22/05/18

Na morte de Arnaut. Celebrar o homem destruindo a sua obra

Foram várias e unânimes as manifestações de pesar pela morte de António Arnaut, o notável socialista que criou o Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Os elogios à importância desse seu contributo uniram a esquerda e a direita e, ao observar essa unanimidade, seríamos levados a concluir que o SNS é um amplo consenso na sociedade portuguesa, algo que facilmente mobiliza todas as vontades políticas disponíveis em sua defesa.
As coisas não se passam assim. O SNS está há muito tempo a ser desmantelado abrindo caminho aos negócios do sector privado e à sua transformação num serviço para os mais pobres. 
Por isso, revoltando-se contra este estado de coisas, António Arnaut elaborou uma proposta de Nova Lei de Bases do SNS, juntamente com o ex-deputado bloquista João Semedo.
Por isso, ainda na passada sexta-feira, já muito próximo do fim da sua vida, endereçou uma mensagem ao III Congresso da Fundação para a Saúde SNS, na qual se pode ler o seguinte:

"(...) Como todos sabemos, os meus amigos como profissionais e eu como utente, o nosso SNS atravessa um tempo de grandes dificuldades que, se não forem atalhadas rapidamente podem levar ao seu colapso. E tudo em consequência de anos sucessivos de subfinanciamento e de uma política privatizadora e predadora resultante da Lei 48/90, ainda em vigor, que substituiu a lei fundadora de 1979. A destruição das carreiras depois de tantos anos de luta, iniciada em 1961, foi o rombo mais profundo causado ao SNS (...) A expansão do sector privado, verificada nos últimos anos, deveu-se a esta desestruturação e ao facto de a Lei 48/90 considerar o SNS como um qualquer subsistema, presente no ‘mercado’ em livre concorrência com o sector mercantil. É a filosofia neoliberal que visou a destruição do Estado social e reduziu o SNS a um serviço residual para os pobres (...)

Como todos sabemos muitos dos que aplaudem a sua obra e a sua memória, fazem-no, apesar de serem os mesmos que com a sua actuação política concreta criaram/criam as condições que conduziram o SNS ao descalabro em que se encontra. Os que em Portugal, para desagrado de António Arnaut e de muitos outros, conduziram uma política marcadamente neoliberal, que não se iniciou com a Troika e com o Governo de Passos Coelho e tão pouco acabou com a chegada da união das esquerdas ao poder. Como se percebe António Arnaut refere-se ao facto de a Lei 48/90, que substituiu a por ele elaborada, ainda estar em vigor e ao subfinanciamento do SNS como uma práctica política sistemática ao longo do tempo.  

A questão do defesa do SNS seria um bom tema para o Congresso do PS na lógica da proposta política de Pedro Nuno Santos de revitalizar a social-democracia, libertando-a da influência liberalizante da Terceira Via.  Mas a coisa limitar-se-á aos aplausos, aos minutos de silêncio, à recordação do homem bom,  despolitizando a sua herança.

Tirando isso fica a memória do homem e da sua obra e, para todos nós, a percepção de que aquilo que os portugueses já tiveram direito através do SNS tem-lhes sido paulatinamente retirado a coberto da lengalenga de que não há recursos. António Arnaut lutou até ao último dia da sua vida pelo direito à saúde dos portugueses. Foi um socialista e um democrata como há poucos

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