À excepção da primeira afirmação do texto ("Não estando apostados no resgate de 'qualquer verdadeiro marxismo'"), que, sendo louvável, poderia funcionar como factor de diversão no debate; da fórmula "crítica intransigente de tudo o que exixste", na medida em que, sem mais, pode sugerir que o propósito enunciado não pode apoiar-se em nada que exista, e do voto mítico, apolítico e acósmico de que nos "possamos libertar do reino da necessidade", creio que a substituição da palavra "comunismo" pela palavra "democracia" permitiria formular não menos vigorosamente uma perspectiva política de transformação radical, e alargaria, apesar de tudo, o leque dos cidadãos dispostos a debater os termos da sua interpretação reflexiva e prática.
Que objecções substanciais, e isentas de superstição devota, poderia um comunista, entendido como o texto o identifica, pôr à formulação que a seguir transcrevo — ou à prioridade daquilo a que tenho chamado "o critério da democracia", estabelecendo que esta é necessariamente, tanto no plano do concebível como do praticável, anticapitalista, do mesmo modo que o único anticapitalismo que vale a pena será necessariamente democrático?
Interessa-nos sobretudo a discussão contemporânea acerca dos usos e possibilidades do comunismo, enquanto palavra que designa um horizonte igualitário e emancipatório, mas também uma prática subversiva específica. Não têm sido poucas as vezes em que essa palavra surgiu para traçar um terreno de demarcação face às diversas variantes de liberalismo que estruturam o espaço público e falam ininterruptamente de cidadania e pleno emprego, de soberania e crescimento. O comunismo é para nós o movimento real que supera esse estado de coisas, que desnaturaliza as relações sociais vigentes, que interrompe o curso habitual da história para desenhar com um gesto livre a possibilidade de uma vida outra, de um mundo para lá do Estado e do trabalho assalariado, assente na partilha e na produção comum. É a essa luz que lemos a teoria e a história do movimento operário, que nos procuramos apropriar de ferramentas e conceitos de crítica tanto da economia política como das formas de poder, que nos empenhamos nos combates do nosso tempo e que insistimos em disputar uma palavra que continua a significar para nós exactamente o contrário daquilo que veio a representar durante grande parte do século XX.
44 comentários:
Tudo um conjunto de banalidades sem qualquer sentido!
É a evolução tecnológica exponencial que vai tornar possível o comunismo. A evolução da automação, da robotização, da inteligência artificial e da computação vão acabar com todos os empregos. Porque nenhum ser humano será capaz de competir com uma máquina em qualquer tipo de produção.
Donde, sem empregos, não há salários. Sem salários, não há poder de compra. Sem poder de compra não há vendas. Sem vendas, não há lucros. Sem lucros não há propriedade privada dos meios de produção....
Os meios de produção vão estar à disposição de toda a sociedade, obviamente cada um terá a uma determinada quota de produção.
Esqueçam os Marxs e outros tipos que viveram há mais de 150 anos...
Caro Miguel, o melhor é mesmo leres o livro para podermos discutir isto com alguma profundidade. Uma crítica não é (de todo) uma negação e o reino da necessidade não é o mesmo que a necessidade, pelo menos na tradição filosófica com que esta introdução dialoga. Como certamente saberás, já se viveu (há não muito tempo) em condições em que pouco sobrava do rendimento familiar/individual uma vez supridas (frequentemente de forma insuficiente) as necessidades fisiológicas elementares. Estamos por isso menos submetidos hoje ao 'reino da necessidade' do que estavam os nossos antepassados e há boas razões para achar que o problema reside hoje em dia muito mais nas relações sociais de produção do que na capacidade produtiva existente (como aliás afirma o Diogo, retomando fundamentalmente um argumento marxiano). A democracia está muito bem, mas sem tocar na propriedade e nas relações sociais continuamos no domínio da igualdade formal, jurídica, e não no da partilha e da produção comum, que são precisamente o material de que se faz o comunismo.
Caro Ricardo,
já te respondi em parte num comentário que coloquei na caixa dos mesmos do teu post.
Quanto ao resto, o meu ponto é que, sendo as relações de produção e organização da economia relações de poder,são relações políticas fundamentais, e, sendo a democracia o exercício igualitário e comum do poder político governante, é uma mistificação reivindicarmo-nos da democracia sem reivindicarmos e praticarmos ao mesmo tempo a democratização radical da economia (política ) que nos governa.
Abraço
miguel(sp)
Ola aos dois,
E' claro que é necessario ler o livro. Entretanto, eis algumas notas de reacção à vossa conversa :
1. Tanto quanto percebo, a "critica" do Miguel deve ser entendida no sentido etimologico, e não como uma mera contestação. Com efeito, uma das formas de apreciar criticamente (la esta) os méritos e as limitações da hipotese "comunista" em debate, consiste em procurar compreender até que ponto ela realiza a democracia. Colocar a pergunta não me parece indiciar uma resposta afirmativa ou negativa, mas apenas colocar mais uma exigência na definição, e no bom sentido, que é o do rigor...
2. Se tentarmos, dois segundos que seja, abstrairmo-nos de Marx, que pegou na questão do comunismo quando ela ja estava na idade provecta (com mais de mil anos !), vamos verificar que ela não é radicalmente distinta da questão da democracia, nem alias da questão das liberdades (formais como materiais). Para os antigos, a questão surge precisamente na raiz das interrogações sobre a organização politica (em Platão, em Aristoteles, etc.) Mas também não se confunde completamente com estas interrogações. Sera antes uma forma de as colocar sob um prisma critico : a verdadeira democracia, ou seja, o poder efectivo da comunidade, depende, ou não depende, de uma administração comum dos bens, em detrimento da sua apropriação ? E' claro que a resposta a esta pergunta é relativa. A verdadeira democracia implica, numa certa medida, um pouco de comunismo (bom, digamos, a administração comum de alguns bens). Implicara a administração comum de todos os bens ? Esta é que devia ser a questão e, tanto quanto percebo, é esta a reflexão a que convida o Miguel. Dito de outra forma, questionar o comunismo de maneira inteligente implica interrogarmo-nos sobre o que ele permite alcançar efectivamente em termos de realização das liberdades...
3. Historicamente, que eu saiba, nenhuma sociedade humana pôs em pratica um comunismo integral. Neste sentido a frase "o comunismo nunca existiu" é um excelente achado. Não apenas porque remete para o primeiro nivel de leitura, que nos leva a lembrar que estamos a falar de uma "utopia", mas também porque nos convida a ir mais longe e a acrescentar "e dai ?".
Abraço para os dois.
addenda :
Bom, na verdade a referência à utopia é ja um segundo nivel de leitura, depois do "clin d'oeil " ao célebre "o fascismo nunca existiu". Na realidade o titulo é mesmo um achado.
Caro João,
belíssimas questões, e precisão preciosa a que introduzes logo no início, exprimindo melhore do que eu próprio o alcance do exercício que propus.
Embora eu tenda a não usar a palavra como divisa, poderia dizer, na linha do que escreves, que o "comunismo", ou o chamado "socialismo", sobriamente entendido, é, uma dimensão, ou uma condição necessária da democracia. E, de facto, o "critério da democracia" que proponho é isso mesmo que diz: são desejáveis e necessários todos os ingredientes "anticapitalistas" — ou "comunistas" — que realizem e expandam a democratização das relações de poder classistas e desiguais.
Finalmente, pões um problema pofundo, do qual teremos de voltar a falar: o da auto-limitação da democracia (e das suas dimensões várias, como as "socilaistas" e "comunistas"), enquanto exigência que o poder político democrático, a regulação democrática, o governo dos cidadãos iguais, deve, sob pena de soçobrar no seu contrario, impor a si próprio. Esquematicamente: não basta que todos participem igualitariamente nas decisões ou na adopção das leis que os governam — é necessário também que NÃO decidam ou legislem sobre todas as dimensões da existência comum até ao mínimo pormenor. A nossa existência não se esgotará nunca na cidadania — e esta, por maioria de razão se se quiser governante, não pode esquecê-lo, para não dar lugar a uma arregimentação totalitária que assinaria a sua sentença de morte. Teríamos aqui muito pano para mangas, não te parece?
Abraço
miguel(sp)
Não ha duas sem três...
Fui ver os comentarios no outro post. Afinal, diz o Ricardo, o titulo não tem ironia nenhuma... A sério ? não pensaram no livro do Eduardo Lourenço, nem um bocadinho ? A mim, ocorreu-me de imediato a referência. E se calhar, não esta assim tão longe do proposito do livro.
A menos que o livro pretenda situar-se deliberadamente numa perspectiva a-historica, o que seria surpreenndente para quem se reclama de Marx. Mas como disse, vou ler...
Ola Miguel,
Como sabes, sou um adepto da maxima que quer que não passemos de anões às cavalitas dos antigos.
Nesta discussão, simplifiquei um bocado a coisa, até porque seria necessario evocar também a desconfiança de Platão e de Aristoteles em relação à democracia (desconfiança que tende a ser mal compreendida hoje em dia, pelo menos eu acho).
No entanto, acho que so temos a ganhar em confrontar as nossas ideias com as dos antigos. Ora repara que, para eles, a questão politica não se distingue da questão "ética" ou "moral". Devemos, ou não, procurar a felicidade nos bens e, se devemos, sera que a melhor forma de o fazer é atravês da sua apropriação, ou antes atravês do seu uso em comum ?
Portanto a questão (por exemplo na Politica de Aristoteles) consiste mesmo em saber se determinada forma de organização politica permite (ou não) a mais feliz realização de todos os cidadãos, quer do ponto de vista do exercicio das suas "liberdades" (como diriamos hoje), quer do ponto de vista da repartição dos bens. Mas, para eles, as duas coisas não se distinguem radicalmente, antes são duas faces da mesma moeda.
Repara que não estou a afirmar, muito longe disso, que Marx deve ser esquecido e que esta tudo dito nos antigos. Apenas defendo que muitas das aporias que encontramos ao ler Marx (e outros) podem ser mais facilmente resolvidas se atentarmos ao facto de ele (e outros) falarem de questões que não criaram ex nihilo, e sobre as quais ja tinha corrido muita tinta - e não so, infelizmente, também muito sangue - quando ele(s) pegou(aram) nelas.
Abraço
Caro João,
a minha forte costela aristotélica sente-se reconfortada. É, sem dúvida, como dizes.
Duas primeiras sugestões de leitura para quem aqui passar e tiver interesse pela questão: M. I. Finley, Démocratie antique et démocratie moderne, com um importante prefácio de P. Vidal-Naquet, Paris, Payot (várias edições até hoje), e C. Castoriadis,« La polis grecque et la création de la démocratie » in Domaines de l’homme – Les carrefours du labyrinthe II, Paris, Éditions du Seuil, collection Points, 1999.
Um abraço
miguel(sp)
Há gostos para tudo: parece um pouco, digamos, surpreendente, constatar-se a promoção sem freio da ilusão lenino-trotsquista (" o marxismo do nosso tempo "...) contra a marginalização do pensamento autónomo( que galvaniza as catacumbas de Alepo-Siria,Hoje)e ensaiando também a desvalorização do esplendor do proudhianismo estilizado via Vaneigem e Riesel nas ruas tomadas pelo Occupy Wall Street, em Washington ou Madrid e Barcelona...
Mas, o essencial está na determinação para formular uma alternativa, tout court, se bem me faço entender." O medo reiterado da heresia acaba por cair no dogmatismo mais insustentável e paralizante. Estou convicto que o socialismo só pode crescer na ordem intelectual pela emulação, a pesquiza, a luta das ideias; que não há que temer o erro, sempre reparado com o tempo pela própria experiência, mas, sim,a estagnação e a reacção; que o respeito pelo humano sub-entende o direito de tudo conhecer e a liberdade de pensar", ( Victor Serge, 1933).Niet
Bom dia,
Sou menos versado do que vocês no Castoriadis mas estou a tratar de colmatar esta lamentavel lacuna e ja deu para perceber, não so que ele tem uma leitura muito fina e didatica dos antigos (que lia no original se percebi bem), mas que esta leitura é central no seu pensamento.
Quanto ao Finley, é de facto de leitura obrigatoria. O livro que referes (muito bom) ou qualquer outro. Faz parte dos autores que nos abrem mesmo os olhos. Pelo menos a mim. Juntar-lhe-ia talvez o J.P. Vernant.
Abraço matinal
Viva, João.
Para nos ficarmos pelas leituras introdutórias, deixa-me servir aqui, à laia de apertivo, o link da homenagem fúnebre de P. Vidal-Naquet a Castoriadis: http://www.castoriadis.org/fr/readText.asp?textID=2
Do próprio Castoriadis, apresentando-se a si próprio, em momentos distintos e em termos sintéticos, os seus prefácios ou introduções às colectâneas de artigos La société bureucratique I, Le contenu du socialisme e L'expérience du mouvement ouvrier I — editados na 10/18 e agora pelas Éditions du Sandre, sob o título Ecrits politiques 1945-1997, em quatro volumes ( Quelle démocratie 1 e 2 [2012], La question du mouvement ouvrier 1 e 2 [2013]), publicação organizada por E. Escobar, M. Gondicas e P. Vernay).
A apresentação de conjunto mais completa que conheço do pensamento de Castoriadis é Cornelius Castoriadis : réinventer la politique après Marx, de A. Tomès e Ph. Caumières, Paris, Seuil, 2011. E ler-se-á com proveito também a biografia que acaba de publicar — e eu de ler — François Dosse, Castoriadis, une vie (La Découverte, 2014).
Abraço matinal também para ti
miguel(sp)
Olà, João Viegas: Há um alfarrabista na Rue Gay-Lussac, no canto em frente do início da Rue D´Ulm, no Cinquième Arrondissement, que tem tudo sobre Castoriadis e os epígonos da grande revista " Socialisme ou Barbarie ". Na Abebooks e na Amazon aparecem boas pechinchas também,de vez em quando, incluindo exemplares icónicos das revistas subsequentes onde escreveu Casto, a Textures e a Libre. Salut! Niet
Caro João, o título corresponde exactamente ao que escreves aqui: 'historicamente, que eu saiba, nenhuma sociedade humana pôs em pratica um comunismo integral. Neste sentido a frase "o comunismo nunca existiu" é um excelente achado. Não apenas porque remete para o primeiro nivel de leitura, que nos leva a lembrar que estamos a falar de uma "utopia", mas também porque nos convida a ir mais longe e a acrescentar "e dai ?"
Trata-se, mais do que de uma citação, de um desvio da fórmula enunciada por E. Lourenço, uma vez que esta era abertamente irónica (mas não tão abertamente que não tenha sido lida literalmente por alguns) e a do livro é literal. Sendo que o comunismo não é uma outra palavra para socialismo e este não é (supostamente) outra palavra para capitalismo de Estado, pelo que se trata aqui de resgatar um sentido radicalmente rigoroso do termo, contra a sua utilização banal que o faz equivaler à experiência soviética.
A ideia de ir buscar à antiguidade uma genealogia do comunismo é sedutora, mas confesso que os esforços que conheço nesse sentido são altamente insatisfatórios. Estamos a falar precisamente do quê?
E, já agora, o que é que se pressupõe exactamente como 'democratização radical da economia' a partir do momento em que admitimos que existe uma esfera privada a preservar da ingerência legisladora?
Eu tenho para mim que o comunismo é também a abolição do Direito, da coerção, de qualquer forma de especialização, incluindo a do exercício da autoridade.
Ora meus amigos, vamos por partes :
1. Caro Niet : eu sei bem disso e que, de uma maneira geral, os livros do Castoriadis se encontram por ai, mesmo os que estão esgotados. Comprei ja alguns e comecei, não sei bem porquê, pelo Carrefours du labyrinthe IV. A questão é mais falta de tempo uma vez que, como sabe (ja nos vimos por aqui ?), no Vème arrondissement, estamos drasticamente reduzidos a 27 horas/dia.
Abraço
Ora meus amigos, vamos por partes :
1. Caro Niet : eu sei bem disso e que, de uma maneira geral, os livros do Castoriadis se encontram por ai, mesmo os que estão esgotados. Comprei ja alguns e comecei, não sei bem porquê, pelo Carrefours du labyrinthe IV. A questão é mais falta de tempo uma vez que, como sabe (ja nos vimos por aqui ?), no Vème arrondissement, estamos drasticamente reduzidos a 27 horas/dia.
Abraço
2. Caro Ricardo :
Ironico ironico - ironico ao ponto de me custar a acreditar que seja verdade - seria que os autores do livro não tivessem contado com o eco que o titulo faz à satira do Eduardo Lourenço, pois é por demais evidente que um argumento possivel contra o proposito do livro (proposito que, quanto a mim, é interessante, isto não esta em causa) poderia consistir precisamente em acusar os autores de esquecer, ou de ocultar, que a experiência historica da URSS (entre outras) esteve intimamente ligada ao ideal comunista. Que tenha traido esse ideal, ou que o tenha desvirtuado, posso entendê-lo, mas fazer como se não tivesse existido nada, ou como se não tivessem ocorrido os desvios que sabemos é, enfim, digamos... proximo do que o Eduardo Lourenço procurou satirizar na época em relação ao fascismo conservador...
Não estou a dizer que faço inteiramente minha esta critica mas, enfim, na era do marketing e da publicidade triumfantes, ninguém se lembrou que o titulo do livro podia ser lido desta maneira ?
Mas deixemos isso, que é pura forma. Como digo, marketing, logo desprezivel.
3.1. Caro Ricardo,
A tua observação sobre “a ideia de ir buscar à antiguidade uma genealogia do comunismo”, que te parece “sedutora mas insatisfatória” parece-me importantíssima e um bom ponto de partida para uma discussão fértil, que terá de ser mais larga do que o permitido neste espaço
de comentarios.
Com efeito, contrariamente ao que dizes, o comunismo, como ideia, nasce mesmo na antiguidade e é debatido já na altura em termos que não são substancialmente diferentes dos de Marx, nomeadamente em Platão (na República e a seguir nas Leis) e por Aristóteles (na Política). Trata-se muito precisamente de saber se a propriedade (duma certa forma, pode dizer-se que a expressão “propriedade privada” é um pleonasmo e que a expressão “propriedade pública” um contrasenso) é um regime justo de repartição dos bens. A única diferença é que, para os antigos, o problema não aparece no meio de uma discussão sobre “economia política”, pois esta pseudo-ciência nascida com A. Smith não faria qualquer sentido para eles. Mas ainda assim, eles debatem da questão de saber quais são as vantagens e os inconvenientes da apropriação dos bens, em termos de justiça, ou seja de justa repartição dos bens entre os cidadãos. E as respostas que dão continuam actuais (não definitivas, mas actuais). Acho óptimo ler Marx e não hesito em recomendá-lo a todos. No entanto, suponho que encorajarás qualquer leitor de Marx a ler as teorias económicas de Ricardo, que são um dos pontos de partida para Marx elaborar a sua teoria económica. Pois bem, as mesmas razões deviam levar-te a ir ver como é que a questão do comunismo é debatida pelos antigos. E não só pelos antigos : durante a Idade Média, a querela da propiedade privada é uma questão central, e os movimentos populares que se reclamam na altura do franciscanismo não são radicalmente diferentes das revoltas comunistas da nossa idade capitalista…
Mas exemplifiquemos, porque seria pena que achasses que as observações acima são meros precisiocismos, sem qualquer correspondência com a prática. Dizes no teu comentário : “E, já agora, o que é que se pressupõe exactamente como 'democratização radical da economia' a partir do momento em que admitimos que existe uma esfera privada a preservar da ingerência legisladora?”. Pois bem, a tua frase levanta dificuldades que seriam mais faceis de ultrapassar de voltássemos a colocar as coisas como os antigos. A antinomia “público/privado” tem a ver com forças, e não com bens. Um privado é, tão só, um cidadão que não pode movimentar sozinho a força de todos (a força pública), que é a da lei. Já em termos de bens, seria mais correcto falar na antinomia “próprios/comuns” (a expressão “comunismo” deriva de “comum”). Ora bem, como é óbvio, um cidadão privado está submetido à lei, ninguém contesta este ponto. A questão é saber até que ponto é justo que ele ceda perante a força pública. Se dissermos que é sempre justo, estaremos a acreditar uma certa forma de totalitarismo, e a esquecermo-nos de que a força pública e a lei visam preservar a liberdade dos cidadãos. Mas esta questão não tem necessariamente a ver com a do regime dos bens. Este dependerá antes da questão de saber até que ponto os bens devem ser próprios, ou seja em que medida é legítima a sua apropriação ? Questão moral também, mas distinta etc.
(continua)
3.2
(continuação)
Quando leio o que dizes sobre o direito, fico ainda mais convencido do que acabei de explicar. A tua reacção é sintomática (e vulgar), mas infelizmente é completamente contraproducente, em termos de compreensão da nossa realidade social, e até das próprias teorias socialistas e comunistas de que te reclamas. Contrariamente ao que se depreende do teu comentário (que corresponde à vulgata infelizmente) o direito não é, ou pelo menos não é primariamente, nem principalmente, um conjunto de regras coercivas que visam reger condutas. O direito é, antes de mais nada, a arte de repartir os bens entre os homens, arte toda ela impregnada da noção de igualdade. Isto também vem em Aristóteles. Por comodidade, e talvez também porque é difícil ler e compreender os antigos, habituámo-nos a considerar que a exigência de igualdade nasce com as revoluções liberais e que antes disso se vivia num mundo estático, hierarquizado, morto, e profundamente desigualitário. Nada mais errado. E, sobretudo, nada mais lamentável do que a cegueira com que muitos “socialistas” e “comunistas” ignoram a cultura clássica e, com ela, as raizes das teorias em que eles acreditam, impededindo-se assim de pensar com mais rigor e de agir com mais consequência.
De resto o próprio Marx (que, como tu, concebia o direito como um mero aspecto da super-estrutura, ou seja como o resultado de um equilíbrio de forças, isto é infelizmente verdade, embora esta concepção seja absurda e redutora), não se formou intelectualmente estudando as antigos ? É claro que se formou !
Mas enfim, hei de voltar ao tema.
Abraços a todos
Caro Ricardo,
uma vez que fui eu, salvo erro, que usei a fórmula "democratização radical da economia", gostaria de precisar o seguinte, sem me preocupar por agora com a tua troca de ideias com o João Viegas.
"Democratização radical" da economia significa que o poder económico (assim chamado) é, na realidade, um poder político maior e garantido por toda a organização e aparelhagem de Estado do capitalismo. Assim, a repolitização democrática da economia política da qual muitas vezes tenho falado, se bem te lembras, implica a devolução da esfera económica ao espaço público de deliberação e decisão dos cidadãos comuns, bem como a democratização a nível da empresa das actuais relações de poder. Mais ainda, implica, a meu ver, uma radical democratização do mercado através de uma efectiva igualização dos rendimentos. Tal é a dimensão, neste domínio, "comunista" da cidadania governante.
Mas isto é uma coisa: outra é dizer que é possível construir uma sociedade sem instituições nem direito, sem regras vinculativas, sem poder político e sem exercício político ou funcionamento instititucional de regulação/direcção da economia. A cidadania governante não é a negação do poder político nem a sua abolição, mas o seu exercíco igualitário, regular e responsável.
Do mesmo modo, não vejo como pode uma sociedade que organize politicamente a autonomia individual e colectiva não distinguir níveis públicos de exercício formal do poder político e esferas "privadas" ou "reservadas" da existência colectiva e individual. Um café não é uma assembleia ou conselho de cidadãos que decidem explicitamente do seu próprio governo, a casa que cada um habita com aqueles que escolheu (e o escolheram) para esse efeito não é uma reunião geral de trabalhadores ou um conselho de empresa — nem sede de uma magistratura electiva ou sorteada. A cidadania governante da democracia requer espaços, politicamente delimitados ou balizados, que não sejam teatro de decisão e demiberação política, embora os usos e costumes que engendram tenham efeitos políticos e sejam influenciados em profundidade pelo espaço público democrático e pela sua arquitectura.
A estes e outros propósitos, seria bom que os que se afirmam comunistas, partidários do teu comunismo, dessem provas de uma sobriedade racional, sem a qual… estamos feitos ao bife, ou as soluções ideais podem degenerar em males maiores ou superstição obscurantista. Não é o teu caso, por certo — mas, por vezes, poderias, talvez, explicitá-lo melhor.
Abraço
miguel(sp)
Mas João, o que Aristóteles possa ter escrito sobre o Direito é apenas um dos juízos possíveis sobre o tema e eu tampouco utilizei ou utilizo uma noção como a de super-estrutura. Tenho sérias dúvidas que a minha posição sobre o Direito seja a habitual e vulgar, mas cada um tem os seus hábitos. A minha inspiração a esse respeito é o trabalho de Pashukanis, que defendeu precisamente a filiação do Direito na forma-mercadoria. De resto, essa distinção entre a liberdade privada e força pública assenta numa naturalização do indivíduo e da sua separação face aos outros que me parece ahistórica. Como poderia ser próprio o que é produzido em comum? E o que é que, numa economia moderna, não é produzido em comum?
Acho que há diferenças substanciais e pertinentes entre o que dispõe Platão em «A República» e o que pensa Marx, mas fiquei pouco esclarecido pelas semelhanças que sugeres (sendo que de facto esta caixa de comentários se presta mal a isto).
Evidentemente que pensámos na ressonância do título de Eduardo Lourenço, mas é precisamente a «filiação comunista» da União Soviética que este livro põe em causa e vejo-me forçado a repetir que esta discussão só pode ter algum interesse tendo lido o seu conteúdo e não apenas o título. Mas terei todo o interesse em discuti-lo contigo.
Caro Miguel, a sobriedade racional etc. e tal, coiso. Não me revejo nos termos em que enuncias os problemas e não partilho os teus juízos sobre a impossibilidade de organizar a vida em comum sem instituições especializadas, representantes e governantes. Acho que tudo isso são realidades históricas sujeitas à erosão e passíveis de dar lugar a outras realidades históricas, assentes noutro tipo de relações sociais. Quando falo do comunismo não imagino o capitalismo sem patrões nem o Estado liberal repleto de bandeirinhas vermelhas, mas algo radicalmente novo, resultante de conflitos e escolhas imersas na complexidade do processo histórico, que transporta consigo uma gramática política própria, novos padrões de relações sociais, meios e fins difíceis de delinear com precisão, mas que devemos imaginar substancialmente diferentes dos que nos são familiares (e é a essa luz que noções como público e privado podem ser questionadas e a sua historicidade sublinhada). A nossa divergência não é por isso apenas relativa à escolha de palavras, pelo menos no que concluo do que tu escreves. Mas o mais importante é que continuemos a discussão.
Caro Ricardo,
talvez as nossas divergências mereçam discussão. No entanto, é necessário que não me atribuas posições favoráveis à representação e à distinção entre governantes e governados, etc., realidades e formas de organização da sociedade que sempre tenho combatido.
O ponto é que, embora subscreva a tua ideia de que não podemos antecipar a forma das relações sociais que resultariam da instauração de formas de governo igualitárias (igualitariamente exercidas e participadas), não me parece possível uma sociedade sem poder político, sem instituições e sem lei(s). Sem decisões e sem escolhas vinculativas, se quiseres. Posso conceber uma sociedade e relações sociais em que todos participam nas decisões que os afectam colectivamente e exerçam igualitariamente esse poder (este não é necessariamente sinónimo da dominação que o monopoliza em benefício de uma classe). Estou disposto a bater-me por ela. Mas não concebo uma sociedade sem decisões ou sem poder, sem formação ou socialização. Talvez seja por isso que falo de democracia ou cidadania governante, e tu falas de comunismo. Mas sinceramente não vejo como podes tu propor seriamente, se é disso que se trata, relações sociais não organizadas, assembleias em que não haja regulação das intervenções, automação da produção sem direcção da mesma. Se não é esta a tua proposta, então torna a pôr-se o problema: que organização das reelações sociais, que regimento das assembleias, que direcção da produção, que mecanismos de distribuição, etc.? O que faz com que das três uma: ou a resposta é o nada, a negação da pertinência da pergunta; ou é a autonomia plena da cidadania democrática autogovernada; ou os aparelhos classistas e hierárquicos de governo e exercício do poder. Se a tua ideia, ao contrário do que tendo a julgar até aqui, for o nada — o que importa é destruir o capitalismo no registo do pouco importa como e do vale tudo, porque, depois, logo se verá, e o comunismo decorrerá automaticamente da ruína da actual sistematização das relações de poder —, devo dizer-te que não a subscrevo nem adopto, por muitos que sejam os pontos de partida que tenhamos em comum.
Abraço
miguel(sp)
Ola,
Muito rapidamente, que isto de facto pediria mais tempo :
1. Ricardo, o que eu digo sobre a tua forma (e não so tua) de te referir ao direito não se limita à teoria da superestrutura. Tende-se hoje a conceber o direito como um conjunto de regras impostas pela força. Isto é uma concepção muito discutivel. Os antigos (e não apenas Aristoteles) não concebiam nada o direito desta forma, mas antes como uma arte que visa alcançar uma justa repartição dos bens. Talvez por isso, eles não esbarravam com as dificuldades que os modernos encontram para distinguir o direito da moral (e da politica).
2. Mas precisamente, o que é uma forma de a-historicismo, é fazer como se a equivalência entre "apropriação" e "realização da liberdade individual (contraposta à da colectividade)" fosse um dado eterno, e não uma construção mental acabada apenas no século XVII. Os antigos não pensavam nada desta forma. Para eles, os bens, que se trata de repartir, não se confundem com as pessoas, e nada diz a priori que esses bens têm vocação para ser possuidos ou administrados em propriedade. As justificações da propriedade em Aristoteles (e também no segundo Platão, mas é menos obvio), têm a ver com a preocupação de assegurar que os bens sejam administratdos e cuidados em beneficio de todos. Portanto as respostas que os antigos deram à questão não andam nada longe das preocupações de Marx. Este apenas retoma uma velha questão, que coloca num contexto novo, o do século XIX e do triumfo do liberalismo de cariz burguês.
Mais uma vez, não se trata de dizer que Marx não disse nada de importante. Muito longe de mim defender tal absurdo. O que digo, é que vamos compreender melhor o que diz Marx, e talvez resolver mais facilmente as dificuldades levantadas pelo seu pensamento, se o pusermos em perspectiva, em vez de o lermos como se se tratasse da revelação de uma doutrina radicalmente nova.
Abraço
Ola de novo,
Mas no fundo, caro Ricardo, aceito perfeitamente a tua pergunta, e mais acho que por vezes ainda são as maiores simplificações que acabam por clarificar as coisas.
Assim sendo cabe perguntar : no fundo, porque é que queremos "direitos", para fazer o quê ao certo ? Porque é que a maior parte das revoluções procuraram estabelecer direitos (muitas delas foram burguesas, é certo, mas não so, vê a comuna de paris, ou a revolução de 1917, qual foi a primeira coisa que fizeram ? conferir direitos...) ?
Sera um logro ? Desconfio que não estas longe de pensar que é. Deveriamos então lutar apenas pelo resultado final da plena realização desses "direitos" ? Pelo que vem depois ? Pela instauração imediata do paraiso terreal ? Ou então lutar por eles também, mas considerando-os como meros instrumentos, como armas de combate, como uma forma de estabelecer relações de poder passageiras mas necessarias, à maneira da "ditadura do proletariado" ?
Sim, no fundo, estas perguntas são legitimas. Como é que tu respondes ?
E repara que esta questão não é estranha aos antigos. Alias, voltemos às bases, a ameaça de secessão da plebe, em Roma, tem tudo a ver com esta questão...
Abraço
Caro Ricardo,
deixa-me só acrescentar à laia de post-scriptum que creio as nossas divergências nãõ-antagónicas, tendo presente que sempre concordámos em que os "fins" ou objectivos fundamentais são inseparáveis do modo e da organização das lutas e, em geral, da acção que os prefigura ou, na realidade, actualiza, comunica e veicula. Ora, quanto a este ponto, estarás de acordo que sem democracia de base na acção, sem participação igualitária na decisão e deliberação da acção, tudo o que poderemos conseguir é a perpetuação do teu "o comunismo nunca existiu", e isso tão certamente como semelhante resultado é "exactamente o contrário" do que visas e nos propões. No fundo, é só isto, embora não menos do que isto, o que aqui tenho vindo a tentar dizer.
Abraço
miguel(sp)
Caro João, ao que parece na antiguidade em que viviam os antigos muitas pessoas eram efectivamente consideradas bens, possuídas por outros e obrigadas a trabalhar às suas ordebs. É evidentemente tudo muito discutível, mas vejo mal como é que se pode considerar o Direito outra coisa que não a formalização de uma determinada correlação de forças. Pensava Aristóteles que o Direito resultava simplesmente de soluções tecnicamente óptimas para a repartição dos bens conforme o interesse geral? Nesse caso parece-me que não o pensava particularmente bem, ou pelo menos que isso se afigura aqui e agora como uma forma extremamente ingénua de ver as coisas. Neste momento sinto que a nossa divergência diz sobretudo respeito à tua leitura do pensamento de Marx, que me parece um pouco apressada, uma vez que a propriedade é aí interpretada no contexto muito mais vasto das relações sociais de produção e não tanto no das relações jurídicas.
Ainda para o João (só li o último comentário já depois de ter publicado a minha resposta ao comentário anterior, uma vez que este formato não ajuda muito): o Direito só pode ser concebido no quadro da soberania, de uma separação entre governantes e governados. Por isso é que se exigem/reivindicam direitos e se luta pelo seu reconhecimento e concretização. Nada disso tem qualquer mal e é evidentemente um terreno de conflito no quadro do capitalismo e do Estado. Mas o comunismo seria precisamente um modo de produção e uma gramática política concebida para lá do capitalismo e do Estado, que anularia a necessidade do Direito ao anular as separações que lhe deram origem historicamente. Escusado será dizer que existe forçosamente (no meu entender) uma dialética entre as formas históricas que nos rodeiam no presente e as formas históricas que podemos conceber e projectar no futuro, ou seja, que são as escolhas que fazemos no âmbito da nossa luta contra a exploração capitalista e contra a dominação estatal que podem dar forma a relações sociais de outra natureza, transitórias, precárias, fluídas, ambíguas, híbridas, inacabadas MAS, e este é o ponto, que possam ser pensadas fora da esfera de racionalidade e de valores que nos é imediatamente familiar. A partir dela, mas para fora dela, se me faço entender. E esse esforço de imaginação e crítica é algo indeterminável numa caixa de comentários de um blog como num livro cujo título é «O comunismo nunca existi».
Caro Miguel, parece-me óbvio que são necessárias decisões e que existirá sempre uma esfera de decisão colectiva num qualquer comunismo. Já o exercício de actividades especializadas de governo parece-me algo a rejeitar categoricamente. E o mesmo vale para a formalização desse exercício em instituições e leis. Aquilo que nos divide é sobretudo o nosso entendimento de uma palavra como «poder». Tu pareces atribuir-lhe propriedades ahistóricas e considerar que ele é suficientemente plástico, enquanto caregoria, para significar indistintamente o poder de alguém sobre outrém e o poder de alguém sobre si próprio. Eu acho que não, que o poder é precisamente algo que se subtrai a outros e que não faz sentido chamar a uma decisão colectiva partilhada por todos um exercício de poder. Ora, nada nos condena a fazer depender essa decisão colectiva de um regulamento ou de uma legislação, a formalizá-la e instituí-la. Podemos fazê-lo e eu não me oponho de todo a que se discuta em cada momento a forma mais adequada de organizarmos este ou aquele domínio da nossa vida em comum, mas não é forçoso que tenha que ser assim.
Caro Ricardo,
já avançámos um pouco.
O que não vejo é como queres tu que as decisões que serão sempre necessárias e em que todos os implicados deverão participar em pé de igualdade, sejam pensadas e/ou praticadas sem poder nem direito. Dizer que queremos que todos participem em pé de igualdade nas decisões colectivas é dizer que todos terão o direito de o fazer e de fazer valer esse direito, graças à lei que se derem e os institui como iguais, excluindo a existência de uma camada de governantes especializados. E esta "lei" — ou chama-lhe o que quiseres: princípio, norma, etc. — será garantida e produzida ou criada pelo poder dos que institui e garante como iguais. O que significa, também (mas não só), que teremos o direito e o poder de defender essa lei daqueles que pretendam ignorá-la, monopolizando ou "classistizando" de novo a tomada de decisões.
Parece-me que, dado que o Estado é uma forma de poder, tu não concebes conceber poder possível que não seja o Estado, ou que, porque o actual direito (constitucional, administrativo, etc.) consagra e formaliza a distinção classista entre governantes e governados, tu não consegues pensar um direito ou lei que exprimam , comuniquem e editem a sua superação.
Reconheço, contudo, que daí não virá mal que não tenha remédio, se te deres ao trabalho de propor outros termos que não "poder", "direito", "direitos", "lei" para designar os diversos momentos e condições de processos de tomada de decisão que garantam a igualdade, a liberdade e a responsabilidade dos implicados.
Abraço
miguel(sp)
Olá,
Enquanto não leio o livro (que vou encomendar por uma livraria, já que pelos vistos o editor não vende online ?), e muito provisoriamente, uma pequenas achegas ainda :
1. Tens inteiramente razão, caro Ricardo, quando lembras que nas experiência “comunistas” da antiguidade, a comunidade vivia em grande parte do trabalho de escravos ou de pessoas que eram mantidas fora do círculo dos cidadãos. Assim terá acontecido por exemplo em Esparta, pelo menos a julgar pelas descrições que nos chegaram (que são provavelmente em parte míticas). No entanto, é interessante verificar como a tua crítica já era feita na altura. Mais curioso será constatar que a apreciação crítica que os antigos faziam do comunismo evoca por vezes as falhas das experiências mais recentes. Por exemplo, apesar das famosas leis de Licurgo parecerem reclamar-se em muitos aspectos da teoria comunista, inclusivamente na forma como baniam o ouro e a prata, e tudo o que favorecesse quesílias em torno do “meu” e do “teu” (neste aspecto, se achas que foi Marx quem inventou a ideia de uma sociedade comunista “que anularia a necessidade do Direito ao anular as separações que lhe deram origem historicamente”, convido-te a ler a parte sobre Licurgo nas Vidas paralelas de Plutarco), os antigos não deixavam de sublinhar que a história de Esparta foi, na prática a de uma das aristocracias mais implacáveis para com as castas dominadas, e sobretudo onde havia mais desigualdades na repartição da riqueza. Onde se vê que a questão de saber até que ponto o comunismo é possível (e consequente) se não fôr acompanhado por uma democracia efectiva, não começou propriamente com uma discussão entre o Ricardo Noronha e o Miguel Serras Pereira…
(continua)
2. Quanto à questão da definição do direito, a questão também é complexa. Como já disse, tens para ti a vulgata. Para a maioria das pessoas, o direito apresenta-se primariamente como um conjunto de regras que se impõem mediante a cominação de sanções. E, de facto, é perfeitamente impossível separar o direito da organização do monopólio da força pública. Isto já era uma “evidência” para os antigos, aliás. No entanto, existe também uma tradição veneranda que vê no direito, não tanto um mecanismo de cominação de sanções, ou de movimentação da força pública (o que será apenas um instrumento da sua realização), mas antes a arte puramente especulativa de determinar o que deve ser atribuído a cada um. De acordo com esta maneira de ver, o direito não deriva principalmente da ordem, mas da justiça, que por sua vez é o que justifica a ordem. Por exemplo, apesar de ser o magistrato romano quem confere força a uma decisão e quem faz intervir a força pública, não é ele quem diz o “direito” propriamente dito, mas um juiz (judex) escolhido com a colaboração das partes em litígio. Há aqui uma diferença subtil, mas determinante. Para o que nos interessa hoje, importa salientar que a questão do comunismo levanta também uma questão “jurídica” neste secundo sentido, que é a de saber qual é a forma de repartição dos bens que permite alcançar uma maior justiça social. Podemos encolher os ombros e achar que os antigos inventavam problemas artificiais, ou ainda dizer que esses problemas vão resolver-se instantaneamente quando soubermos construir uma sociedade sem classes, da qual desaparecerá completamente a preocupação do “meu” e do “teu”. Esta atitude não é nova e, como vimos, Licurgo já pensava assim. Mas podemos também ter outra atitude. A de procurar compreender em que medida os erros das tentativas que ocorreram até hoje de implantar o comunismo, se podem explicar por uma reflexão insuficiente sobre a sua aptidão a realizar uma justiça social efectiva.
3. Marx pensa dentro de um determinado contexto. Critica a propriedade enquanto ela favorece e “justifica” a concentração de riquezas e a reprodução do capital dos que possuem os meios de produção, em detrimento daqueles que só vivem do trabalho e que vão sendo esbulhados do valor criado pelo seu esforço. Esta crítica está certíssima e continua actual, pelo menos na minha opinião. Agora isto não nos deve impedir de ver um bocado mais longe e de notar que a contradição intrínseca do conceito de propriedade, tal como é analisado em Marx, remete-nos para uma noção bastante simplista e relativamente recente da propriedade, que é datada (radica basicamente em Locke). Para esta concepção, a propriedade é a via por excelência de realização da liberdade individual. Ora bem, acontece que os antigos tinham concepções um bocadinho mais elaboradas, não só sobre liberdade, mas também sobre as diversas categorias de bens e sobre a sua repartição. Isso não os impediu de maneira nenhuma discutir a propriedade, nem tão pouco de conceber críticas radicais da propriedade, como já referi. Se procurarmos compreendê-las, se calhar, vamos ter uma visão mais fina da realidade e, porque não, compreender melhor as dificuldades e limitações experimentadas pela teoria marxista para encontrar formas de realização práticas.
Abraço
Caro Miguel, as nossas decisões não são sempre e inevitavelmente regidas ou mediadas por leis e normas. Pessoalmente, prefiro quando não o são e acho que estaremos ainda aprisionados na forma Estado enquanto formos incapazes de superar esse tipo de tecnologias de poder. Tomaremos e concretizaremos decisões colectivas na medida em que isso servir os nossos interesses e cálculos e objectivos e não o faremos sempre que não for esse o caso, independentemente de haver ou não haver uma lei a prescrever isto e aquilo (já a existência de um aparelho repressivo muda tudo de figura e é precisamente o que me parece estar subjacente à própria categoria de lei ou norma). Parece-me que és tu quem se recusa a pensar nessa possibilidade e não eu que sou incapaz de conceber um direito que já não é bem o direito e um Estado que já não é bem um Estado.
Caro João, até agora a conversa tem decorrido no pressuposto de que eu desconheço Plutarco, ou Tucídides, ou Políbio, ou Platão. Naturalmente que não conheço tudo, mas concederás que conheço o suficiente para que os meus pontos de vista sobre o tema não se limitem a ser equívocos. Aqui estou para aprender contigo o que não sei tão bem, mas eis aquilo que julgo saber: a constituição de Esparta abolia as relações mercantis no interior da respectiva pólis e decretava uma propriedade privada fundiária distribuída de forma igualitária entre os seus cidadãos, em simultâneo com a propriedade estatal dos escravos/hilotas. A distância entre isso e o comunismo parece-me de tal forma evidente que me limito a sublinhar que em Marx o conceito de produção é central relativamente ao de propriedade e, por isso mesmo, o seu olhar debruçar-se-ia muito mais sobre as potencialidades do trabalho socialmente combinado dos que eram excluídos da cidadania pela constituição de Licurgo, do que sobre as leis que atribuíam aos cidadãos-soldados a posse da terra e ao Estado a posse dos que a trabalhavam.
E vejo-me obrigadoa a partilhar a minha estupefacção pelo facto de chamares ao meu ponto de vista 'marxista' sobre o Direito a 'vulgata', enquanto discorres sobre a concepção kantiana do mesmo no pressuposto de que aí residiria uma qualquer originalidade. No liberalismo clássico britânico, que Marx leu mas não reproduziu (antes criticou), a propriedade é mais do que uma condição da liberdade individual, é uma condição correspondente à natureza humana, distorcidade por séculos de despotismo e que uma ordem liberal se encarregaria de reconhecer e assegurar.
Sem dúvida que as limitações da realização prática etc e tal, vale a pena discutir tudo isto e assim sucessivamente, mas não vejo o interesse em discuti-lo fazendo o quadrado em torno da ideia de que os antigos sabiam aquilo que os modernos desconhecem. Marx, por sinal, parece ter sido um leitor muito atento de Epicuro (tenho algures um livro sobre isso, mas não o encontro na minha biblioteca).
Caro Ricardo,
parece-me — embora não sei se também te parece — que continuamos a avançar um pouco mais. Eu nunca quis dizer que estivéssemos sempre a tomar decisões formais, ou instituíssemos regulamentos e procedimentos correctos para tudo o que tivermos de decidir, ou multiplicássemos as leis ou a extensão da sua aplicação. Concordo contigo quando escreves: "Tomaremos e concretizaremos decisões colectivas na medida em que isso servir os nossos interesses e cálculos e objectivos e não o faremos sempre que não for esse o caso". Mas gostaria que reconhecesses, pelo teu lado, que isso já é uma lei, norma ou princípio, e que, no caso em que houver que decidir, a decisão deverá ter critérios democráticos, por um lado, e ser vinculativa, por outro. Imagina que um camarada fracturante reúne um grupo que entende, propaga e começa a praticar a ideia de que as crianças não devem ser ensinadas a ler. Imagina que, por sorte ou lucidez, a maioria dos outros cidadãos — ou o que lhes queiras chamar — acham que isso deve relevar de uma decisão colectiva. Imagina que, por fim, a proposta fracturante é derrotada. Concluirás que terás uma lei que determina, até mais ver, que as crianças devem ser ensinadas a ler e que impõe a todos os pais, famílias ou comunidadesm afinitárias pós-familiares e até ao diabo mais velho o cumprimento dessa lei, sob pena, no mínimo, de os "desencarregar" da educação das crianças a seu cargo. Dirás que, a partir desse momento, temos um Estado, um direito de classe e a reinstauração da divisão entre governantes e governados?
O meu ponto é sempre o mesmo, como vês por este exemplo, e pelo que dele podemos induzir com os sentidos sóbrios, para falar como Marx, ainda que este nem sempre tenha observado esse seu preceito.
Um abraço
miguel(sp)
Direi certamente que sim e que essa imposição requer meios coercivos de algum tipo e que isso é já uma forma de refazer o Estado. Mas será essa a única forma de conceber o problema e a sua solução?
Ou seja, tirando a possibilidade de que existam pessoas absolutamente desprovidas da faculdade de julgar e insensíveis a todo e qualquer tipo de argumentação - possibilidade essa que me parece remota se não mesmo altamente improvável se não mesmo concebida apenas para justificar a necessidade de formas de autoridade alegadamente igualitárias - que solidez têm os argumentos que nos dizem que um princípio é sempre uma lei e que por essa via deve ser imposto de forma 'vinculativa'?
E já agora, porque não assumirmos simplesmente que temos uma divergência com algum grau de profundidade e relevância , sem ceder à tentação de reivindicar para a nossa posição os méritos da «sobriedade» e da «razoabilidade», remetendo a do outro para a da ingenuidade e da inconsistência?
É que me parece que estamos muito longe de dizer o mesmo por outras palavras e não vejo qual o interesse em concluir daí simplesmente que um está errado e o outro correcto.
Mas, Ricardo, nem todos os meios coercivos são expressões necessárias e/ou condições suficientes de um Estado, ou seja de uma distinção entre governantes e governados, com o monopólio dos meios de violência como prerrogativa dos primeiros. Uma insurreição democrática pode servir-se de meios coercivos sem que por isso esteja necessariamente a reproduzir o funcionamento de um aparelho de dominação classista. Se me responderes que, no comunismo, não podem por definição existir nem maustratos sobre crianças, nem crimes de sangue, nem tentativas de reintrodução de modos de funcionamento classistas e hierárquicos, etc., etc., terás de me explicar cuidaosamente porquê — e, já agora, também como podes garantir ou produzir esse estado de coisas.
Quanto ao resto, aceito que a divergência não é só de palavras. O que tento é, por meio de palavras, tentar esclarecê-las, e, na medida do possível, superá-las contigo. E teremos por certo muitas ocasiões de o fazer moviods não só pela nossa amizade como pela nossa comum aposta no "comum". Até já.
Um abraço
miguel(sp)
Olá,
1. Há incontestavelmente nas leis de Licurgo, tal como as descreve Plutarco, o intuito desvalorizar tudo o que é possuído em regime de propriedade. Só tenho o texto francês à mão : “Il entreprit aussi, afin de détruire complètement l’iné- 102 galité sous toutes ses formes, de faire le partagé des biens mobiliers. Comme il vit qu’on ne s’en laisserait pas dépouiller ouvertement sans répugnance, il prit une autre voie, et ce fut indirectement qu’il porta l’attaque contre le luxe. Il commença par supprimer toute monnaie d’or et d’argent, ne permit que la monnaie de fer, et donna à des pièces d’un grand poids une valeur si modique, que, pour loger une somme de dix mines (20), il fallait une chambre entière, et un chariot attelé de deux bœufs pour là traîner. La circulation d’une telle monnaie eut bientôt banni de Lacédémone plus d’une sorte de méfaits. Qui eût voulu recevoir, pour prix d’un crime ; qui eût volé, ou ravi de force, ce qu’il était impossible de cacher, dont la possession ne pouvait exciter l’envie, et qui, mis en pièces, n’était plus bon à rien ? Car, lorsque le fer avait été rougi au feu, Lycurgue, dit-on, le faisait tremper dans lé Vinaigre, afin de lui ôter sa force : ce n’était plus dès lors qu’une chose inutile à tout autre usage, énervée, sans ductilité, et qui se brisait sous le marteau. […] Ainsi, les Spartiates ne pouvaient acheter aucune marchandise exotique, même de mince valeur ; et il n’abordait même pas de vaisseau marchand dans leurs ports. Aucun sophiste ne mettait le pied dans la Laconie, aucun diseur de bonne aventure, aucun fournisseur dé prostituées, aucun bijoutier en or ou en argent : il n’y avait pas de gain à faire. Par là le luxe, dépouillé de ce qui l’enflamme et lui sert d’aliment, se flétrissait de lui- 103 même. Ceux qui possédaient le plus de biens n’eurent aucun avantage sur les pauvres, les richesses n’ayant aucune issue dans le public, et demeurant dans l'intérieur des maisons, enfermées et oisives. Voilà pourquoi les meubles d’un usage journalier et indispensable ; lits ; sièges, tables, étaient chez eux très-bien travaillés.” Ao que ainda devemos acresentar a parte sobre as refeições em comum…
Continua
2. O que Marx foi buscar aos economistas clássicos (e atravês deles aos autores que deitaram as bases do liberalismo burguês) é a ideia que faz nascer a propriedade (e mais geralmente toda a riqueza) do trabalho. Isto parece-nos um dado adquirido, mas assenta numa ética muito precisa, que era largamente estranha aos antigos, o que nos devia dar que pensar. De resto, os economistas posteriores a Marx já não se reconhecem ja nesta teoria do valor-trabalho. Que esta teoria é central em Marx, sou o primeiro a reconhecê-lo. Que ela seja indiscutível por causa disso, já me parece menos óbvio. No entanto uma discussão aberta e despida de preconceitos sobre o “comunismo” tem necessariamente que abordar este ponto.
3. Obviamente embirras com a palavra “vulgata” e pode muito bem ter havido aqui uma forma desajeitada de expressão da minha parte. Utilizei “vulgata” e “vulgar” apenas para significar “comum”, adjectivo que temi prestar-se a equívoco dado o objecto da nossa conversa. Marx encara o direito como um jogo de forças, mas neste aspecto não tem nada de original. A maior parte das pessoas encara-o desta forma, mesmo Kant, que não sei bem porque é aqui chamado. O que eu procurei dizer é que os antigos punham a questão das forças e da efectividade do cumprimento das regras num secundo plano. Primeiro interrogavam-se sobre a justiça de determinada solução. Assim foi também, com toda a certeza, acerca do comunismo. Com efeito, não é evidente que a abolição generalizada da propriedade sobre os bens se traduza necessariamente por mais justiça, ou seja por mais igualdade. Para os antigos isso não era óbvio. Não tenho a certeza que o deva ser para nós…
4. Marx escreveu a sua tese de doutoramento sobre Epicuro e Demócrito. Nunca pretendi dizer que Marx era ignorante ou alias que o seu pensamento era desprovido de interesse ou de originalidade. Apenas quis chamar a atenção para as origens historicas da querela do comunismo. Sem grande sucesso, pelo que vejo...
Abraço
Num dos últimos livros de Negri e Hardt- Comunidade( Commonwealth)- o dispositivo " alter-moderno" de produção biopolitico(!) do " comum", que Badiou e Zizeck apelidam de psicótico,é exposto e desenvolvido, ao longo das suas 496 páginas lastradas de milhares de referências cientificas e filosóficas extremas das Epistolas a Wittegenstein, Heisenberg ou Steve Jobs ,por exemplo,através do desdobramento infinitesimal de uma " noção biopolitica do acontecimento "...Vê-se bem, apesar dos laivos de libertação da imaginação discursiva, para onde se encaminha a vontade de estimular a luta de classes! Castoriadis pode ajudar-nos a ultrapassar os problemas: " A filosofia não pode fundar uma politica. Não pode além disso, fundar o que quer que seja. Toda a " fundação " da filosofia se revela, ou falaciosa ou repousando sobre circulos; a filosofia politica nunca deixou de ser só uma filosofia sobre a politica e exterior a esta...",C. Labirinto 2.Isto são dados essenciais de visionamento da extrema complexidade do problema, é evidente.
Não questiono, no entanto, o esforço e endurence postos em movimento neste salutar debate de ideias e apostas, sublinho. Niet
Caro Miguel, estás a pensar exactamente em que meios coercivos? E nota que não se trata tanto de recusar em absoluto os ditos meios, quanto de afirmar que enquanto recorrermos a eles estamos ainda no domónio da forma Estado. Eu não posso garantir que no comunismo não existirão maus tratos sobre crianças, mas acho que é fácil constatar que a existência de meios coercivos e de leis que proibem esses maus tratos não os suprimem (sendo que seria bom definir se uma palmada dada pelos progenitores entram nessa categoria), nem é particularmente claro que sejam efetivos em reduzi-los. Ou seja, consigo lembrar-me de inúmeras razões para não maltratar uma criança que não a possibilidade de uma punição. Continuemos pois esta discussão (embora este formato, repito, não seja particularmente prático e talvez o pudéssemos fazer por e-mail ou até pessoalmente). Um abraço.
João, Kant surge nesta debate porque um termo como 'a Justiça' não pode senão ser entendido enquanto ideal ético normativo, algo subtraído aos interesses materiais e às correlações de forças para funcionar enquanto princípio a concretizar conforme o interesse geral. Bem vês que Marx pensava sobre tudo isso de forma completamente diferente.
O meu ponto é que aquilo que tu consideras mais sofisticado no pensamento dos antigos é precisamente o que me parece mais frágil, um aprisionamento do pensamento em coordenadas muito rígidas. Não lhes levo isso a mal, porque geralmente não comparo os antigos aos modernos, mas nesta discussão um pouco estranha que estamos a ter é precisamente uma comparação que está em causa e por isso vejo-me obrigado a colocar a questão nestes termos.
Em Marx a propriedade não é um sinónimo da riqueza. O valor é produzido pela acção concreta dos trabalhadores e medido em função do seu tempo de trabalho. Essa convenção parte de David Ricardo, mas não lhe equivale e vai muito mais longe em diversos aspectos, sendo equacionada num quadro muito mais dinâmico e complexo. É evidente que tudo isso é discutível e é por isso mesmo que o estamos a discutir.
Que os antigos não se interrogassem sobre a natureza do trabalho parece-me perfeitamente razoável, desde logo porque tinham quem trabalhasse para eles e não reconheciam a essas pessoas um estatuto semelhante ao seu. Mas uma vez considerado esse aspecto (que tu pareces remeter para uma esfera secundária), qual é precisamente o alcance da concepção antiga de 'justiça'? Ou seja, uma vez ignorado de forma insistente e persistente que as relações que tomamos como 'naturais' (por exemplo, a escravatura) resultam de correlações de força, poder, dominação e violência, o que é que podemos extrair de semelhante concepção de 'justiça'? E assim sendo, como considerá-la percursora da noção de 'comunismo'?
Abraço.
Caro Ricardo,
não estava a pensar essencialmente na "punição", mas no emprego da força, por exemplo, para neutralizar ameaças ou tentativas de abuso por parte de indivíduos ou grupos particulares.
Mais profundamente, eu não uso "lei" apenas no sentido estrito e demasiado formal que lhe dás. Podem ser necessárias leis particulares que regulamentem o trânsito, ou a manipulação dos lixos domésticos, mas não é tanto a isso que me refiro — antes, a princípios consituintes (alguns herdados, "não matarás"; outros revolucionários como os que estabelecem como critério de validação e legitimidade de uma decisão colectiva a participação igualitária dos cidadãos) e também a regras informais de convivência (uma certa ordem e organização são necessárias até num debate sobre arte ou culinária). Mas tens razão quando dizes que este não é o melhor formato para esta discussão do que me parece ser a questão de fundo: trata-se, para nós, de abolir o poder e a política (no sentido aristotélico de a mais arquitectónica das artes), ou de os democratizar, universalizando igualitariamente o seu exercíco?
Deixa-me ler o livro, que não sei onde encomendar em linha, e depois tentamos marcar uma sessão em que possamos discutir as suas (diversas, ao que suponho) leituras do "comunismo", tendo em conta as questões que o João Viegas e eu levantámos. Que dizes? Isto, sem prejuízo, evidentemente, das conversas pessoais que tenhamos ensejo de ter antes e depois disso, claro.
Abraço
miguel(sp)
Melhor ainda seria encontrarmo-nos e eu vender-vos o livro... Em alternativa, está à venda na Ler Devagar e na Letra Livre.
Ola aos dois,
Estamos de facto com conversas trocadas, e paralelas (o que não ajuda). Com certeza que o espaço de uma caixa de comentarios esta atingir aqui os seus limites. Quanto a mim, seria necessario voltar de maneira mais organizada aos temas abordados (que são varios) e clarificar pontos em que, manifestamente, não me estou a fazer entender (a concepção da arte juridica para os antigos, por exemplo).
Ha uma relação essencial entre a teoria do valor trabalho (a de Ricardo, por exemplo) e a justificação moderna da propriedade (teorizada por Locke) que é objecto da critica de Marx. Esta relação não existe para os antigos. Não digo que isto os torna mais espertos, ou mais proximos da verdade, mas pode ajudar-nos a analisar a teoria de Marx, e as teorias comunistas "modernas", de maneira mais fina, mais completa, mais critica e, finalmente, mais fecunda. Como dizia outro filosofo (mais recente) às vezes é necessario saber "tornar um pouco mais opaco o que nos parece claro, para tornar um pouco mais claro o que nos parece opaco".
Acontece, para so mencionar este ponto, que os antigos não so reflectiram sobre o trabalho, mas tinham sobre ele conceitos bastante mais subtis do que os nossos. Para começar, utilizavam duas palavras diferentes (ponos/ergon, labor/opus) onde nos apenas usamos uma. Sobre este aspecto muitissimo importante, remeto-te, se não leste ja, para as analises de J. P. Vernant que mencionei aqui em cima (mencionei ? estou a pensar no imprescindivel "Mythe et pensée chez les Grecs", mas outros autores ha que explicam a mesma coisa).
Mas como disse, a primeira coisa sera ler o livro e elaborar a partir dai.
Abraços aos dois.
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