07/12/15

Herege: quem professa ideias contrárias às geralmente admitidas

Uma excelente e imperdível entrevista, que vem de encontro ao que recentemente defendi nestes comentários. Alguns extractos:

"Por um lado, a tradição intelectual e racional do islão foi marginalizada nas sociedades muçulmanas por volta do século XIV, XV. Por exemplo, toda a ideia de teologia racional, que o dogma devia relacionar-se com a razão, que devemos justificar através do pensamento racional aquilo em que acreditamos, estas ideias foram mais ou menos abandonadas por uma técnica a que chamamos ‘fechar as portas da itjihad' [raciocínio independente]. Estas ‘portas’ não foram fechadas do dia para a noite, aconteceu ao longo de um par de séculos. Para além disso, houve muitos califas que não gostavam do pensamento racional, os estudiosos de então questionavam a autoridade, eram o que hoje chamamos dissidentes. Um califa muito conhecido, Al-Qhadir, do império Abássida, criou o “credo Qhadir’, que proibia que se colocassem perguntas racionais. Saber se o Corão foi criado, por exemplo, era muito debatido. Esta era uma pergunta muito racional, se foi criado, foi criado na História, e então tem um contexto histórico e precisa de ser interpretado à luz da História."

"A maioria dos muçulmanos pensa que a sharia é divina, mas na verdade é uma construção humana na História. É uma lei construída no século IX, quase 250 anos depois da morte do Profeta. O que é interessante é que até aí havia racionalismo na cultura muçulmana, não havia sharia, não havia hadiths [conjunto de ditos de Maomé], eles estavam a reuni-los nessa altura. E nesse período clássico inicial, a sociedade islâmica fervilhava de ideias, pensamento e aprendizagem. Quando a sharia foi formulada, os teólogos inventaram uma espécie de truque para aumentar a confiança nestas regras, sugerindo que a sharia era divina. Mas a maior parte da sharia vem dos ditos do Profeta, que são fabricados."

"Sim, são uma espécie de dogma manufacturado. Isso pode ser demonstrado muito claramente. Por exemplo, a sharia diz que um apóstata [alguém que abandona a religião] deve ser morto, mas o Corão diz que não há pertença compulsiva ao islão. A sharia diz que a mulher tem um estatuto inferior e deve cobrir-se, mas o Corão diz que homem e mulher são iguais. Há muitos aspectos da sharia que estão em completa contradição com o Corão. Afirmar que a sharia é divina é totalmente ridículo e grande parte do fundamentalismo vem de aceitar a sharia como lei divina."

Porque será que estas opiniões são tão pouco divulgadas? Uma importante razão para tal compreende-se ao ler o resto da entrevista... 

"O fundamentalismo actual então não tem nada a ver com o início do islão nem com a sua herança racional. Não, vem de uma área muito específica, vem da Arábia Saudita e da ideologia wahhabita. Até 1925, 1930, havia diferentes tradições do islão e pessoas que concordavam com umas e com outras. Havia jihads, mas tinham princípios éticos, eram lutas contra o colonialismo e o imperialismo, com regras claras, era proibido atacar civis, matar mulheres e crianças, matar prisioneiros. Jihad [guerra santa] não significa declarar guerra a toda a gente. Mas quando a Arábia Saudita se tornou numa petro-monarquia e começou a exportar a sua ideologia, tudo mudou. Os sauditas foram muito espertos, foram a todo o mundo construir mesquitas e madrassas [escolas corânicas] e depois enviaram os seus imãs [quem lidera as orações], professores e livros. E incentivavam toda a gente a ir estudar em Meca e Medina. Conseguiram exportar o wahhabismo para todo o mundo muçulmano.

Até aos anos 1920, os wahhabitas eram uma seita muito minoritária e as pessoas gozavam com eles, eram considerados fanáticos iletrados sem relevância. Mas esta seita tornou-se na ortodoxia muçulmana. E hoje, há duas questões fundamentais aqui. Por um lado, os muçulmanos aceitam esta ideologia porque reverenciam a Arábia Saudita de forma acrítica. Por ser lá que estão Meca e Medina, assume-se que como o Profeta nasceu em Meca estas pessoas teriam o melhor conhecimento do islão, quando têm o pior. Por outro, as potências ocidentais, a América, o Reino Unido, a França, a Alemanha, apoiaram a Arábia Saudita e os estados do Golfo por motivos económicos e militares, eles compram as armas que estes países produzem. Ao apoiar a Arábia Saudita, ignorando o seu fanatismo, dão-lhes liberdade de acção."

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