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03/01/12

Alice já não mora aqui

Os mais pobres viajavam, então, de Sud Express.
A emigração a salto ficara para trás, a guerra colonial também, e eles enchiam as aldeias em Agosto.
Desforram-se nos bailaricos, na língua que embasbaca os locais — “foi ali deitar um cu de olho”, querendo dizer un coup d’oeuil —, nas peles nuas e leitosas nunca vistas cumulando de risos piscinas naturais pecaminosas e álgidas, nos encombrants carrões que bloqueiam os rebanhos, nos casebres derribados que dão lugar a maisons imaculadas, babéis de azulejaria e alumínios rascas, obliquidades suíças, colunas e frontões gregos, muito antes de o pós-modernismo ter recuperado o kitsch ou Almodóvar o ter elevado a categoria de culto.
O que mais querem é enterrar a mala de cartão, o trabalho duro do chantier a alombar com cimento, eles.
Elas, mulheres-a-dias
“És portuguesa? Então conheces a Maria!”, e eu: “Não, quem é a Maria?”, e ele: “É a minha bonne!”, diz a criança, cujo mundo se resume ainda ao imobilismo eterno de um pequeno faraó.
Os bidonvilles deram lugar aos HLM (Chelas avant la lettre),
a casa da patroa
— a exemplo da Nação, as portuguesas são humildes e honestas, comentam entre si as madames…
à casa de concièrge, a ascensão possível.
Linda de Suza canta “deux valises en carton sur la terre de France”.
Nos EUA criaram-lhes um museu em Ellis Island: fotografias monumentais, registo da última esperança, rostos cujo olhar explicará muito do futuro da América.
A jovem mulher sentada à minha frente denuncia apenas tristeza e susto. Duas crianças pequenas, um farnel e uma mala amarrada com uma corda. A carruagem leva emigrantes que regressam lá-bas. Homens. Passada já a fronteira com Espanha, conta que vai à procura do marido: “Deixou de me dar notícias, de me mandar dinheiro…”
Mostra o bilhete de comboio e a última morada. Um dos homens explica-lhe, então, que terá de mudar em Irun. Lá chegados, vêmo-la ficar para trás no cais, as duas crianças pela mão e a mala aos pés. Não fala uma palavra de francês.
“Aquilo, o gajo arranjou outra e nem mora no mesmo sítio!”, diz um dos homens. Os outros concordam.
Alguém começa a comer uma bifana fria e o cheiro a pobreza cola-se à carruagem.

12/12/11

"Não é desgraça ser pobre"

O enunciado vem no Luís de Camões. Portugal daria novos mundos ao mundo, vaticinava Júpiter n’ Os Lusíadas, e o facto é que aconteceu.
A última vez que tal coisa vimos foi quando da criação do Allgarve, golpe d’asa do ex-ministro Manuel Pinho, profeta inovador, além de temerário.
Se digo temerário, não o faço para proveito próprio ou estilístico, antes porque recordo “o esforço e valentia” com que enfrentou a maldição de Garrett que tantos lhe imprecaram (aquando da demolição da casa do escritor no bairro de Campo de Ourique em Lisboa, entretanto adquirida pelo ministro).
E recorde-se: nem mesmo quando os mais arreigados maldizentes, “por manha e falsidade”, o ameaçam com o fantasma da “menina dos rouxinóis” — Joaninha de seu nome, versão da Murta Queixosa antes de haver Harry Potter — Manuel Pinho se acobarda. A nova casa está lá, para mostrar — e provar — a fibra de que é feita a gesta lusitana.
Não vive o seu melhor momento — a gesta lusitana —, apesar de a entrada do fado no Património Oral e Imaterial da Humanidade, batendo, por exemplo, o kung fu de Shaolin, embora, precisamente por ser imaterial, tal distinção não pareça vir resolver grande coisa.
Como, porém, é sabido, nem só de pão vive o homem, ou, em francês: “S’ils n’ont pas de pain, qu’ils mangent de la brioche”, não sendo também de mau tom citar Mário Cesariny: “(...)/Que afinal o que importa não é haver gente com fome/ porque assim como assim ainda há muita gente que come/(...)”.
Segundo o recente relatório da OCDE, Divided We Stand: Why Inequality Keeps Rising, ainda haverá por aí muita gente que come mas o fosso entre os ricos e os pobres atingiu o nível mundial mais elevado das últimas três décadas.
E como o relatório não inclui dados deste ano — annus horribilis que dará lugar daqui a pouco a outro annus horribilis (oxalá me enganasse!) — nem sei o que diga mais. Talvez a solução esteja no crowding out ou, então, é ao contrário: a culpa é do crowding out.
Vá-se lá entender os místicos!

03/12/11

No pasa nada

Rendida ainda ao fluxo memorialista que vem caracterizando estas crónicas (na última falei dos pardais de meu avô e na penúltima da peritonite de meu pai), vou agora debruçar-me sobre umas das derradeiras manifestações em que participei, esperando com tal evocação deixar claro a todos os que me lêem (Obrigada! Obrigada! Obrigada!) que o país se mantém assim a modos que idêntico, pelo menos desde que O’Neill escreveu aquele soneto que começa assim: “Daqui, desta Lisboa compassiva, / Nápoles por Suíços habitada/”, etc.
Era 1975. O camarada Vasco queria mandar gente para a Sibéria (soi-disant), Otelo queria mandar gente para o Campo Pequeno, e o ELP, grupo de extrema-direita, queria mandar gente desta para melhor.
No fim, como é sabido, Soares reuniu com Carlucci e o socialismo foi metido na gaveta mais ou menos pela mesma altura em que passava no Brasil o último episódio da “Gabriela, Cravo e Canela”, novela que, dois anos depois, despovoaria as ruas portuguesas durante o horário nobre.
Era, pois, 1975. A Rádio Renascença fora ocupada, estava a ser ocupada, ou ia ser ocupada. Não me lembro. Lembro-me, sim, que havia muita gente na Rua Capelo e que quando lá cheguei me perguntaram: “Vens para a manifestação de apoio aos trabalhadores?” Respondi que sim, ora essa, e o homem disparou, sem me dar tempo sequer de ir tomar um café na Brasileira: “Vais para o piquete das pedras!”, e pôs-me um capacete da Lisnave na cabeça.
Cheguei ao piquete das pedras (as pedras muito bem arrumadinhas a um canto) e não conhecia ninguém. Fartei-me de esperar pelas forças da reacção que nunca mais chegavam para ser apedrejadas, devolvi o capacete e disse que ia só ali.
Distraí-me com um soldado que explicava aos passantes como manejar uma arma, reparei que se fizera tarde, tinha um comboio para apanhar e fui para casa.
Ocorreram-me estes acontecimentos de antanho, ao ler as recentes declarações do porta-voz da PSP, a propósito da concentração em S. Bento no dia da greve geral.
Cito: “O agente tem contusões nos braços, escoriações no crânio e as últimas informações indicam que está livre de perigo”.
E fora agredido com quê: com um guarda-chuva hostil? Pergunto.

05/11/11

Economia para inteligentes

Francisco Fernandes Lopes (1884-1969), médico olhanense caído no esquecimento mas de quem Almada Negreiros disse: “Ele está, para mim, no meio da primeira fila dos que estão à frente disto tudo”, foi um homem de qualidades raras.
Musicólogo, inventor nas horas vagas, poliglota e historiador sábio que se definia a si próprio como um “vulgaríssimo João Semana” guiava-se por um princípio: “Ir sempre ao fundo do fundo do contrafundo”. É um bom princípio.
Que estamos a ir ao fundo, ninguém o nega. Até o primeiro-ministro já veio dizer que empobreceremos. Inevitavelmente. De vitória após vitória, até à derrota final, slogan que tem até uma certa patine guevarista adequada na perfeição ao l’air du temps, um tempo em que os banqueiros citam Lenine.
Recordo: “O Lenine deve estar a rir-se à gargalhada no túmulo”, disse Fernando Ulrich, demonstrando que é um homem do mundo.
Eu, que estou como o Jesus Cristo do Pessoa (também nada sei de finanças…), gostaria, contudo, de deixar algumas perguntas (simples) numa tentativa, porventura vã, de cumprir o preceito de Lopes.
Quando o desemprego em Portugal, segundo dados do INE, se situa em 12,5%, como é que o aumento de meia hora de trabalho diário ajuda a combater o flagelo?
Andava eu a tentar perceber a quadratura do círculo, eis que chego a um estudo encomendado pelo Governo que garante que a medida aumentará em 4% a competitividade das empresas, o que logo me fez lembrar Garrett, perdão, Manuel Pinho, o ex-ministro da Economia que em tempos que já lá vão (?) foi à China pedir aos locais para investirem em Portugal porque a nossa mão-de-obra era barata.

Outra coisa que também não alcanço é isto.
Imaginemos que um qualquer leitor destas linhas aceita emprestar-me dinheiro. Agradeço, claro, "uma senhora é uma senhora", mas é-me imposta uma condição: não posso criar riqueza durante o período de tempo em que fico devedora.
Empobreça!, ordena-me o emprestador. E desculpem-me se pareço muito burra: mas como raio poderei pagar-lhe?
E foi então que Karl Kraus surgiu em meu auxílio: “Uma das causas mais comuns das doenças é o diagnóstico”.

23/10/11

A voz do dono ou de como o Luís M. Jorge topa o Ricardo Salgado

As notícias são tantas e tamanhas que o efeito é estonteante. Subsídios? Viste-los. Aumentos salariais? Queria-los. Direitos adquiridos? Esquece-los. Impostos? Paga-los. Estado social? Bye, bye, Maria Alice.
Resumindo, é que éramos muito pobres: emprestaram-nos dinheiro e o dinheiro, puff!
Numa primeira fase, em betão e monumentos; depois em betão e monumentos + novas tecnologias (Magalhães – de fazerem inveja a Steve Jobs; painéis solares – adaptados a céu nublado, chuva e até à “noite muito escura” de Caeiro).
A agricultura (que era o que era) foi-se, a indústria (que era o que era) kaputt; as pescas, idem. Passámos do Algarve ao Allgarve; de Jardim à Beira-Mar Plantado à Europe's West Coast. No entretanto, baixou-se o analfabetismo, a mortalidade infantil e legalizou-se o casamento gay. Citando Sholem Aleichem, “Podia ter sido pior; e não se pense no melhor que para isso não há limites”.
Dizem-nos agora que falimos. Sempre abominei a ditadura do “nós” (“estamos com fome, não estamos?”; “estamos com frio, não estamos?”; “vamos tomar um banhinho, não vamos?”…) mas se é para ser usado, seja: “We are not amused” (Victoria dixit).
Conta-se n' As Farpas que a solução para os problemas de Portugal do Partido Reformista se resumia ao polissílabo, economias. A história repete-se, como afiançava o outro.
A palavra é papagueada de manhã à noite e madrugada fora. Como a mãe ubíqua de Woody Allen em Histórias de Nova Iorque, desenha-se no céu de Portugal e ilhas adjacentes (Madeira, inclusive).
O efeito é devastador. Os portugueses, excepto os contabilistas, já não saem de casa. No outro dia, porém, um cidadão de nome Luís M. Jorge arriscou pôr o pé na rua. Foi, então, que viu Ricardo Salgado a entrar no edifício onde decorria o Conselho de Ministros! Corajosamente denunciou a coisa no blogue Vida Breve: “Um Governo que recebe a família Espírito Santo enquanto discute o Orçamento de Estado é um Governo que reconhece, tão bem como o anterior, a voz do dono. E se eu puder chatear, que remédio”.
So be it.

12/10/11

Mentes abertas, olariras

Em 1996, Richard Dawkins, famoso pelo seu combate a favor do ateísmo, diria durante a palestra que proferiu a convite do “Richard Dimbleby Lecture”: “By all means let's be open-minded, but not so open-minded that our brains drop out”.
A exclamação relacionava-se com o tema da conferência (grosseiramente: contra o charlatanismo, marchar, marchar…); alargou, entretanto, o seu âmbito, adoptada como divisa por todos os que insistem em distinguir O Tratado Sobre a Tolerânciade Voltaire da frase de autor anónimo “Tu tens a tua opinião, eu tenho a minha e acabou-se a conversa”.
Dito isto, e embora correndo o risco dos “miolos me saltarem”, voto pela tolerância.
No livro citado, Voltaire escreveu, referindo-se à violência com base religiosa: “O direito de intolerância é, pois, absurdo e bárbaro: é o direito dos tigres, e é bem horrível: porque os tigres matam para comer e nós andámos a exterminar-nos por causa de parágrafos”.
Aparentemente, estamos mais tolerantes e até a Arábia Saudita acaba de reconhecer o direito de voto às mulheres (desde, claro, que os respectivos maridos, pais ou irmãos assim o entendam…).
Sublinho, porém, o aparentemente porque, muitas vezes (desconfio) é a pressão social e não a convicção pessoal que nos leva a contemporizar com certos valores aceites, sendo raros aqueles que, de facto, comungam da abertura de espírito da mulher “que, aquando do julgamento de Oscar Wilde, disse que não se importava com o que faziam, desde que não o fizessem na rua e não assustassem os cavalos” (Brendan Behan, Nova Iorque).
A minha desconfiança confirma-se. A padaria da minha rua fica paredes meias com uma série de after hours. Abre agora ao domingo e serve uma multidão de noctívagos que, de óculos escuros, lá vai aviar carcaças por volta do meio-dia.
No último domingo, enquanto pagava, comentei: “Tem pouco movimento. Será da crise?”. A simpática padeira segredou-me, cúmplice e agradada: “Não. É que dantes eram pretos. Agora são gays. Está muito mais calmo!”.

26/09/11

Das vantagens em ir envelhecendo

Há quem diga que a velhice traz sabedoria; outros que é mais rugas e reumático. Pontos de vista…
Por falar em pontos de vista – não confundir com o relativismo da razão: eu tenho um ponto de vista, tu tens um ponto de vista, ele tem um ponto de vista… porreiro, pá! –, veja-se como a Relatividade permite interpretações opostas. Se o tempo se torna mais lento quando a velocidade aumenta, com a idade devíamos poder ir adiando a morte já que a tendência é, facto incontestável, para perdermos mobilidade. Por outro lado, contudo, também podemos dizer que, à medida que o tempo que resta encurta, a velocidade de aproximação à meta dispara apesar do acréscimo exponencial das artroses.
Seja qual for a forma como olhemos a coisa, a grande vantagem da velhice não parece afastar-se muito da grande vantagem em ser-se rico: poder dizer o que nos vai na gana e o mundo que se lixe (o que não significa que a maioria dos velhos ou a maioria dos milionários tenha por hábito fazê-lo).
Martin Amis não é velho mas também não vai para mais novo (n. 1949). Não sei se no caso dele a idade virá ao caso, mas a forma como critica Saramago em O Segundo Avião faz prova de uma nonchalance só admissível a partir dos cinquenta e muitos.
Cita-o (“Ah, sim, os horrendos massacres de civis causados pelos chamados terroristas suicidas… Horrendos, sim, sem dúvida; condenáveis, sim, sem dúvida, mas Israel ainda tem muito a aprender se não é capaz de compreender as razões que podem levar um ser humano a transformar-se numa bomba.”), mas só para não o poupar: “E se formos ouvir a retórica do delírio e da auto-hipnose, então mais vale que a ouçamos de um laureado de Estocolmo (…) [cuja] linhagem da prosa (…) na verdade é a mais pura e empertigada grandiloquência (poderia chamar-se-lhe nobelês).”
O mais radical encolher de ombros à opinião alheia, vai, porém, para Francis Bacon que, quando interrogado sobre pintura abstracta, respondeu (cito de memória): “É assim como o padrão dos sofás. Fica bem na sala…”.

08/09/11

A Parábola da Agulha (que para o eduquês já demos)

Longe de mim ter teorias sobre educação. Há poucas coisas, aliás, sobre as quais tenha teorias, apesar de Platão ser o meu pensador preferido pelo menos desde 1978, salvo erro, ano em que conclui que a sua Teoria das Ideias se podia resumir na boa a uma parábola contada algures por Herberto Helder.

Cito: “Levanto-me então da plateia e, por entre as metralhadoras esculpidas, conto de novo a parábola da agulha, que me obceca. Desentranhei-a de um velho manual. Trata-se de uma mulher que perdeu uma agulha na cozinha e a procura na varanda de sua casa. Acorre então o jovem que pretende ajudá-la, e pergunta: Que procura? — Uma agulha. Caiu-me na cozinha. Logo o inexperiente jovem se espanta muito e quer saber porque a procura ela na varanda. — Porque na cozinha está escuro — responde a mulher.”

Como presumo até os estudantes liceais de Filosofia saberão (supondo que ainda existam), na Caverna Platónica também fazia escuro p’ra caraças. Vai daí, o filósofo, que, como a mulher da parábola, nada tinha de parvo, foi à procura das Ideias noutro sítio.

Voltando à educação e ignorando os temas sindicais recorrentes – assunto sobre o qual “só sei que nada sei” –, o que eu gostaria mesmo era que alguém reflectisse a sério sobre isto: “Na geração que cresceu habituada às multitarefas, na era digital, os limites superiores da atenção no cérebro humano encontram-se em rápida expansão, algo que provavelmente levará à alteração de certos aspectos da consciência num futuro não muito distante, se tal não tiver já acontecido. Expandir a atenção traz vantagens óbvias, e as capacidades associativas geradas pelas multitarefas trazem vantagens espantosas; em contrapartida, poderá haver um custo em termos de aprendizagem, consolidação de memória e emoção. Não temos ainda ideia de qual poderá ser esse custo”, António Damásio, O Livro da Consciência.

Atendendo à dificuldade que há já em sentá-los (a que acresce a insistência na discussão estéril do “eduquês”), temo que o custo seja grande. E qualquer dia nem a agulha do Platão, perdão, do Herberto Helder, nos ajudará a encontrar o Norte.

09/08/11

Homo economicus e tal

Como não me canso de dizer: está tudo na literatura.
Numa entrevista feita há uns anos (com Francisco Belard) a Enrique Vila-Matas, o espanhol explicou-o de modo claro: “(…) quando alguém me diz ‘Sabes o que aconteceu? Foi horrível!’, e conta uma história, dramática mas sem o ser demasiado, mais do que preocupar-me com o que se passa, e que é passageiro, sou tentado a ajudar essa pessoa explicando-lhe que isso já foi contado por Perec ou Flaubert numa novela curta. (…) Quanto mais se leu, mais coisas se sabe que aconteceram. O marido que tem uma mulher como Madame Bovary; não é assim tão dramático, está contado por Flaubert, repetiu-se muitas vezes.”
Ter lido Flaubert não aliviará ninguém do tédio do seu próprio casamento, embora ajude com certeza a pôr as coisas em perspectiva.
Foi o que pensei ao tropeçar por acaso numa frase de Dostoievski retirada a Crime e Castigo: “ (…) o senhor Lebeziátnikov, que acompanha as ideias novas, explicou há dias que, nos tempos que correm, a compaixão até está proibida pela ciência e que assim se passa na Inglaterra onde existe economia política”.
A economia política anda hoje pelas ruas da amargura. Ou com maior exactidão: a economia política anda a deixar uma caterva de gente pelas ruas da amargura. Não que a compaixão esteja proibida pela ciência: ao invés, é a própria ciência a confirmar que não fora a compaixão e já teríamos ido todos para o galheiro, contrariando, felizmente, as convicções do professor Vergerus em O Ovo da Serpente: “A antiga sociedade baseava-se em ideias românticas sobre a bondade humana. (…) essas ideias não concordavam com a realidade. A nova sociedade basear-se-á numa avaliação realista das potencialidades e limitações do homem. O homem é uma deformidade, uma perversão da natureza.”
Podemos, perante tais ideias, continuar a assobiar para o lado; a verdade é que está tudo nos livros. E no cinema. Apesar de Ingmar Bergman ter dito que “film has nothing to do with literature”. Falava, claro, de outra coisa. Eu própria, às vezes, não sei bem do que falo. Mas que me cheira mal, cheira.

01/08/11

"Eu tenho horror a pobre!"

Ela é portuguesa e vive fora; ele é de fora e vive em Portugal. Em comum, uma certeza: os portugueses andam particularmente deprimidos. Mais do que é costume? Mais do que é costume.

“Depressão” recorda-me sempre Tiziano Terzani e o seu maravilhoso Disse-me um Adivinho: “Não é de admirar que a depressão seja hoje um mal tão comum. É quase reconfortante. É sinal que no íntimo das pessoas ainda resta o desejo de serem mais humanas”.
Os meus amigos conheciam o livro mas comentaram que não se devia exagerar. A crise era internacional e, fosse como fosse, a Europa mantinha-se o melhor sítio para se viver. Eu disse que talvez, mas.
Que seria bom não esquecer que ainda há 66 anos a Europa provocara uma razia no mundo e que os seus líderes actuais me faziam perigosamente pensar na piada de Lewis Black: “In my lifetime, we've gone from Eisenhower to George W. Bush. We've gone from John F. Kennedy to Al Gore. If this is evolution, I believe that in twelve years, we'll be voting for plants” (e já passaram quase 12 anos…), e também na frase de Groucho Marx em Duck Soup: “Ele pode parecer um idiota e falar como um idiota mas não se deixe enganar, ele é realmente um idiota”.

Após a fase das piadas voltámos a falar a sério da recente obsessão pelas fronteiras, dos imigrantes magrebinos afogados no Mediterrâneo, da e.coli dos pepinos que era coisa dos PIGS espanhóis, da implosão dos Impérios, da dívida americana, da extrema-direita francesa, da desorientação generalizada da esquerda, dos chineses… O costume.

E depois aconteceu o massacre na Noruega.
Um homem louro, um homem nórdico, alto, de olhos azuis, praticamente um património, um baluarte da Europa civilizada, praticamente uma Claudia Schiffer de calças, como diria Caco Antibes, matou quase uma centena de pessoas. Antes de passar à acção terá tido tempo para escrever “2083, A European Declaration of Independence”, um longo manifesto em defesa de uma nova Cruzada contra os perigos do Islão e do marxismo. Não, “as humanidades não humanizam”. Mesmo. Como dizia o raio do Steiner e eu não me canso de repetir.

18/07/11

A Europa e os Bárbaros

Desculpar-me-ão os leitores deste post o tom vagamente confessional (e, já agora, o meu gosto quiçá inflacionado pelos advérbios de modo).
Paris, uma punhalada no coração, escreveu Jack Kerouac; cito-o e subtraio-lhe a conotação poética.
Foi em Paris que me estreei no rigoroso controlo policial dos “papéis” (os Petits Papiers cantados por Gainsbourg), Barbès-Rochechouart, zona habitada maioritariamente por árabes, únicos viajantes tardios do último Metro sujeitos a identificação que a mim me gritavam sempre “Allez! Allez!”, até que uma vez fiz questão em ir para a fila, passaporte na mão, estrangeira, também eu.
Foi em Paris, aussi, que aprendi a distinguir racismo de xenofobia ao som da Linda de Suza que nesse dia não cantou. Convidada de um programa televisivo sobre emigração, falava quando o chefe de família da casa – homem de trato adorável – exclamou entre dois pinard: Estes portugueses estão em todo o lado! e, reparando depois no silêncio que se fizera à mesa, olhou para mim e sorriu: Não é contigo. Tu até podias ser francesa, cumprimento envenenado que, ainda hoje, julgo ter ficado a dever-se ao facto de gostar de camembert, cognac e falar francês sem “acento”.
Tudo isto aconteceu antes de termos lugar na Europa; éramos, então, cidadãos de segunda e emigrantes de terceira.
O meu amigo mexicano foi impedido de entrar em Espanha este mês. Destino: Madeira. Motivo: férias.
24 horas preso em Madrid, sem passaporte, sem máquina fotográfica, sem telemóvel e sem cinto das calças (apreendido). Devolvido à procedência por falta de documentação.
A saber. Reserva de hotel paga. Ok. Responsável pela estadia. Ok. Cartão de crédito. Ok.
Papéis em falta: comprovativo de depósito de 5200 euros (!) obrigatoriamente feito no México (!!), carta-convite (documento obscuro do qual as autoridades teriam de ser informadas com um mês de antecedência, de modo a poderem confirmar a sua veracidade).
Azar o dele, pois, ter nascido mexicano e sorte a minha ter nascido portuguesa (apesar de tudo, não é?).

25/06/11

Está tudo bem. Keep shopping

Nos good old days of capitalism, a top-model Linda Evangelista proferiu uma frase que se tornaria tão famosa como a cor (variada) dos cabelos dela: “Não me levanto da cama por menos de dez mil dólares”.
Martin Amis descreveu esses anos loucos no celebrado Money, e Money foi também um tema dos Pink Floyd da década de 70; muito tempo antes, Karl Marx passaria a vida a farejar-lhe o rasto.
O melhor retrato do capitalismo não me chegou, porém, pela voz do velho filósofo. Li-o no jornal Expresso e levava a assinatura do Robert Wyatt (músico que, por acaso, chegou a tocar com Syd Barrett na curta fase pós-Pink Floyd).
Dizia o Robert ao Rui (Tentúgal): “[ao capitalismo] não interessa que toda a gente morra à fome porque aí desaparecem os consumidores. Basta que as pessoas tenham dinheiro para comprar Coca-Cola, hambúrgueres e discos da Britney Spears”.
Descontadas ou substituídas as mercadorias citadas, a ideia faz sentido: um sistema que vive de vender coisas não pode, ao mesmo tempo, empobrecer demasiado a malta porque, afinal, alguém terá de ir às compras.
Mais: se o modo capitalista é comparável a uma bicicleta – alguém o comparou e não fui eu – ou seja, se pára cai, onde nos levará a fixação consumista quando todos os chineses tiverem carro e, pelo menos, um micro-ondas?
Irão os nossos bisnetos comerciar para Gliese 581d? (para quem não sabe, é uma espécie de planeta do Principezinho mas maior que uma equipa de astrofísicos garante ter condições para suportar vida humana).
Andarão muitos a reflectir sobre isto. Os mercados, os bancos, as agências de rating, a Bundeskanzlerin Angela Merkel e o monsieur Sarkozy, sem esquecer os BRICs e os desgraçados dos PIGS. Provavelmente, a resposta estará em algum livro de ficção científica da colecção Argonauta.
Entenda-se este post, pois, como um singelo desabafo. Já lá dizia João Pinto, “prognósticos, só no final do jogo” ou, numa versão anterior, Mark Twain: “a profecia é um género muito difícil, sobretudo quando aplicado ao futuro”.