Hoje, o Correio da Manhã faz capa indo buscar aos arquivos uma noticia de há para aí uns quatro anos - "Médicos com salários de 50 mil euros" (para a partir daí alegarem que os cortes na saúde foram uma consequência desses elevados pagamentos).
Lá dentro, referem que o Tribunal de Contas terá detetado, numa auditoria realizada há uns anos atrás, descontrolo no pagamento de horas extraordinárias em vários hospitais, e que num determinado mês, um oftalmologista do Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio terá ganho 50 mil euros com as horas extraordinárias (o médico até está reformado há vários anos, mas o CM achou a notícia atual).
Bem, eu trabalho no então chamado Centro Hospital do Barlavento Algarvio, na altura dos acontecimentos trabalhava do Serviço de Vencimentos, a duas mesas ao lado de quem processava esses vencimentos, e por vezes até era eu que os conferia. E (dentro dos limites da confidencialidade profissional, que vou tentar não ultrapassar neste post) posso assegurar que essa notícia é mentira (e se eu fosse ao médico e aos administradores do CHBA da altura levantava um processo ao CM por calúnias).
Sim, houve meses em que o oftalmologista em questão recebeu esses valores, mas não foi de horas extraordinárias, mas sim de SIGIC - Sistema Integrado de Gestão para Inscritos para Cirurgia. Bem, e, perguntarão vocês, na prática o que é que isso muda?
O SIGIC é um programa do Ministério da Saúde para recuperar listas de espera - doentes que estão há muito para serem operados num hospital podem ser operados noutro; nesse caso, tanto o Hospital como a equipe clínica que fazem a operação recebem um pagamento à peça (tanto por operação) do Ministério da Saúde (em principio, o doente até pode ser operado num hospital particular se assim o preferir; nesse caso, o Ministério da Saúde passa-lhe uma espécie de "cheque").
O que se passou é que o hospital em questão fez uma carrada de operações oftalmológicas dentro desse sistema, e o tal médico recebeu, simplesmente, o valor correspondente a essas operações; não há aqui nenhuma decisão discricionária nem nada disso - ele fez "x" operações, e recebeu tanto por operação, pronto.
Poderemos questionar o valor que o estado pagou para essas operações, mas penso que é um valor definido num diploma qualquer (ou seja, não houve aqui nada de obscuro ou secreto).
Veja-se como é diferente do que seria se estivéssemos a falar de horas extraordinárias - ai poderia discutir-se se realizar esse trabalho extraordinário era mesmo necessário, se essas horas teriam mesmo sido feitas, se o preço/hora não teria sido exagerado, etc., etc. Mas aqui não se aplica nada disso - trata-se de um pagamento à peça proporcional à produção (tanto por operação), pago por uma tabela definida pelo Ministério da Saúde - acho que só poderemos falar aqui de "abusos" ou "falta de controlo" se estivermos a advogar um sistema em que o médico fosse proibido de fazer mais que tantas operações por mês ("O CHBA está a produzir demais! Demasiadas pessoas estão a ser tratadas às cataratas e a voltar a ver! Levantem já um processo disciplinar a essa gente toda!").
E penso que a maior ironia disto é que até resultou de um sistema remuneratório (pagamento à peça) que, com mais ou menos cambiantes ("prémios de produtividade", "remuneração de acordo com os resultados", "premiar o mérito", etc.), acho que até costuma ser defendido pelos defensores dos cortes.
[Há umas semanas, falou-se de um projeto para os médicos das urgências serem pagos pelo número de doentes atendidos; independentemente dos vantagens e desvantagens que isso possa ter, a primeiro coisa que me ocorreu foi "se esse sistema for implementado, o médico que ganhar mais dinheiro com isso - e matematicamente quase de certeza que haverá algum a ganhar mais que os outros - ao fim de alguns anos vai ser denunciados pelos jornais"]
27/12/15
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