08/10/14

Jacques Rancière: sobre algumas falácias que "o ódio à democracia" inspira

Eu não diria, como Jacques Rancière, que a democracia não é (não pode ser) uma forma de governo, nem sugeriria que o seu lugar é intrínseca e exclusivamente exterior às instituições, embora me pareça também que não há instituições democráticas definitivas, ou instituições que possam garantir a democracia, dispensando a actividade democráticas instituinte dos cidadãos que, justamente, o movimento da "democracia real", tal como a caracteriza Rancière,  só pode tender a instituir como igualmente governantes. Dito isto — e acautelando que há outros pontos deste texto (que aqui "linko" a partir do Brumas da Joana Lopes), bem como do livro La haine de la démocratie nele citado (e, já agora, no conjunto das teses centrais de Rancière), que mereceriam um debate em profundidade, a que não posso proceder agora —, a entrevista assinalada pela Joana mostra claramente o abismo que separa as "oligarquias liberais" dominantes, como lhes chamava Castoriadis, ou os "Estados de Direito oligárquicos" (Rancière)  que nos governam do exercíco, igualitário e comum por definição, de qualquer poder democrático ou da acção homóloga que o vise nas — e em alternativa às — actuais condições de divisão do trabalho político, sendo que nestas, evidentemente, a divisão política do trabalho e o regime de direcção política de toda a esfera económica ocupam um lugar central.

4 comentários:

João Valente Aguiar disse...

Duas notas.

1) A conversa anti-instituições pode descambar num mero slogan vazio. Não há sociedade sem instituições, e não há a construção de alternativas políticas sem instituições. Em suma, uma outra sociedade não se limita a destruir instituições anteriores mas em criar novas instituições orientadas por distintos princípios de organização.

Em última análise, se o discurso crítico focalizar ou centrar o anti-institucionalismo pode rapidamente tornar-se num mero voluntarismo destruidor. Quando os mais maluquinhos defendem a morte dos dirigentes A, B ou C ou quando defendem a pura destruição, entra-se no campo da acção pela acção. Portanto, um ponto de contacto perigoso com o legado soreliano.

2) Já que falo em Sorel, lembrar que a exacerbação do discurso anti-democrático (especialmente quando este se demonstra incapaz de raciocinar na base das relações sociais alternativas a propor/lutar) é sempre um ponto comum com os fascismos. Aliás, o ódio, no exacto sentido da palavra, à democracia foi o que permitiu a transição de temas entre uma certa esquerda soreliana, a "nação proletária" do Corradini e a subsequente ascensão dos Fasci di Combatimento. Ora, nos dias de hoje, quando se ouve muita gente, inclusive à esquerda, defender que "nem no tempo do Salazar isto estava tão mau" ou que "estaríamos melhor fora da União Europeia", assiste-se tão-somente a desdobramentos concretos dos discursos anti-democráticos e que já colocam um pé num plano de potencial fascização.

Uma coisa é a crítica democrática e libertária da democracia liberal existente, outra é a crítica anti-democrática. A meu ver, as fragilidades desta segunda modalidade tendem sempre a torná-la numa visão anti-democrática tout court. Portanto, inclusive contra as iniciativas autónomas e democráticas dos trabalhadores de base que de x em x tempos vão surgindo.

Um abraço

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João,
inteiramente de acordo com as tuas notas, que explicitam mais claramente as minhas intenções ao linkar esta entrevista.
No fundo, importa-me, como tentei deixar patente no meu recente debate com o Ricardo em torno do tema "comunismo e demicracia", que o Estado e a actual economia política governante não são as únicas formas de governo possíveis — chamando ao mesmo tempo a atenção para o facto de uma sociedade sem governo, sem exercício do poder, sem lei(s), é uma fantasia inconsistente, pois que a ideia de uma tal sociedade — de uma sociedade sem princípios de socialização — se refuta a si própria. Por outro lado, se se objectar que, na sociedade pós-revolucionária ou comunista, a socialização será tão perfeita e completa que dispensará instituições e normas explícitas, pois não haverá contestação da nova ordem, estar-se-á a falar de uma sociedade propriamente totalitária, incapaz de se pôr em causa a si própria, seja ao nível colectivo, seja no plano da reflexão individual, e de uma interiorização tão sem resto da(s) lei(s) do momento que as faz parecer naturalmente eternas: não vejo negação mais completa da ideia de uma sociedade autónoma ou daquilo a que o João Bernardo chamou há tempos "democracia revolucionária", ou, já agora, da minha própria concepção da "cidadania governante".

Abraço

miguel(sp)

Anónimo disse...

Socialização negativa ou estado de incandescência são alguns dos tópicos em que gira o processo de construção da criação histórica, segundo Castoriadis.Advertindo , para o bem e o mal,que no circulo da praxis, da acção e da transformação social," não existe interpretação que não se relacione com um projecto e uma vontade ".E para o autor de " A sociedade burocrática, " A revolução socialista só pode surgir pela acção autónoma do proletariado. Só se o proletariado encontrar nele próprio a vontade e a consciência necessárias para produzir essa imensa transformação da sociedade que se poderá realizar. Um socialismo concebido " por conta do proletariado ", mesmo pelo partido mais revolucionário, é um completo sem-sentido. A organização revolucionária não é nem pode ser a direcção da classe. Só pode ser um instrumento da luta de classes.A sua tarefa principal é ajudar, pelas suas palavras e actos,a classe operária a assumir o seu papel histórico de gestão da sociedade ". " Uma verdadeira revolução- 15 dias em Maio 68, dois meses na Hungria em 1956, 3 meses em Petrogrado em 1917 - é, por definição, a constituição de orgãos autónomos de massa, que visem o poder: a Comuna, os Conselhos e os Sovietes. Isso pode tomar outras formas( milicias operárias face a um perigo de ditadura, por exemplo), mas são sempre orgãos colectivos, com formas novas de democracia, que recusam a divisão entre representantes e representados, e onde o colectivo assume sempre o poder de decisão; pois, os membros do colectivo devem fazer quotidianamente a experiência de que, segundo decidam ou o não realizem por negligência, isso produz de imediato uma diferença na sua vida do dia-a-dia ". Niet

Anónimo disse...

Excelente post.

Caro João Valente Aguiar

"Não há sociedade sem instituições, e não há a construção de alternativas políticas sem instituições. "

O que entende o Sr. por "instituição"??????

melhores cumprimentos
ezequiel