Aumentou nos últimos anos o número de trabalhadores de investigação científica. A questão que hoje se coloca a estes trabalhadores é, no entanto, preocupante: qual será o seu futuro?
A resposta não está escrita no céu e em parte depende da força que os próprios conseguirem fazer valer. Esta força terá que assumir necessariamente uma dimensão colectiva. O tempo das soluções individuais já passou. Se é que essas alguma vez chegaram a ser solução.
O mais urgente, neste preciso momento, parece-me ser construir espaços comuns de discussão que reúnam a comunidade de investigadores. Estes espaços não existem por várias razões. Queria apenas elencar três: docentes e bolseiros reunirem-se separadamente, os primeiros nos seus sindicatos e os segundos nas suas associações; sindicatos de docentes e associações de bolseiros com pouca capacidade de mobilização dos seus representados; e representados em que só raramente estão incluídos docentes sem emprego ou bolseiros sem bolsa.
Uma reunião capaz de colocar ao mesmo nível os diferentes tipos de investigadores será um primeiro passo para um debate que será demorado. Um bom ponto de partida para nesse debate atalhar caminho é o balanço da política científica dos últimos anos, particularmente associada ao legado de Mariano Gago e ao ciclo de investimento europeu subjacente ao protagonismo do seu ministério.
Para colocarmos as coisas de um modo simples, ainda que desajeitado, a pergunta pode ser assim formulada: devemos dizer bem ou dizer mal do legado de Mariano Gago?
Se lermos as notícias que nos chegam de boa parte da comunidade científica, a resposta parece clara: dizer bem de Mariano Gago. E não custa adivinhar, perante o novo governo, e o futuro mais sombrio que com ele se avizinha, que a tendência nos próximos tempos seja para enfatizar ainda mais positivamente aquele passado.
A maior parte dos que elogiam Gago serão, no entanto, investigadores integrados no sistema académico. Dessa posição é mais fácil julgar o tempo de Mariano Gago como uma época de ouro, pois foi então que os investigadores integrados passaram a dispor de um conjunto importante de recursos, o que lhes permitiu dedicar mais e melhor tempo à ciência. Acontece, porém, que entre aqueles recursos se encontravam e encontram não apenas microscópios, bibliotecas e fundos, mas também um número considerável de outras coisas, especificamente nomeadas como bolseiros. E é preciso dizer que muitas vezes tanto o ministério como os investigadores integrados olharam e olham os bolseiros como recursos humanos e não como trabalhadores com direitos ou colegas de profissão.
Não surpreenderá, por isso, se do ponto de vista dos bolseiros os anos de Mariano Gago sejam também tempos de sombra, tratados como mão-de-obra barata, precária e descartável por faculdades, governo e União Europeia, sem direito a contratos de trabalho, sem direito a subsídio de desemprego, sem direito a descontar condignamente para a segurança social e sem direito, em vários casos, a ver a lei ser cumprida – por exemplo a questão da obrigatoriedade de integração dos pós-doutorados nos conselhos científicos. Enfim, é preciso dizer que o progresso da ciência se fez com base num regime de exploração laboral muito pouco civilizado. Se ministros houve cujo sucesso dependeu da aposta numa condição precária, é preciso dizer que Mariano Gago foi um deles.
A expressão comunidade científica, sem dúvida muito elegante, não deixa por isso de ser equívoca neste caso. Pressupõe uma relação horizontal entre os seus membros que está longe de existir num mundo universitário onde os factores de diferenciação se acumulam, do catedrático ao bolseiro, do vínculo definitivo de uns à ausência de vínculo laboral de outros, dos salários elevados às vidas pobres. E é também por isto que hoje nós, trabalhadores da ciência, do mais ou menos graduado, precisamos de saber construir um projecto político capaz de fazer duas coisas ao mesmo tempo: aumentar o investimento do Estado na ciência e conseguir uma distribuição mais igual dos recursos disponíveis na dita comunidade. Para que tantos não continuem a escrever os artigos para os outros, como os operários que para os outros construíram as cidades onde nunca chegaram a viver.
texto publicado hoje no i
9 comentários:
Leal camarada Zé Neves,
tenho a honra de te comunicar, devidamente mandatado, que a Livre e Pública Conspiração dos Iguais recomenda vivamente a leitura e difusão do teu texto, considerando-o, além disso, um contributo precioso para a elaboração de uma análise e plataforma de luta que, não se limitando ao terreno da comunidade científica, oriente o combate pela democratização das outras (mal chamadas) "comunidades" da nossa vida social e política - das "comunidades" laborais e urbanas, à nacional e europeia, sem esquecer a internacional e/ou planetária.
Mais entende a Livre e Pública Conspiração dos Iguais (LPCI) que o teu texto é uma demonstração cabal de que, sem a ressurreição do espírito do igualitarismo radical das melhores tradições dos movimentos populares e operários, não há sequer via credível de defesa das liberdades e direitos mais elementares do que nos resta de cidadania.
Abraço
miguel(sp)
Não nego que o debate sobre o futuro dos trabalhadores de investigação científica seja importante e urgente, que o é. Estou familiarizada com a situação dos bolseiros e investigadores, revolta-me e considero indispensável mudá-la. No entanto, há que ter em conta que os investigadores estão, de uma forma geral, ligados a Centros de Investigação e às Universidades. Estas instituições são feitas de empregados de limpeza, investigadores, seguranças, docentes, auxiliares, administrativos, alunos, etc. Muitas destas pessoas estão em condições similares de precariedade: a recibos verdes, sem direito a subsídio de desemprego e sem descontar para a segurança social e a maior parte delas nem sequer faz o que gosta, não trabalha nas áreas para as quais estudou e se especializaram. Algumas delas têm tantas ou mais qualificações que muitos investigadores, docentes e bolseiros. Não concorda que o debate deveria ser alargado à comunidade dos Centros de Investigação e Universidades? Aliás não acha que o debate deveria ser feito pela sociedade em geral sobre todos nós? Não é só o futuro dos investigadores que está em causa é o de todos nós! Reforço a importância destas linhas que escreve: “O tempo das soluções individuais já passou.” E que propostas apresentar para a criação de um espaço comum de discussão para todos os cidadãos que constroem as cidades?
Cumps,
IC
Começo por apontar um problema da política de investigação científica em Portugal: a falta de alternativas fora das universidades ou institutos.
Há um pouco a noção de a ciência ser um fim em si mesmo. Não é. O fim é o conhecimento e o progresso que o mesmo traz. Não necessariamente do ponto de vista da aplicação das descobertas ou invenções (a ciência fundamental continua a ser a base de tudo), mas no sentido da informação nova que lega à humanidade.
A ciência não serve para isso. Alguém que tenha um doutoramento, seja no que for, é alguém que tem uma capacidade de aprendizagem em princípio superior à de quem não o tem. Mais que qualquer outra coisa, aquilo que o ensino ensina é a aprender e aprender depressa. Isto não é dispiciendo, é uma ferramenta útil. Poderemos dizer que ao aprendermos depressa, também aprendemos a separar o trigo do joio, a identificar problemas e oferecer soluções antes de outras pessoas.
Não é, portanto, fundamental que alguém que tenha um doutoramento venha depois a trabalhar apenas na área onde se doutorou. Convém que o faça numa área semelhante, mas não é necessário que seja na mesma.
Para tal seria necessário que as empresas portuguesas abrissem as portas a esta mão de obra e, ainda mais importante, a ouvissem. Ter um doutoramento não é automaticamente garantia de conhecimentos ou de qualidade, mas oferece essas garantias mais que outros graus de ensino, especialmente para certas funções.
Se as empresas começarem a abrir as suas portas aos doutorados, não só estes começam a ter um futuro pós-universidade como a própria sociedade os começará a ver como algo mais que estudantes ou diletantes. São, como diz no post, trabalhadores, que cumprem tantas (ou habitualmente mais) horas de trabalho como qualquer outra pessoa e que continuam a precisar de ganhar a vida e acautelar o futuro.
Quanto aos equipamentos, um pormenor fundamental: num projecto de investigação, é normal colocar pedidos de financiamento para a aquisição de equipamento. Num país rico, como a Alemanha, os custos com o pessoal representam habitualmente cerca de 2/3 do pedido de financiamento. Num país como Portugal, com salários (sic) de doutoramento consideravelmente mais baixos, esta parcela reduz-se consideravelmente. Contudo, o equipamento custa exactamente o mesmo. Dar 100 mil euros pode servir para pagar a bolsa de um doutorando durante um determinado período de tempo, mas dali nada sobra para consumíveis específicos ou equipamento. Seria necessário duplicar a dotação. Mesmo que isso reduza o número de doutorandos, porque estes de nada servem se não existir equipamento para trabalhar.
Parabéns! Eu que fui bolseiro três anos estou totalmente de acordo e em relação a essa falta de respeito gostava que lesse o último parágrafo deste meu texto:
http://www.sobreaponte.blogspot.com/search?updated-max=2011-12-14T21:02:00Z&max-results=7
Embora perceba muitas das suas preocupações com a carreira de investigação, tendo a não concordar com o tom geral de crítica à precariedade dos investigadores em regime de bolseiros, principalmente no que se refere a bolseiros pré-doutoramento.
Estes bolseiros (pré-doutoramento) habitualmente acabaram de terminar o curso e não têm quase nenhuma experiência de investigação e/ou de trabalho. Neste sentido, este período deve ser visto mais como formação do que como trabalho de alta produtividade científica para o centro de investigação (+/- como um estágio). Estas bolsas não devem exceder muito tempo por duas razões:
- esta oportunidade de formação não deve estar 'presa' a uma minoria que faça carreira neste posto. Deve ter alguma rotatividade, que permita a muitos recém formados obter esta oportunidade, quer prossigam uma carreira de investigação ou não.
- em termos de produção científica, não é do interesse do centro de investigação ter eternamente um bolseiro associado a tarefas mais simples se ele não evoluir para um doutoramento (admitindo que o bolseiro não é usado para trabalho que não devia fazer).
(continua)
No entanto, não é por estas bolsas serem precárias (no sentido de terem alguma rotatividade, e não necessariamente no sentido de exploração), que não existem direitos que devem ser melhor assegurados.
Nomeadamente:
- remuneração extra no caso da realização voluntária de actividades não relacionadas com a bolsa (tipicamente ensino e burocracias várias)
- integração na segurança social
Em termos de carreira pós-doutoramento, já faz mais sentido ter postos fixos, o que não significa que se deva eliminar completamente a existência de bolseiros com contratos de curta-duração.
PS: Sou aluno de doutoramento na área da engenharia, e a minha opinião naturalmente reflecte a realidade que eu conheço, e que poderá ser diferente de outras áreas.
alguém disse: " Alguém que tenha um doutoramento, seja no que for, é alguém que tem uma capacidade de aprendizagem em princípio superior à de quem não o tem."
isso até pode valer para qualquer outro grau.
a diferença para quem fez um doutoramento é muito maior que isso - é alguém que tem a capacidade de gerar conhecimento novo. se isso é interessante para as empresas, dependerá das mesmas.
pensei que era importante dizer isto. ainda estou em choque depois de ler no dn uma reportagem sobre cães, segundo o jornalista, "formados em biologia".
Francisco,
Na minha opinião tem razão na generalidade do que diz. Porém essa integração na Segurança Social e nos demais direitos dos trabalhadores em funções públicas é uma GRANDE QUESTÃO. Sabe tão bem como eu que, por exemplo, as bolsas não são actualizadas quase há uma década.
Um abraço e bom trabalho
Chamo no entanto também a atenção para o seguinte facto, não é por causa dos trabalhadores por contra de outrém que os bolseiros não incorporam o movimento sindical, na verdade é a própria lei que assim o determina, sindicalizado apenas quem é trabalhador por conta de outrém. Trazer à colação esta dictomia, como se o problema estivesse na organização sindical que exclui outros trabalhadores independentes, é um mau princípio, porque assenta em permissas falsas e porque coloca trabalhadores em quase confronto. Estes costumam ser os métodos da direita.
Enviar um comentário