11/01/15

Contra a morte e o ódio, as guerras deles




Quando há actos de barbaridade, os Estados nunca estão muito longe !
Já há mais de 20 anos que o Estado Francês está em guerra, na África, no médio Oriente, na África do Norte, bombardeamentos, intervenções, operações... Nesta guerra global, que destabilizou zonas enteiras do planeta com as suas trágicas consequências humanas, as acções e as bombas do Estado françês (entre outros) têm tido um papel importante. Que foi reforçado pelo governo socialista. Sabemos, e bém, desde o grande massacre de 1914-1918, que os socialistas gostam da guerra !
Hoje a guerra deles chegou a casa !
De espantar é que só agora tenha chegado.
E como é que se pode ter pensado um só momento que não chegaria um dia ? Que era só uma guerra de televis
ão ?
As lágrimas do poder sobre os massacres efectuados pelo comando militar inemigo da semana passada são de uma total hipocrisia.
A estas duas acções o Estado francês responde hoje com um terceiro « atentado ». Um atentado ao espírito humano,  mais súbtil, mais ambíguo, mas cujas consequências serão enormes e nos transportarão para outra situação. A manifestação de « Unidade nacional », o reconhecimento  oficial da Frente Nacional pelo poder socialista (recebida no Eliseu),  o convite aos seus militantes para participarem na manifestação (que eles fazem com a bandeira nacional), o apelo a desfilar atraz de Sarkozi, o representante de Putin, o secretario de Mme Tatcher, o fascista hungaro Orban, o franquista Rajoy, tudo isto é normal na perspectiva do projecto do poder actual. Que é de mobilisar a sociedade francesa atraz dos seus chefes  responsáveis da situação actual, dividir ainda mais  as classes populares cuja comunidade está já em decomposição avançada com a crise, justificar a passagem de um « Patriot Act » versão local, destinado a aumentar todo o tipo de repressão. A victoria das duas forças que se afrontam é total. Do lado das forças reacionárias de ideologia religiosa a victoria está numa maior marginalisação de largos sectores da classe proletária, assimilada ao territorio dos « barbaros », empurrada para o refúgio do« religioso », que eles esperam assim recuperar como « defensores » e « representantes ». Do lado do poder, francês et europeu, a victoria está no enfraquecimento do sentimento de resistência às guerras, à guerra doméstica com os seus  inemigos infiltrados, oferecer-se  um balão de  oxigénio suplementar na gestão social da crise profunda do sistema. Porque amanhã o desemprego e a precariedade continuarão a aumentar, a miséria social a crescer, os serviços sociais a ser desmantelados, as intervenções militares exteriores a alargar-se. Guerras que são aspectos duma mesma guerra. A guerra deles que nao é a nossa. Isto é, nao é a minha e a dos meus amigos.
Claro está que este projecto encontra o apoio total dos meios ditos de « comunicação » que falam como sargentos do Estado Maior. No imediato,  as vozes  opostas são ignoradas. No imediato a maioria das pessoas que desfilam atraz dos seus « Chefes », pensam exprimir um sentimento de solidariedade colectivo. Quando de facto estão a caucionar  os valores os mais terríveis do poder moderno, o patriotismo guerreiro  e a continuação de um mundo de exclusões. Mais horrores para o futuro.  Não há, em tudo isto, nada de emancipador e que nos oriente para um mundo diferente, melhor. Um tímido movimento de oposição manifesta-se nos meios sindicais à esquerda das burocracias, alargado aos fracos grupos de origem trostskista ou trotskista (NPA e Lutte ouvrière), aos meios anarquistas e libertários, radicais, gente independênte  que se posiciona na vida, no mundo. Porque este é um destes momentos onde se toma partido. No bom sentido da palavra. Face à recuperação obscena dos cadáveres,  de « Charlie » e do Supermercado,  a palavra de ordem « Eu sou Charlie » » é sem vergonha  assumida pelo bispo de Notre Dame, políticos de extrema direita  e de esquerda, cidadões que nunca leram « Charlie » e que nunca manifestaram por nada, que saiem hoje de casa para abedecer ao Seu governo. Face a esta recuperação obscena a palavra desta tímida oposição começa a ser « Eu sou Remy Fraisse » (o jovem ecologista de 20 anos assassinado pelo poder socialista numa recente manifestação).
O sistema capitalista têm as sua razões e as sua lógica. A sua barbaridade que não é de hoje. Hoje como ontêm,  é o odor da morte que paira sobre a cidade. Este odor é o odor deste sistema.  Muito há para dizer e discutir.  Sobre « Charlie », as  suas transformações desde Maio 68 e a armadilha em que caíu, sobre o papel da religião e do Islão em particular, num mundo em decomposição.  Não nos « momentos de silêncio »,  impostos pelos Chefes do Mundo,  mas nos momentos de pensamento e de palavra, de discussão, criados pelos dominados.  Vamos esperar  e na nossa espera há outros valores que a morte e o ódio, há a esperança.
Para já, aqui fica uma das primeiras vozes dignas que circula, a palavra de Luz, um dos desenhadores de « Charlie » que escapou à acção de morte e que recusa de caucionar a manipulação política actual. Fica em Francês, esperando que algum leitor do Vias a passé para Português… As minhas desculpas pelo frantuguês deste texto, que não tive tempo de fazer rever por um amigo.
Saudações de Paris e “Eu sou Remy Fraisse”,

Le soutien à Charlie Hebdo est à "contre-sens" de ses dessins

Luz, l'un des dessinateurs de Charlie Hebdo "rescapés" de l'attentat meurtrier qui a frappé sa rédaction mercredi, juge "formidable" le soutien dont bénéficie l'hebdomadaire satirique aujourd'hui mais à "contre-sens de ce que sont les dessins de Charlie".
"Tout le monde nous regarde, on est devenu des symboles, tout comme nos dessins". "On doit porter une responsabilité symbolique qui n'est pas inscrite dans le dessin de Charlie", explique Luz dans un entretien diffusé samedi 10 janvier, sur le site internet des "Inrocks".
"C'est formidable que les gens nous soutiennent mais on est dans un contre-sens de ce que sont les dessins de Charlie", ajoute le dessinateur, qui travaille à l'élaboration du numéro qui paraîtra mercredi à un million d'exemplaires, contre 60.000 habituellement.
"Cet unanimisme est utile à Hollande pour ressouder la nation. Il est utile à Marine Le Pen pour demander la peine de mort", note Luz.
"A la différence des anglo-saxons ou de Plantu, Charlie se bat contre le symbolisme. Les colombes de la paix et autres métaphores du monde en guerre, ce n'est pas notre truc", explique-t-il.
"On est un journal, on l'achète, on l'ouvre et on le referme. Si des gens postent nos dessins sur Internet, si des médias mettent en avant certains dessins, c'est leur responsabilité. Pas la nôtre", poursuit le caricaturiste.
"Je n'étais pas à la manifestation spontanée du 7 janvier. Des gens ont chanté la Marseillaise. On parle de la mémoire de Charb, Tignous, Cabu, Honoré, Wolinski: ils auraient conchié ce genre d'attitude".
Selon lui, "Charlie est la somme de personnes très différentes les unes des autres qui font des petits dessins. La nature du dessin changeait en fonction de la patte de son dessinateur, de son style, de son passé politique pour les uns, ou artistique pour les autres".
"Mais cette humilité et cette diversité de regards n'existent plus. Chaque dessin est vu comme s'il était fait par chacun d'entre nous. Au final, la charge symbolique actuelle est tout ce contre quoi Charlie a toujours travaillé: détruire les symboles, faire tomber les tabous, mettre à plat les fantasmes", estime-t-il.



5 comentários:

Libertário disse...

Finalmente um texto que questiona criticamente este unanimismo cínico, que relembra o do 11 de Setembro, em que o discurso único se impõe.
O que muitos não querem compreender é que a grande ameaça para o nosso futuro comum é do totalitarismo técnico-burocrático que as classes dominantes ocidentais estão a preparar quase silenciosamente ante a passividade dos cidadãos. Neste panorama os inimigos, e as ameaças terroristas, desempenham um papel importante justificando todas as políticas de controle e repressão.

Uma manifestação onde participam alguns dos principais terroristas contemporâneos, e seus representantes, como esta que se realiza em Paris, não pode ser levada a sério como repúdio da violência que ameaça os cidadãos comuns, nem de repúdio do fundamentalismo religioso, ou de defesa da liberdade de expressão. Os cidadãos comuns nas ruas, mais uma vez, servem para legitimar os próximos passos na direcção do controle totalitário das sociedades. A FN e o terrorismo fundamentalista são detalhes desse futuro ameaçador.

Miguel Serras Pereira disse...

Caros Jorge e Libertário,
concordo no essencial com a vossa denúncia das lágrimas de crocodilo e da hipocrisia do Je suis Charlie como fórmula obrigatória do politicamente correcto e do conformismo. No entanto, nada vejo no atentado que possa torná-lo expressão de uma alternativa à repressão, à desigualdade e à opressão da economia política globalmente governante. O que move os seus autores não é a vontade de emancipação e liberdade, mas o propósito de impor o califado universal e a dominação da sharia à escala global — e isso é tão claro no caso francês como no do recente atentado da Nigéria (cf. http://www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=4335028). E compete por isso a todos os que de entre nós querem viver livres de leis ditadas pela consagração da vontade de deuses ou senhores combatê-los sem meias tintas.

Abraço

miguel (sp)

Argala disse...


Ponto prévio,

Je ne suis pas Charlie Hebdo.

The chickens came home to roost. Os grupos lumpenizados de takfiris, que a NATO ora apoia quando lhes interessa, ora ataca quando deixam de interessar, chegaram à metrópole. Temos portanto um cheirinho do terceiro mundo no coração de Paris.

Os oportunistas de serviço já se prontificam a "condenar" (que é essa merda senão a expressão vazia dos vassalos modernos?) e a alinhar no cortejo de união nacional com personagens como bibi e até o embaixador da Arábia Saudita (!!!). Cada um escolhe os seus pares.

Quando o Sh. Adnan Aroor e o Sh. Al-Qaradawi emitiam as suas fatwas, e diziam que era obrigação dos muçulmanos ir combater fi sabilillah, estava tudo bem. Os sírios levavam com carros-bomba às 9h da manhã em Damasco, caíram aos milhares. Éramos todos sírios? Não porque o sangue deles vale muito menos. Agora que a fogachada chega aqui é que o circo desce à cidade.

Realmente o MSP tem razão. Eles não representam alternativa nenhuma, mas infelizmente marcam a agenda, põem a malta a falar neles e preenchem o imaginário de muita juventude marginalizada e intoxicada.

Se calhar é pedir muito, mas eu só espero que da próxima vez, deixem as mercearias kosher e os cartoonistas em paz, e apontem ao coração do inimigo que dizem querer combater. Com armas daquele calibre e um pouco de planeamento, podem cair presidente, ministros, primeiro-ministro, embaixadores, deputados, etc. No final acabariam mortos, mas isso já era um dado de partida e a diferença é que em vez de assassinarem o caixa da mercearia, eliminam um ministro - e nessa altura quem é que poderia dizer que não era um alvo político-militar legítimo?

Cumprimentos

joão viegas disse...

Caro Jorge Valadas,

Passei dois dias a falar com pessoas que exprimem o mesmo tipo de reservas que as do seu longo texto. Em resumo : acho que se enganam. Ha tentativas de recuperação nauseabundas ? Ha, como era de prever e como é inevitavel. Mas a marcha conseguiu relativamente bem cortar-lhes as asas (até agora). Eu estive la. Não ouvi gritos de guerra, nem vi quem arvorasse mensagens problematicas (a bandeira francesa estava la, é certo, mas não vejo problema nisso, e noto que que estavam muitas outras bandeiras nacionais, dos mais variados paises, entre os quais a Palestina, diga-se por sinal). De resto, o que vi foram pessoas a manifestar a sua emoção pelo atentado contra o Charlie (sim o jornal : as ruas estavam repletas de capas do Charlie) e contra a liberdade de imprensa.

No dia em que me conseguirem explicar porque raio não deveria partilhar esta emoção, fico em casa. Partilho-a com idiotas que ja estão com a mão no gatilho ? Talvez. Mas neste caso, o ultimo favor que lhes quero fazer é deixar-lhes a rua, que é minha, e do Charlie-Hebdo, muito mais do que deles.

Ha unidade em torno da liberdade de expressão, da igualdade, da fraternidade. Ha. Isto cheira-lhe um bocadito a agua benta. Talvez. Que se lixe, sempre cheira melhor do que polvora.

Compreendo algumas das suas reservas, mas não consigo perceber como é que elas levam a justificar que fiquemos de braços cruzados a ver, quando milhões de pessoas, nem todas fascistas ou reaccionarias, vão prestar uma derradeira homenagem ao Cabu, ao Wolinski, e aos outros que foram mortos porque os seus desenhos fizeram cocegas a uns imbecis sanguinarios, que lembram o asqueroso "viva la muerte" de outros tempos.

Isto é uma missa simbolica que não resolve nada ? Claro que é. Vai ser necessario continuar a tratar das causas e à cacetada, inclusive com pessoas que sairam hoje à rua e que amanhã vão aproveitar para recomeçar a oprimir e a mandar calar em nome da ordem, mostrando que não fazem a mais palida ideia do que representava Charlie-Hebdo ?. Com certeza.

Não sera a primeira vez. Nem sequer a primeira vez que esperamos que seja a ultima.

Anónimo disse...

Este texto do Jorge Valadas é sublime e de uma actualidade máxima: caso único no panorama nacional! Hoje mesmo saiu num site libertário francês uma entrevista do jornalista italiano Giulietto Chiesa, que alarga a tese de J. Valadas.Niet