar os seus fiéis tugas, fingindo que gostam deles. Enquanto que o que apreciam é a sua capacidade de trabalho e de silêncio.
Um filme que agrada. E o pior é que não só agrada, como posso perceber porquê. Por fim, os portugueses tão diluídos, integrados, anónimos, representados. É algo raro. Percebo que se possam sentir lisonjeados, divertidos, provocados e até caricaturados.


Marfadinha

Paris, 23 de Setembro de 2013



2. Porque não vi A Gaiola dourada

Já nem conto as agressões das quais fui vitima: “Como é que ainda não foste ver A Gaiola dourada???”. Não, eu não vou ver filmes comerciais patrocinados por bancos. A publicidade dà-me vontade de vomitar, é a propaganda do sistema liberal. “Mas mesmo assim, respondem-me, devias ir vê-lo porque fala dos Portugueses e que é engraçado”. Respondia aos meus interlocutores que me tinha informado a respeito do filme. As criticas que li eram flácidas e os meus amigos que o viram, e com quem partilho a paixão do cinema, aconselharam-me a não ir gastar 10 euros para ir ver Portugueses bonzinhos a tentarem desenvencilhar-se. A primeira critica que li dizia que o filme era do género telefilme. Não tenho televisão, não é para ir ver um telefilme ao cinema. A minha recusa tenaz até me levou a ser acusado de não gostar de “cinema popular”, e de me enclausurar no “cinema de autor”. Tentei confortar os que pensavam que eu ia ao cinema para apanhar uma seca. Gosto de comédias, sobretudo italianas, e recentemente vi filmes romenos que me fizeram rir bastante.
Percebi bem que alguns pensavam que eu tinha inveja do sucesso do filme, visto fazer “filmes sobre Portugueses”. Sim, trabalho muito sobre a imigração (também realizei filmes sobre Italianos, Polacos, Romenos, etc.) a partir da minha experiência de imigrante, criticando a exploração capitalista (perdoem a utilização deste termo mais que nunca atual) que leva à imigração. Tento, partindo da memória dos imigrantes, fazer uma história social e política da imigração. Sei que não é divertido, não está na moda, não é consensual e não está na ordem do dia. Evidentemente, recusei ser patrocinado por um desses bancos da aldeia que são os abutres de cada imigração, e que, no caso da imigração portuguesa, foram estupores autênticos que lucraram do trabalho dos imigrantes que pensavam no seu regresso como se pensa no paraíso. Disseram-me muito: “é o primeiro filme que sai no cinema onde se fala dos Portugueses”. Sabia que vivíamos numa sociedade amnésica, mas não a esse ponto... Não, “A Gaiola dourada” não é o primeiro filme que fala dos Portugueses no cinema. Em 1967, Christian de Challonges realizava « O salto », mais tarde houve o magnifico « Gens des Baraques » de Robert Bozzi ou ainda o « Sans elle » de Ana da Palma, e João Canijo até realizou « Ganhar a vida », um mau filme sobre a imigração portuguesa repleto de clichés, e ainda há outros dos quais não me lembro. Esses filmes foram exibidos no cinema mas os novos-ricos fazem de amnésicos para fazer-nos acreditar que inventaram a faca de cortar o bacalhau. Ah, esquecia-me do argumento de peso: “O filme fez muitas entradas”. Desde quando é que a qualidade de um filme se mede segundo o número de entradas? Porcarias de Hollywood fazem milhões de entradas sem deixar de ser merda enlatada. Não, não irei ver o “Bem-vindo à terra dos Tugas”, tal como não fui ver o “Bem-vindo ao Norte”. E que os amnésicos que fazem storytelling para a TF1 e que estão prontos a todos os compromissos para mostrar o seu cu se lixem.


José Vieira

23 de Setembro de 2013

3.

Sou um porteiro que viu a Gaiola da merda, sou mais porteiro que trabalhador da industria do espetáculo, espetáculo da vida ao qual assisto da minha gaiola negra. Para dizer a verdade, é uma boa profissão, eu gosto, sou bem pago e tenho tempo para ler, escrever, montar os meus videozinhos... um pouco como os personagens do filme... ahah

As mulheres portuguesas têm os bairros de Paris entre as suas mais... por isso é que procuro o poder, alguns decidem afiliar-se em partidos sociais-democratas, eu decidi infiltrar-me nas gaiolas de prédios parisienses esperando doirar a minha vida.


A conclusão é uma interrogação: porque é que depois de 7 anos de experiência não me torno porteiro com um contrato sem prazo, com direito a um alojamento de graça, sem pagar eletricidade, telefone e internet, e para além disso, deixando definitivamente de lado os problemas económicos do meu quotidiano? Precisamente porque apesar do poder do porteiro de controlar os que entram e saem do prédio, um prédio tem muito mais controlo sobre o porteiro, pois este vive no seu local de trabalho, e esse local de trabalho transforma-se na sua própria gaiola, uma gaiola fechada do domingo até ao sábado de manha, onde os outros podem vir bater para nos pedir que reguemos as suas plantas, os salvemos das suas fugas de água, façamos as suas compras...ou até fodemos. Nada mau, não?

Eis a triste realidade, que não é a vida das gaiolas, porque nos, os porteiros, não nos queixamos, mas a triste realidade da sociologia contemporânea... Acreditem, em Portugal até os mais sépticos confessam ter gostado do filme... eis a grande produção do Banco BCP... os bancos também gostam de cultura...Deus realmente não gosta dos ateus, é por isso que permite coisas destas.

abc

Setembro de 2013





[1] “Complaisant” em francês. A autora faz um jogo de palavras escrevendo “Con-plaisant”, “con” sendo estúpido e “plaisant” agradável.

0 comentários: