03/01/12

Alice já não mora aqui

Os mais pobres viajavam, então, de Sud Express.
A emigração a salto ficara para trás, a guerra colonial também, e eles enchiam as aldeias em Agosto.
Desforram-se nos bailaricos, na língua que embasbaca os locais — “foi ali deitar um cu de olho”, querendo dizer un coup d’oeuil —, nas peles nuas e leitosas nunca vistas cumulando de risos piscinas naturais pecaminosas e álgidas, nos encombrants carrões que bloqueiam os rebanhos, nos casebres derribados que dão lugar a maisons imaculadas, babéis de azulejaria e alumínios rascas, obliquidades suíças, colunas e frontões gregos, muito antes de o pós-modernismo ter recuperado o kitsch ou Almodóvar o ter elevado a categoria de culto.
O que mais querem é enterrar a mala de cartão, o trabalho duro do chantier a alombar com cimento, eles.
Elas, mulheres-a-dias
“És portuguesa? Então conheces a Maria!”, e eu: “Não, quem é a Maria?”, e ele: “É a minha bonne!”, diz a criança, cujo mundo se resume ainda ao imobilismo eterno de um pequeno faraó.
Os bidonvilles deram lugar aos HLM (Chelas avant la lettre),
a casa da patroa
— a exemplo da Nação, as portuguesas são humildes e honestas, comentam entre si as madames…
à casa de concièrge, a ascensão possível.
Linda de Suza canta “deux valises en carton sur la terre de France”.
Nos EUA criaram-lhes um museu em Ellis Island: fotografias monumentais, registo da última esperança, rostos cujo olhar explicará muito do futuro da América.
A jovem mulher sentada à minha frente denuncia apenas tristeza e susto. Duas crianças pequenas, um farnel e uma mala amarrada com uma corda. A carruagem leva emigrantes que regressam lá-bas. Homens. Passada já a fronteira com Espanha, conta que vai à procura do marido: “Deixou de me dar notícias, de me mandar dinheiro…”
Mostra o bilhete de comboio e a última morada. Um dos homens explica-lhe, então, que terá de mudar em Irun. Lá chegados, vêmo-la ficar para trás no cais, as duas crianças pela mão e a mala aos pés. Não fala uma palavra de francês.
“Aquilo, o gajo arranjou outra e nem mora no mesmo sítio!”, diz um dos homens. Os outros concordam.
Alguém começa a comer uma bifana fria e o cheiro a pobreza cola-se à carruagem.

2 comentários:

joão viegas disse...

Ola Ana Cristina, e bom ano para si.

Emigrante "moi-même" (and proud to be so), filho de emigrantes, neto de raianos que deram um pulo até à metropole mais proxima (uma forma de emigração) e, mais do que provavelmente, pai , avô, tetravô (pelo menos assim o desejo) de emigrantes vindouros, eis o que tenho a dizer sobre o seu post.

A raiva instintiva e cega que sentimos pelo emigrante é talvez, a par com o nosso desconhecimento assumido e militante da literatura brasileira, a região mais pitoresca do vasto continente que é o desprezo que temos por nos proprios.

A minha experiência pessoal é ter constatado inumeras vezes que os casos mais tipicos de "casa de emigrante" com todas as aberrações usualmente gozadas, são construidos por empreiteiros da periferia de Lisboa, que nunca puseram os coutos fora da area de Portugal continental + Badajoz e que, por uma qualquer trafulhice, tiveram meios para dar largas à sua imaginação.

Ou seja : o que achamos barroco no emigrante (como outrora no Brasileiro) é o facto de ele nos devolver, qual espelho, o espactaculo do mau gosto proprio do nosso provincialismo incapaz de conceber a beleza a não ser sob a forma de uma couve galega...

Ao mesmo tempo, lamento muito, mas pelo menos desde a lei das sesmarias (senão mesmo desde tempos mais remotos ainda) o emigrante é o triste sintoma do problema estrutural e, até hoje, nunca resolvido, do nosso pequeno rectângulo : impossibilidade de ascenção social dentro da parvonia.

Portanto, pessoalmente, tenho imensa pena, mas sou completamente a favor da proliferação da casa de emigrante, e mesmo da lenta reconquista do territorio nacional pelo labrego, até cercarmos completamente as bonitas taveiradas onde os distintos senhores educados do nosso pais, como o Santana Lopes (para dar apenas um exemplo), se refugiam para ouvir concertos para violino de Chopin...

Boas entradas !

Ana Cristina Leonardo disse...

João, bom ano para si também.
Quanto ao que lhe diz a sua experiência pessoal, a minha, embora por via indirecta, diz-me o mesmo.
Abraço