10/06/17

Corbyn e a a social-democracia.Regresso às origens?

Uma questão de fundo suscitada pelo desempenho do Labour, sob a direcção de Corbyn, é a de saber se estamos apenas e só perante um regresso às origens da velha social-democracia europeia. Na formulação de Daniel Oliveira a esquerda recupera quando deixa de contrariar a sua natureza. Contrariar a sua natureza é, afinal, aquilo que os partidos socialistas andaram a fazer desde que, com o advento do neoliberalismo, se deixaram seduzir pela cantilena do Mercado e resolveram experimentar novas formulações politicas das quais a Terceira Via se revelou a mais mortífera.

Tendendo a concordar com a análise de Daniel Oliveira acho, no entanto, que a proposta do Labour, que Corbyn ajudou a recuperar da irrelevância politica, é bastante mais do que o regresso às origens.

Em primeiro lugar a experiência politica da social-democracia europeia, depois de décadas de prosperidade, de reconstrução da Europa pós segunda-guerra, da construção de um Estado social europeu, e de redução das desigualdades entre os cidadãos, começou a definhar quando as suas lideranças políticas começaram a emular o projecto politico neoliberal. Projecto que, no essencial, defendia um estado mínimo e uma redução ao mínimo possível da função redistributiva do estado.

A aposta nas virtudes do Mercado era justificada pela convicção de as vantagens associadas à intervenção pública na economia serem largamente prejudicadas pelos custos associados em termos de eficiência e eficácia. Estávamos, sabemos hoje, no domínio da pura propaganda, nunca verificada na realidade, pese embora alguns surtos pontuais de progresso. O mundo neoliberal e globalizado conduziu-nos quase sempre a sociedades  mais injustas e a uma maior desigualdade na distribuição da riqueza. O famigerado efeito do trickle-down nunca se confirmou, como Keynes previra,  e mesmo assim os social-democratas não deixaram de percorrer o caminho que os foi conduzindo ao abismo.

A social-democracia passou a ver com bons olhos a acumulação desigual da riqueza - há declarações várias de Tony Blair, e de muitos outros, sobre isso - na perspectiva de que isso iria permitir aumentar o investimento e, através da criação de emprego, promover à posteriori essa função redistributiva. Paralelamente o discurso politico passou a enfatizar a importância do crescimento da economia e da formação dos trabalhadores. O crescimento passou a ser o alfa e o ómega do progresso. A formação passou a ser uma condição prioritária  de acesso aos benefícios de  uma sociedade governada pela meritocracia.

Duas falácias escondiam-se por detrás destes "trocadilhos" que ainda hoje campeiam no discurso dos socialistas.

O crescimento no quadro de uma desigualdade crescente e com o Estado subjugado ao Mercado apenas consegue alimentar essa desigualdade e torná-la mais tolerável. Ainda que medidas pontuais possam momentaneamente dar a sensação que estamos a combater a desigualdade o balanço entre o deve e o haver caracteriza-se, mostra-o a história dos últimos trinta anos,  pelo agravamento estrutural dessa desigualdade.

A meritocracia, no quadro de um ensino cada vez menos universal e cada vez menos gratuito, é uma fraude. Fraude ao serviço dos mais poderosos e que ajuda a perpetuar as condições de desigualdade. O sistema de propinas e os mecanismos de Bolonha tornam a formação um investimento que não está acessível a todos. Uma ou outra excepção são afinal a regra da mercantilização do acesso de que o sistema se alimenta.

A desigualdade social que aumentou brutalmente desde então, foi mitigada pelo recurso ao crédito. Alguma direita critica o crédito fácil identificando-o com uma cedência do Estado a uma pulsão consumista dos cidadãos. Sabe-se que esta análise é falsa e que com ela querem esconder que o crédito fácil foi o único recurso ao serviço do capital para  manter o consumo  em níveis  elevados. Sem um nível de consumo adequado o investimento capitalista não obtêm os lucros e as mais-valias que lhe permitem aumentar o stock de capital e continuar a reinvestir. Este sistema opera no quadro de uma economia que assenta na desigualdade e a promove.

A social-democracia passou a olhar os cidadãos como consumidores e promoveu a despolitização da cidadania. As próprias cidades passaram a ser entendidas como objectos consumíveis no quadro da especulação associada à financeirização do imobiliário. Os cidadãos foram segregados num complexo processo que actua politicamente afastando os trabalhadores da urbe, retirando-lhes a sua condição revolucionária de urbanos, atomizando-os no espaço, e promovendo uma geração brutal de mais-valias  com o consumo dos solos das periferias urbanas.
O processo politico burocratizou-se  e tornou-se um assunto das elites que, na maioria dos casos, viram o seu sucesso associado ao facto de representarem os interesses dos grandes grupos económicos e do sistema financeiro, mais do que por agirem em defesa dos cidadãos.

Os cidadãos foram afastados da politica facilitando a emergência de novos mecanismos de dominação e de opressão.  A social-democracia europeia ao mimetizar o neoliberalismo, pretendendo conferir-lhe uma dimensão social, pretendendo humanizá-lo, não fez, em muitos casos, mais do que o trabalho sujo da direita, criando as condições para que a governação se fizesse "for the Fews, not for the Many".

Mais recentemente um novo passo foi dado neste processo com os cidadãos já de si sacrificados por décadas de exploração a serem chamados a através dos seus impostos pagarem os erros cometidos pelos seus exploradores.

Corbyn rompeu com esse status. Fá-lo de uma maneira sem paralelo na história recente.

Não há memória de um partido socialista europeu ter rompido com a governação dominante no pós-fordismo. Nenhum partido socialista - muito menos com possibilidades de governar um país como o Reino Unido - se propôs governar com um programa como o proposto pelo Labour. Programa que assenta nalgumas ideias fortes.
Em primeiro lugar  renacionalizar sectores estratégicos da economia. Energia, Transportes, Bancos, Correios, entre outros.
Em segundo lugar assegurar o caráter gratuito e universal de vários serviços públicos como a Educação e a Saúde. Acabando com as propinas no ensino superior, garantindo o acesso gratuíto, impondo a gratuitidade dos livros e do material escolar no ensino básico e a alimentação às crianças necessitadas, que são muitas centenas de milhares.
Em terceiro lugar promovendo o maior programa publico de construção de habitação de que há memória nos últimos quarenta anos. Habitação para todos e sem que as pessoas tenham que ser deslocadas das suas comunidades. Controlo público dos solos e dos preços da habitação.
Em quarto lugar equilibrando em torno da riqueza produzida o capital e o trabalho. Aumentando significativamente o salário mínimo, reduzindo as formas de contratação violentas que remetem para novas formas de exploração dos trabalhadores, aliviando a carga fiscal sobre o trabalho, penalizando as empresas mais prósperas e as grandes fortunas.

Corbyn propõe-se devolver ao Estado o seu papel de agente económico em defesa do interesse comum, Devolve-lhe a função de estado produtor acabando com o paradigma do "Estado apenas regulador" que, como sabemos, nada regulou, nada regula, apenas actua tarde e a más horas para legitimar a desigualdade associada à fraqueza crescente da intervenção pública.

Não se trata por isso de um regresso ao passado, trata-se de um passo em frente na direcção do futuro. Um futuro que não quer voltar aos idos do pós-guerra, mas que não ignora os aspectos mais positivos da sociedade de então e muito menos os aspectos nefastos da sociedade actual.
Um futuro que é capaz de inovar, até na forma como mostra capacidade para fazer aquilo que nunca foi feito. Nunca no contexto da sociedade capitalista um programa politico que rompe com os fundamentos da sociedade neoliberal foi tão longe. Corbyn e o Labour são a inovação e a referência para o futuro.

Sem essa mudança na forma de encarar a actividade politica nada disto seria possível. A proposta do Labour é uma revolução feita por dentro do sistema politico, através dos mecanismos próprios da democracia. Rompe com o paradigma dominante nos partidos socialistas que se organizam coo partidos de eleitores e não de militantes.
Para promover uma tão grande revolução é necessário um forte apoio popular. Foi esse apoio que permitiu suportar a liderança de Corbyn e, mesmo num contexto muito agressivo, marcado pelo tempo curto e pelos atentados, construir uma candidatura com tão forte impacto,

Para isso foi fundamental recuperar  o desejo da politica, politizar o dia a dia dos cidadãos, tornar a vida de todos os dias o objecto central da politica, colocar os cidadãos no centro do processo politico. Isso obrigou a um novo estilo de liderança, partilhada, empenhada, comprometida, solidária, fraterna, entendível, humana.

O Labour com Corbyn aponta na direcção desse futuro  e mostra um forte empenho na construção desse espaço politico centrado na importância da cidadania e da justiça social.

Apesar da senhora May estrebuchar em torno dos destroços do seu patético "Stable and Strong" o futuro passa pelo Labour e por Corbyn.


PS  - Um dos derrotados das últimas eleições foi o Hard-Brexit. A senhora May e os conservadores não podem fazer aquilo a que se propunham.

4 comentários:

Anónimo disse...

"O famigerado efeito do trickle-down nunca se confirmou, como Keynes previra, e mesmo assim os social-democratas não deixaram de percorrer o caminho que os foi conduzindo ao abismo."

não percebo o sentido desta frase. não quer explicitar?

José Guinote disse...

Não percebe ou não concorda? Se não concorda diga de sua justiça. Quanto ao que escrevi está tudo explicado, basta ler o que está escrito antes da frase que reira e o que se segue sobre o posicionamento dos (ditos) sociais-democratas face a uma cada vez mais desigual distribuição da riqueza.

Libertário disse...

Quem escreve referindo-se aos chamados partidos socialistas que «Contrariar a sua natureza é, afinal, aquilo que os partidos socialistas andaram a fazer desde que, com o advento do neoliberalismo se deixaram seduzir pela cantilena do Mercado» parece não conhecer muito bem a história do socialismo e da social-democracia que se caracteriza pela transformação dos defensores do fim do capitalismo nos gestores mais aplicados do sistema capitalista. Isto desde o começo do século XX...

Anónimo disse...

Não percebo mesmo. Ou por outra, consigo tirar-lhe dois sentidos possíveis.

Não conheço o keynesianismo tão a fundo que saiba o que Keynes dizia acerca de muitas coisas. Ignorava o termo trickle down e a leitura rápida via google não me permitiu clarificar o ponto de vista de Keynes. Suponho que Keynes previu que o dinheiro nunca escorreria dos mais ricos para os mais pobres em modo distributivo, como defendiam os liberais e conservadores - e que os sociais-democratas não repararam que na realidade esse efeito redistributivo nunca se fez sentir continuando a ter essa ideia como válida.

Mas ao mesmo tempo admito que Keynes possa ter defendido que dinheiro metido na economia e nas empresas acabaria redistribuído. E queria perceber o texto na totalidade sem dúvidas.