Numa desenvolta crónica publicada no Observador, Rui Ramos escreve o seguinte sobre Zizek: "O fanatismo armado da jihad mudou tudo, como no poema de Yeats (“a terrible beauty is born”…). Zizek ainda espera substituir o Corão por Marx no bolso dos jihadistas. Mas isso seria apenas um bónus. O que o excita, no caso do Charlie Hebdo, é que, finalmente, há “paixão” contra a democracia liberal. Não são os “bons” (a esquerda radical doutorada em Marx e em Lacan) que manifestam essa paixão? Algumas das suas vítimas são até camaradas de radicalismo? Paciência. Sigamos a paixão, neste caso: o jihadismo".
O que eu gostaria de fazer notar a propósito destas linhas de Rui Ramos nada tem a ver com qualquer vontade da minha parte de proceder a uma apologia de Zizek, cuja filosofia e reflexão política considero com cepticismo. Mas tem tudo a ver com o facto de Rui Ramos ser historiador e de ser, no mínimo, arrepiante o modo, não como julga pelo que são, mas como deturpa e apresenta como o contrário do que são as posições publicamente assumidas por Zizek sobre o "caso do Charlie Hebdo". É, com efeito, justamente sobre esse caso que o ensaísta esloveno e europeísta à outrance escreve o seguinte, dizendo sobre a jihad exactamente o contrário do juízo que Rui Ramos lhe atribui:
Devemos, é claro, condenar sem ambiguidade os homicídios como um ataque contra a essência das nossas liberdades, e condená-los sem nenhuma ressalva oculta (como quem diria “mas Charlie Hebdo estava também provocando e humilhando os muçulmanos demais”). Devemos também rejeitar toda abordagem calcada no efeito mitigante do apelo ao “contexto mais amplo”: algo como, “os irmãos terroristas eram profundamente afetados pelos horrores da ocupação estadunidense do Iraque” (OK, mas então por que não simplesmente atacaram alguma instalação militar norte-americana ao invés de um semanário satírico francês?), ou como, “muçulmanos são de fato uma minoria explorada e escassamente tolerada” (OK, mas negros afro-descendentes são tudo isso e mais e no entanto não praticam atentados a bomba ou chacinas), etc. etc. O problema com tal evocação da complexidade do pano de fundo é que ele pode muito bem ser usado a propósito de Hitler: ele também coordenou uma mobilização diante da injustiça do tratado de Versalhes, mas no entanto era completamente justificável combater o regime nazista com todos os meios à nossa disposição. A questão não é se os antecedentes, agravos e ressentimentos que condicionam atos terroristas são verdadeiros ou não, o importante é o projeto político-ideológico que emerge como reação contra injustiças.
Também no que se refere à "paixão", imputada a Zizek, contra a democracia liberal, a natureza tendenciosa e distorcida da leitura de Rui Ramos salta aos olhos. Eis os termos em que o próprio Zizek se exprime sobre o tema:
Mas como ficam então os valores fundamentais do liberalismo (liberdade, igualdade, etc.)? O paradoxo é que o próprio liberalismo não é forte o suficiente para salvá-los contra a investida fundamentalista. O fundamentalismo é uma reação – uma reação falsa, mistificadora, é claro – contra uma falha real do liberalismo, e é por isso que ele é repetidamente gerado pelo liberalismo. Deixado à própria sorte, o liberalismo lentamente minará a si próprio – a única coisa que pode salvar seus valores originais é uma esquerda renovada. Para que esse legado fundamental sobreviva, o liberalismo precisa da ajuda fraterna da esquerda radical. Essa é a única forma de derrotar o fundamentalismo, varrer o chão sob seus pés.
Bem vistas as coisas, no entanto, a crónica de Rui Ramos não deixa de ser instrutiva: se nada nos diz de verdadeiro sobre as ideias e as posições políticas de Zizek, mostra-nos sobejamente a concepção que o primeiro faz do seu métier e respectivos métodos.
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4 comentários:
Ola Miguel,
Não me vou alongar sobre o texto do Rui Ramos uma vez que, como muito bem salientas, qualquer pessoa com mais de 8 anos de idade e instrução primaria tem normalmente recursos suficientes para perceber a perfeita indigência do que escreve este pretenso "historiador".
No texto do Zizek, autor que nunca li (são conhecidas as minhas grandes lacunas e é incontroverso que tenho seguido pouco a actualidade filosofica pos-aristotélica), vejo pelo menos duas coisas : 1/ uma frase certeira que me parece chamar a nossa atenção para um dado fundamental 2/ uma contradição.
1/ A frase genial (na minha opinião) é a seguinte : "toda ascensão do fascismo evidencia uma revolução fracassada”: a ascensão do fascismo é a falência da esquerda, mas simultaneamente uma prova de que havia potencial revolucionário, descontentamento, que a esquerda não foi capaz de mobilizar" (olha, afinal parece que a frase é do Benjamin, não interessa, ser um bom autor começa e acaba no seguinte : ser um bom leitor).
2/ Agora a contradição : tudo o que diz Zizek é verdade, mas leva quanto a mim, não a ir no sentido (como ele vai com este texto) da histeria que vivemos desde o atentado (histeria a que talvez as pessoas ai em Portugal sejam menos sensiveis ; em França, o exército esta nas ruas, em frente a quelquer edificio que tenha a ver com judaismo ! Resultado surpreendente : eu, que até hoje não fazia a mais palida ideia de onde ficavam as numerosas sinagogas e associações judaicas do meu bairro, sei agora exactamente onde elas estão ; eu e qualquer idiota que tenha veleidades de brincar ao jihad ; se isto não é prevenção eficaz, não sei bem o que seja !), mas leva antes a relativizar e a compreender que estes tragicos acontecimentos, por mais revoltantes que sejam, tratam-se principalmente pela calma e pelo desprezo. A liberdade de expressão é importante, ninguém o nega. Mas estara mesmo em perigo em França ? A sério ? E o islamismo estara mesmo à porta ? Vão gozar com outros...
E' que, enquanto nos sentamos no confortavel compartimento da compaixão e damos o obolo da nossa lagrima, o monstro da impossibilidade financeira de ir buscar o dinheiro ao bolso do rico para devolvê-lo ao pobre, que é quem cria riqueza, continua a justificar o atentado quotidiano aos nossos direitos, como alias as politicas idiotas que nos fazem contribuir, no Médio Oriente e não so, para criar situações que so favorecem o nascimento dos fantasmas que povoam os nossos pesadelos.
Bom, ha aqui um excesso e é provavel que o que digo seja um bocado injusto, mas, em suma, este tipo de considerações não deveriam ter ocorrido ao bravo e subtil Zizek ?
Um abraço forte
Viva, João.
A minha ideia não foi analisar criticamente sobre esta tomada de posição de Zizek nem apresentar uma perspectiva sobre as teses mais marcantes (e, em meu entender, pouco consistentes) que encontramos no conjunto dos seus escritos. Mas, para isso, sobre as questões que levantas e outras, teremos outras ocasiões de falar. Tudo o que quis mostrar foi que Rui Ramos apresenta um retrato forjado do personagem Zizek, em termos que configuram uma falsificação indigna de um historiador, e que isso torna também a sua argumentação política pouco séria.
Robusto abraço
miguel(sp)
O que é interessante verificar é como Rui Ramos, e outros historiadores revisionistas, sociólogos e outros que tais, tem escapado a uma crítica da nossa esquerda intelectual ( com a excepção do Manuel Loff) que hoje nas universidades tem medo de chamar os bois pelo seu nome e de se confrontar abertamente com os ideólogos da Situação que querem passar por cientistas sociais...
Ola,
Claro. O meu comentario era lateral. A frase do Benjamin é muito boa e, creio, muito actual.
O Rui Ramos... como dizer. A circunstância de o Rui Ramos escrever artigos nas colunas de opinião em Portugal é daquelas coisas tão tristes, mas tão tristes... E' que, infelizmente, ela diz muito sobre o estado de perfeita imbecilidade e de alienação mental em que o pais ainda se encontra. Eu não tenho problemas nenhuns com quem não pensa como eu. Leio tudo, e muitas vezes leio com interesse textos que estão nas antipodas daquilo que penso. Mas o Ramos, francamente, é daqueles que "não sabe, não quer saber, tem raiva a quem sabe".
Abraço
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