04/02/17

Os anti-trumpistas, os anti-anti-trumpistas e o Colégio Eleitoral

Só agora é que segui com um alguma atenção a polémica entre o Rui Ramos e Alexandre Homem Cristo , por um lado, e o Luís Aguiar-Conraria, por outro e sobre Trump e os opositores de Trump.

E o que me chamou a atenção foi um dos argumentos de Homem Cristo para acusar os anti-trumpistas de serem anti-democratas:
Numa ponta do mundo, Michael Moore encabeça protestos contra o Colégio Eleitoral.
E, no segundo artigo
Dois exemplos que, há uma semana, sobressaíram entre muitos outros: Michael Moore, que discursou contra o Colégio Eleitoral e afirmou rejeitar a validade do resultado eleitoral porque o verdadeiro poder estava ali à sua frente, nas ruas; (...)

Segunda questão: alegar a falência do regime democrático, questionar a validade de resultados eleitorais e negar a legitimidade das instituições políticas (como o Colégio Eleitoral) são ou não são ideias contrárias à defesa dos valores democráticos?
O que é que há de anti-democrático em ser contra o Colégio Eleitoral, uma instituição que foi criada com o objetivo explicito de limitar a democracia? Veja-se os argumentos de Alexander Hamilton (talvez o mais parecido entre os "Fouding Fathers" norte-americanos com um "highy tory" à inglesa) para defender o Colégio Eleitoral (em The Federalist, 68), de que ele foi largamente o criador:
It was equally desirable, that the immediate election should be made by men most capable of analyzing the qualities adapted to the station, and acting under circumstances favorable to deliberation, and to a judicious combination of all the reasons and inducements which were proper to govern their choice. A small number of persons, selected by their fellow-citizens from the general mass, will be most likely to possess the information and discernment requisite to such complicated investigations

It was also peculiarly desirable to afford as little opportunity as possible to tumult and disorder. This evil was not least to be dreaded in the election of a magistrate, who was to have so important an agency in the administration of the government as the President of the United States. But the precautions which have been so happily concerted in the system under consideration, promise an effectual security against this mischief. The choice of several, to form an intermediate body of electors, will be much less apt to convulse the community with any extraordinary or violent movements, than the choice of one who was himself to be the final object of the public wishes. And as the electors, chosen in each State, are to assemble and vote in the State in which they are chosen, this detached and divided situation will expose them much less to heats and ferments, which might be communicated from them to the people, than if they were all to be convened at one time, in one place.
Nas entrelinhas (se não mesmo nas linhas), o que é que o criador do Colégio está a dizer se não que não deve ser a populaça a escolher o presidente, mas uma elite de pessoas informadas e ponderadas? Já agora, Hamilton também defendia que os EUA deveriam ter um presidente vitalício, a liderar o governo e com poder de veto sobre toda a legislação, o que pelos padrões modernos (ou mesmo dos padrões que já na altura vigoravam nas 13 ex-colónias, ou talvez até mesmo na Inglaterra) seria praticamente uma ditadura (acho que isto é relevante para se perceber as raízes ideológicas do Colégio Eleitoral).

Diga-se aliás, que desde que se tem perguntando em sondagens a opinião do povo norte-americano sobre o Colégio Eleitoral, a opinião dominante tem sido sempre para acabar com ele (o CE só não têm causado polémica porque quase nunca o resultado no CE difere do resultado final)..

Se Homem Cristo queria acusar os anti-trumpistas de serem anti-democratas, faria melhor em pegar no exemplo do Martin Sheen e da gente que ele angariou para dizer ao Colégio Eleitoral que este existia exatamente para contrariar o voto dos eleitores (que, esse sim, é um exemplo de atitude anti-democrática)

Ainda a respeito do Colégio, Homem Cristo critica os anti-trumpistas "negar a legitimidade das instituições políticas"; mas e se essas instituições políticas forem ilegítimas (como se pode argumentar que, dum perspetiva democrática, o Colégio Eleitoral é)? Recordo que estamos a falar de um país criado a partir da negação da legitimidade das instituições políticas (a soberania britânica), e que durante décadas muitos dos estados dos EUA foram na prática regimes de partido único (o Democrático, diga-se), com grande parte da população privada do direito a voto, e com esquadrões da morte (vestidos de branco) a assassinarem quem pusesse em causa o sistema, e só se tornaram algo a que podemos chamar democracias na sequência das campanhas de desobediência civil do movimento dos direitos civis (sim, formalmente quem desmantelou o sistema sulista foi o Supremo Tribunal e o Congresso dos EUA, mas, sobretudo no segundo, essas decisões só aparecerem nas sequência da desobediência civil - e das imagens na televisão de manifestantes a serem atacados por cães e canhões de água).

Editado a 04/02/2017, às 2:53:

Alexandre Homem Cristo também refere que "[p]rosseguiu com a disseminação (da mentira) de que quem votou em Donald Trump foi a América redneck, desdentada e pouco qualificada."; mas onde é anti-democrático referir isso (que o eleitorado de Trump é predominantemente branco, rural e sem formação universitária) quando são os próprios Republicanos e/ou os apoiantes de Trump (conceitos ainda não totalmente sinónimos) que passam a vida a dizer que os Republicanos/Trump são o partido/candidato da "white working class" ou dos "non-elite whites" e que os Democratas são "a elite" (ou a "coalition of the fringes" - a aliança entre "a elite" e as minorias étnicas contra a white working class)? Como exemplos - já antigos - podemos ter o livro Grand New Party, dos colunistas conservadores Reihan Salam e Ross Douthat, de 2008 (que apontava a classe trabalhadora - penso que não referiam o "branca"... - como o eleitorado natural dos Republicanos, desde que esses moderassem o seu liberalismo económico - o que no fundo foi o que aconteceu com Trump, mesmo que os autores do livro nem gostem muito dele), ou Coming Apart: The State of White America, de Charles Murray (do conservador American Enterprise Institute), de 2012, que gira à volta de ideia de que, entre os brancos, as classe saltas são politicamente progressistas (mas com estilos de vida pessoais conservadores), enquanto a classes baixas são politicamente conservadoras (mas com estilos de vida desregrados). Mas, pelos vistos, exatamente a mesma coisa dita pelo outro lado já é anti-democrática...

1 comentários:

Niet disse...

O Rui Ramos tem a licäo subtilmente disfarcada de fellow do " trumpismo " já muito elaborada,enquanto o AH Cristo tem uns reflexos mediáticos de saldo. Mas ambos esquecem ou tentam iludir-nos que o " trumpismo " é uma degenerescência do neo-liberalismo e,nos EUA,os estigmas do Estado Forte têem exponencialmente aumentado depois de Nixon e do 11 Setembro...A tomada do poder de Trump e seus muchachos - cujo primeiro episódio ocorreu com a nomeacäo do famigerado conselheiro politico special Bannon como membro pleno do CN de Seguranca suplantando militares...- pode ser um sinal preocupante da " ocupacäo " do aparelho de Estado por uma " oligarquia " post-partidária sem controlo nem mandato, apostada num projecto " cientifico " de
poder autocrático e tentacular.Corre nos médias americanos que Bannon se gaba de ter lido a totalidade das O.C. de Lenine,numa joke depravada para conjurar a legenda que o identifica na classe politica como o Goebbels do Donald. Niet