01/10/14

Re: o PODEMOS

Acerca do artigo anterior do Miguel Serras Pereira, tendo que dizer que a minha percepção do entusiasmo com o PODEMOS é muito diferente (admito que o facto de eu viver muito longe dos principais centros de debate político em Portugal possa turvar a minha visão, sobretudo acerca de assuntos que não fazem as primeiras páginas dos jornais).

Em primeiro lugar, nem me parece que o entusiasmo com o PODEMOS seja algo específico da esquerda nacionalista: esse entusiasmo parece-me vir muito mais da esquerda que já não sabe se é pró- ou anti-europeísta (isto é, Bloco de Esquerda e grupos próximos) do que da esquerda assumidamente "patriótica" e pró-saída da UE (PCP, MRPPP, etc.).

E em segundo lugar, independentemente de qual seja a verdadeira forma de organização do PODEMOS, a minha percepção da percepção (ok, isto - "a percepção da percepção" - é capaz de já ser um bocado "meta") dominante sobre o PODEMOS é que os seus entusiastas (e também alguns dos seus críticos) vêem-no como uma democracia direta radical, não como uma "vanguarda ultra-centralizada" (note-se que eu não estou a dizer que o PODEMOS seja uma democracia direta radical e não uma vanguarda ultra-centralizada - nem é assunto que tenha estudado a fundo - apenas que é essa a percepção dos seus fãs portugueses). Diga-se, aliás, que o artigo do Adolfo Piñedo me levanta algumas reservas, já que em larga medida me parece uma n-ésima revisitação do clássico argumento contra a democracia direta ("sem representação as decisões são tomadas no calor do momento, sendo os decisores facimente manipulados pelos cabecilhas").

Ainda a respeito do entusiasmo pelo PODEMOS, creio que também se deve a ser talvez a primeira junção entre dois polos de descontentamento social que se têm manifestado na Europa na última década:

a) por um lado, temos os novos partidos de esquerda radical (em pelo menos dois subtipos: partidos criados pela fusão de várias organizações de "extrema-esquerda", como o BE português, o Partido Socialista Escocês, A Esquerda luxemburguesa, a Aliança Vermelha-Verde dinamarquesa ou o SYRIZA grego; ou cisões da ala esquerda de partidos ligados à Internacional Socialista, como o Partido da Esquerda francês ou o WASG alemão - este último entretanto fundido com os ex-comunistas do Leste)

b) por outro lado, partidos anti-classe política, com raízes em movimentos de protesto "espontâneos" e frequentemente entusiasmados com ideias estilo "democracia eletrônica" - entre estes podemos contar o Amanhecer islandês, o nado-morto Partido X em Espanha, o Movimento 5 Estrelas de Beppe Grillo, ou até certo ponto os vários "partidos piratas"; a maior parte desses partidos acabaram por enveredar numa linha política completamente errática, por vezes até com inclinações reacionárias

Bem ou mal, o PODEMOS conseguiu criar a ideia de ser a sintese entre essas duas "oposições", combinando um claro programa de esquerda com uma atitude pró-democracia direta.

3 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Miguel Madeira,

li com interesse e proveito as tuas objecções, que, no entanto, não me convencem, embora tenhas razão no que se refere ao facto de não ser o PCP (eu também não disse que era) a fracção da "esquerda anti-europeísta" que mais se entusiasma com o PODEMOS.
É verdade também que a avaliação que o autor do artigo faz da "democracia representativba" não é clara (ainda que, a certa altura, pergunte o que terá feito o PODEMOS, organizando-se como se organiza, da crítica da "democracia representativa"). Mas o que me importou não foi a concepção da democracia de Piñeda, mas o modo como, ao comparar a propaganda do PODEMOS com a sua tradução no regime interno que instituiu, sugere que a nova força não confere à base nem mesmo as garantias de controle que um sistema representativo normalmente assegura, ao mesmo tempo qie serve de barreira defensiva contra a participação governante dessa mesma base. O monopólio do poder de decisão em nome da eficácia e da "técnica" configuram assim uma variante extrema de "centralismo burocrático" (ou, se quiseres, "tecnocrático") e da sua justificação ideológica dos "militantes profissionais".
Por fim, é verdade, embora o artigo não se debruce sobre esse problema, que se têm manifestado, nas proprias fileiras do PODEMOS, posições críticas desta orientação organizativa, que reclamam uma maior e mais regular participação democrática da base, e é por isso que o artigo de Piñeda deve ser lido como uma análise da captura por uma fracção de gestores das tensões e justificada revolta que entre camadas cada vez mais amplas da população as actuais condições de existência suscitam.

Um abraço

miguel(sp)

Anónimo disse...

Caro Miguel,

Há também a possibilidade de que os entusiasmados com o Podemos o sejam porque acham que é simultaneamente uma forma de democracia directa radical e uma vanguarda ultra-centralizada. Os mecanismos de democracia directa entusiasmam, sim, mas essa franja política não concebe outra forma de fazer política que não passe pela existência de uma vanguarda que lidere e faça a gestão desses mecanismos radicais de democracia. Não é que faça algum sentido, porque na prática não há como fazer, e a elite do Podemos já mostrou que acima de tudo está a vanguarda centralizada, mas creio que as duas realidades convivem bem para uma certa esquerda moderna porque aceitam pacificamente a subalternização da democracia directa às elites que são capazes de levar o partido ao poder.
Luis Ferreira

Miguel Serras Pereira disse...

Excelente comentário, caro Luís. Seria difícil dizer melhor.

Abraço

miguel(sp)