(o meu artigo no i de hoje)
Junto a muitos outros e outras, temos vindo a apelar a que o
descontentamento individual face à actual situação política dê lugar ao
protesto colectivo. No último mês e meio, por obra e graça de milhares de
factores, o protesto tomou conta das cidades. Multidão atrás de multidão,
manifestação atrás de manifestação, as pessoas saíram à rua, protestaram contra
a actual situação e a onda ameaça avolumar-se. Neste cenário, há quem continue
a dizer que protestar não chega e que é preciso, sim, construir alternativas. É
um erro, porque ou a alternativa nasce do interior do protesto ou não terá
força para vencer.
A ideia de que a
alternativa é uma fórmula que, trabalhada por um comité de dirigentes ou por
uma elite de peritos, conferirá ao protesto a clarividência que dele estaria
ausente, ideia que animou todas as vanguardas, falhou redondamente uma e outra
vez. E falhou por duas razões. Em primeiro lugar, porque quem protesta também é
clarividente e não gosta de se ver simplesmente na pele de um cavalo selvagem à
espera de ser domado por um qualquer cavaleiro. Em segundo lugar, falhou porque
os cavaleiros que acham que vêm de fora, por mais lúcidos e decididos que se
julguem, nem sempre são tão clarividentes quanto o seu espelho lhes faz crer.
Precisamos, pois,
de abandonar qualquer espécie de concepção instrumental do descontentamento
popular e do protesto colectivo. Não se trata aqui de defender, entenda-se, que
todo o protesto tem razão de ser a partir do momento em que é, mas antes de
exigir que olhemos para os gestos e as palavras que fazem os protestos com o
mesmo cuidados que devotamos à análise dos gestos e palavras dos dirigentes que
se situam do lado esquerdo ou direito do hemiciclo parlamentar e dos peritos
que os assessoram.
Como modificar o
nosso olhar? Não é fácil, mas, de novo, a crítica é a única forma de ir
apurando a alternativa. Critique-se a forma de escrever de um dos mais
acutilantes cronistas dos nossos média, Daniel Oliveira, exemplo tanto mais
útil porque grande parte das posições do cronista em relação ao actual governo
não merecem a nossa discordância. Nos seus textos, Daniel tem-nos falado sobre
o “desespero popular”, sobre um “povo furioso” ou ainda, entre outros exemplos
possíveis, acerca da “raiva em que as pessoas estão”. Tudo isto parece
incontestável, mas haveria que perguntar duas coisas: em primeiro lugar, se
este tipo de representação do descontentamento não acaba por fazer desse povo
de que nos fala uma entidade tanto mais potente quanto mais embrutecida, isto
é, um corpo politicamente inimputável, sofrível mas incapaz de pôr cobro, por
si só, ao seu sofrimento; e, segunda pergunta, se não é justamente esta suposição
de um tal estado de descontrolo por parte da população que leva o nosso
cronista, juntamente com outras boas almas da nossa esquerda cuja generosidade
e voluntarismo não discutimos por um momento que seja, a entender que protestar
não basta e que é preciso oferecer uma alternativa aos desesperados.
É também nas
formas de elogio ao povo que protesta que se encontra, por vezes, a atribuição
de uma deficiência a esse mesmo povo, deficiência que só poderia ser resolvida
com o auxílio de seres dotados de uma razão política superior. Coisa importante
para que este esquema funcione é que dirigentes e peritos, partidos e
individualidades, denotem grande confiança nas suas próprias competências
racionais. Poderão os leitores mais humildes julgar que tamanho nível de
confiança é simplesmente inatingível, mas, na verdade, basta uma boa dose de
ignorância quanto ao facto de a nossa própria racionalidade política ser também
ela moldada por emoções e feitios que só em parte devem à razão. É tamanha
ignorância, aliás, que tem permitido que algumas figuras à esquerda estejam
sempre prontas a criticar os dirigentes dos partidos de esquerda em nome da
unidade dos partidos da esquerda, supondo que estão a falar em nome do
interesse geral das esquerdas e não já do seu legítimo mas próprio interesse.
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