O Filipe Nunes estava a trabalhar na serra algarvia
quando aconteceu o último incêndio. A serra e as gentes da serra, ele
conhece-as bem. Este artigo foi publicado (10 de Agosto) no espaço de opinião
do Diário do Alentejo, para o qual o Filipe Nunes escreve, de vez em quando,
umas crónicas livres. Tão livres como o Gonçalves Correia, o amigo do passado
que dá o nome ao grupo que publica o Alambique. Uma bela e inteligente (o que
vem dar ao mesmo) revista Anarquista, «a partir do Baixo Alentejo», como diz o
pessoal [Apartado 95; 7780 Castro Verde, http://revistaalambique.wordpress.com/],
que aproveitamos para dar a conhecer. Novidades destas são raras e animadoras
no país que vai ardendo enquanto o Zé povinho paga os juros da dívida.
A Arder
No Baixo Alentejo fumegavam no ar, no final do mês
passado, os incêndios vindos dos cerros algarvios do Caldeirão. A serra ardia e
a gente da serra, que não é nem do Algarve, nem do Alentejo, mas da Serra,
sentia que se lhes queimava a alma. Nos dias que foram passando, as chamas
aumentavam na mesma medida criminosa que aumentava a descoordenação ao combate.
Votados ao esquecimento do litoral turístico, as populações da serra colhiam a
prova final de que a desertificação humana que os rodeia no dia a dia, fruto
das mudanças de rumo na vida social e da subsistência económica que décadas
antes as levaram a descer às praias betuminosas do desenvolvimento e do consumo
fácil, resultava agora numa desertificação de terra queimada. Condenando uma
paisagem, tida como desprovida de gente e de outros seres vivos, cuja milenar
dinâmica e interação entre o homem e natureza não encaixa na lógica urgente do
lucro imediato e na reapropriação desse imenso território pelas fileiras
depredadoras da economia, como seja a reincidente indústria do eucalipto.
Da gente da serra, pois não é por ser montanheira
que anda de olhos tapados, aflorava de imediato nas conversas nubladas pelo
fogo e pela mágoa, as coincidências de arderem hectares e hectares de terras
compradas pouco tempo antes pela Portucel, ou como a oportuna faísca que ardera
a serra poderia iluminar o futuro da indústria da celulose perante a acalorada
proposta do Governo que pretende que a área ardida deixe de ter que ser
reflorestada com árvores da mesma espécie, podendo ser replantada com
eucaliptos. Esse decreto-lei permitirá a arborização de pequenas parcelas até 5 hectares e a
rearborização de parcelas até 10 hectares, «com qualquer espécie vegetal»
mediante uma simples comunicação prévia ao Instituto da Conservação da Natureza
e Floresta, cuja falta de resposta em 30 dias implica o seu deferimento tácito.
Neste cenário e em terra queimada, entre a falta de forças em recomeçar tudo de
novo, sentida naturalmente na maioria destas pessoas nos seus finais de vida, e
na ausência dos filhos e herdeiros, a indústria do eucalipto poderá dar por fim
o ultimo golpe onde vier a assentar.
Com este novo passo legislativo, em nome dessa
retoma agrícola e florestal assente no princípio que condenou a paisagem do sul
português – e de ruralidade no seu todo – que é a de servir o proprietário
absentista e as monoproduções industrializadas, cairá por terra a herança e em
boa parte a lição dessa gente da serra. Cairá por terra a evidente riqueza da
cortiça – pé de meia dessas pessoas e da economia nacional – como dos recursos
silvestres característicos do Baixo Alentejo e Serra Algarvia (alfarroba,
cogumelos, ervas silvestres, medronho e plantas aromáticas e medicinais),
anunciados em programas de desenvolvimento local e regional e que continuaremos
a ouvir falar como promessas ou puxando o lustre a um jogo de forças económicas
viciadas à partida. Da mesma forma perderá terreno o contraponto da oferta ao
que chegam de fora em busca de um território natural e humano único, vivido nas
diferentes escalas que oscilam entre o barranco de uma ribeira e a contemplação
dos seus cerros enrugados, face à invasão massificada do turismo algarvio (como
é exemplo a recente investida em Vale do Freixo, Loulé).
Antes que tudo arda, o que urge resgatar, é antes
de mais a Serra e a milenar vida que a caracterizou, que como descreveu Cláudio
Torres, se enredou em “todo um emaranhado de pequenas comunidades que escapam à
dependência directa desses senhores e que conseguem refugiar-se num velho
sistema autonómico de sobrevivência”.
Filipe Nunes, Agosto 2012
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