25/03/15

Sobre a violência do que está a acontecer no bairro de Santa Filomena (Amadora)


Só o Estado tem a capacidade de negar ostensivamente um direito que é por si prometido mas que nunca fez nada por cumprir. É este paradoxo que encontramos no bairro de Santa Filomena, na Amadora, desde 2012, mas que vemos ter-se intensificado nos últimos dias. As casas desse bairro foram construídas com o suor das próprias mãos daqueles que nelas habitam. Foi pela sua iniciativa que puderam usufruir de um direito consagrado constitucionalmente, e não pela acção de quem tinha a obrigação de assegurar esse direito. Apesar disso, o Estado ainda tinha um papel a cumprir. As condições de habitabilidade dessas casas são, na melhor das hipóteses, mínimas. E o direito constitucional em causa não reconhece apenas a necessidade de um tecto e quatro paredes, mas a necessidade de um tecto e quatro paredes que constitua "uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar." Esse Estado optou, no entanto, por permitir que o que estas famílias construíram lhes seja retirado ou destruído, fruto da acção da Câmara Municipal da Amadora.

Nesta história, é tal o nível de arbitrariedade que não se percebe o que é mais violento: se é a negação de um direito fundamental – ter uma habitação – ou se é ter de enfrentar diariamente o terror de não se saber se a casa em que se acorda numa manhã estará no mesmo sítio no dia a seguir, ou se estará, sequer, no mesmo sítio quando se regressa de um trabalho a que não se pode faltar, sob a pena de se ser condenado a ficar, também, sem comida. 

As fotos e os relatos que nos chegam da Amadora não deixam dúvidas quanto à adequação da palavra despejo para descrever essas acções. Vemos casas a ser esvaziadas como se de facto se estivesse a despejar o conteúdo de um balde do lixo. Na foto em cima, vemos uma moradora, no meio dos escombros do que antes foi uma habitação, junto a um frigorífico atirado ao chão com comida lá dentro, como se não tivesse sido suficiente tirar-lhe o tecto. 

Não há sequer a mais leve tentativa de esconder a arbitrariedade e a violência que acompanha estas acções. Até porque estas já são em grande medida a norma, mais do que a excepção. Quando vemos um conjunto de acções a acontecer sistematicamente sem dispensar a força coerciva de um enorme aparato policial, já não é de nada que se pareça a uma democracia de que estamos a falar. Nas democracias – mesmo naquelas que apenas oferecem um vislumbre irregular do significado dessa palavra – a força não constitui o primeiro recurso para solucionar problemas. E muito menos deve servir como recurso para violar aquilo que tem o dever de assegurar ou para criar problemas. 

Esclareçamos, contudo, que a gravidade do que está em causa não se mede pela violação de um direito que tem reconhecimento constitucional. Podia não ter. O que está em causa vai para lá disso: é a negação absoluta do direito à vida e à dignidade, direitos esses que não estão – nem tão pouco deviam ter que estar – inscritos em nenhum código ou tábua de mandamentos. Só um mundo regulado pela perversidade exige que se fixem estes direitos para que algumas pessoas não as esqueçam. Só num mundo tão desigual, em que uns nunca colocaram a hipótese de ficar sem casa e em que outros vivem permanentemente sob o risco de a perder, é que é preciso que se fixe uma “regra” que nos recorde que é necessária uma casa para viver.

Em Portugal, temos assistido a um número crescente de ameaças de despejo. E o que é mais assustador é que a maior parte dos casos em que esta ameaça existe não nos chega aos ouvidos, como se ter uma habitação ainda fosse, para uma grande parte da população, um privilégio e nos envergonhasse ter que lutar por ele. 

Hoje em dia usa-se a palavra terrorismo por tudo e por nada e, porém, raramente a vemos aplicada a casos como este, que acontecem quase à nossa porta, em que o terror é quotidiano e serve tanto para punir aqueles que nasceram pobres como para punir aqueles que ainda se atrevem a protestar.

Através do facebook ou do site da associação Habita é possível acompanhar o que está a acontecer em Santa Filomena.


Para amanhã, a partir das 7 horas da manhã, apela-se à presença do maior número de pessoas possível para resistir a mais um dia de possíveis demolições e despejos. 

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