Quando ouço para aí dizer — como Pacheco Pereira, por exemplo: não gosto de Trump, mas gosto da revolta contra a injustiça que levou muita gente a votar nele — fico com a impressão de que me estão a dizer e a toda a gente que a revolta é sempre libertadora e que qualquer ideia de justiça ou injustiça vale o mesmo que qualquer outra. Mas que emancipação potencial se pode descobrir, com efeito, na revolta de quem sente que as mulheres já não são o que eram, de que há muitos engrossou estrangeiros que passam menos mal ou melhor do que quem protesta, de que a verdade revelada é tratada como simples opinião e pode ser negada na praça pública, de que a "preferência nacional" não é aplicada como critério decisivo? E que vontade de igualdade anima quem entende que é uma injustiça ter perdido os privilégios que o tornavam superior e lhe garantiam um lugar hierárquico seguro, visando por isso como restabelecimento da justiça a restauração da — real ou fantasiada — boa e velha divisão entre superiores e inferiores?
É desanimador ter de explicar ainda que nem a revolta nem a denúncia da injustiça são critérios políticos suficientes e que a revolta e a denúncia da injustiça podem manifestar-se produzir-se em termos antidemocráticos extremos, sendo que saudá-los como bons sinais, por traduzirem uma vontade de mudança, é pouco mais ou menos como saudar a peste como sinal de vida. Ou, por outras palavras, se a revolta causada pelas frustrações e opressões das relações de poder dominantes não se traduzir em vontade de democracia e de igualdade, mas reclamar simplesmente superiores mais legítimos e fortes do que os do momento, poderá servir quando muito para reciclar a dominação hierárquica, legitimando-a — em nome dos bons governantes necessários — no seu princípio e tendendo, pior ainda, a desembaraçar o poder hierárquico das garantias e liberdades que, através de lutas seculares, puderam, de uma maneira ou de outra, ser instauradas como meios de limitar a sua acção.
13/11/16
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4 comentários:
Excelente.
Muito bem. E se pensassemos, com E. Todd quando diz: " O Partido Socialista é um novo partido de direita que puxa a velha direita cada vez mais à direita e, o Front National, partido operário, para o centro "? Niet
A " velha direita cada vez mais direita " é o bloco dos Liberais Republicanos, com Sarkozy, Juppé e outras sensibilidades antagónicas na estratégia, possiveis challengers de Hollande e dos socialistas no comando do poder de Estado. Fica o esclarecimento. Salut! Niet
Muito bom post, caro Miguel.
Como sempre.
Abraço
ezequiel
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