Nestas duas últimas semanas foram divulgados vários textos que pretendem discutir diferentes propostas de caminhos que se apresentam à Esquerda, os quais foram oportunamente divulgados pelo Miguel Serras Pereira. Começando com "A classe trabalhadora vai à rua e encontra os mesmos do costume", devo dizer que apesar de concordar genericamente com a análise, esta apresenta a meu ver vários defeitos. A começar pelo título, infeliz, que sugere que apenas alguns devem possuir o direito de sair à rua, o que se não coaduna de todo com a democracia radical advogada pelos autores do texto. Mas também uma excessiva valorização quer da importância dos impulsionadores originais das manifestações inorgânicas que mais sucesso tiveram em termos de mobilização, quer da capacidade do PCP, CGTP e organizações associadas para virem a conseguir controlar e canalizar em seu proveito a raiva e o desespero que tem extravasado para a rua. Em termos de clarividência, parece-me mais acertada esta recente análise de José Pacheco Pereira, também mencionada pelo Tiago Mota Saraiva. O aspecto essencial que os autores do texto em apreço parecem não ter tido em conta é que o PCP, e organizações associadas, estão muito de longe de virem a estar numa posição de supremacia na sociedade portuguesa, pois não possuem nem o apoio (ou mesmo apenas a simpatia) da maioria da população, nem o apoio duma fracção significativa das forças armadas. O PCP sabe disto, e por isso apenas almeja maximizar o seu poder negocial, tornando-se incontornável em qualquer futuro governo de "salvação nacional". Ou seja, sim o PCP tentará controlar "a rua", mas não, não terá grande sucesso devido aos fortes obstáculos sociológicos e culturais que tem de enfrentar na sociedade portuguesa.
De qualquer modo, como antes afirmei, concordo genericamente com a análise feita, nomeadamente no que respeita à identificação e caracterização dos dois eixos fundamentais segundo os quais a estrutura dum movimento pode-se desenvolver: horizontalmente - assente numa percepção de igualdade entre todos, que impossibilita a emergência duma vanguarda que julga ter o direito a liderar; verticalmente - como resultado do aparecimento de hierarquias, que acabam sempre por ser preferencialmente preenchidas por aqueles que julgam possuir o direito natural, porque mais "esclarecidos", ao exercício do poder. "A existência de vanguardas nas lutas sociais é até certo ponto inevitável e, em termos estritamente de dinamização política, até pode ser necessária. Como sempre sucede nas lutas sociais, o mais importante é que as vanguardas nunca se cristalizem e se burocratizem e, por outro lado, que o movimento de consciencialização política e de definição de relações solidárias extravase sempre os sectores mais activos e mais dinâmicos e vá diluindo progressivamente as fronteiras entre a vanguarda e a classe."
O segundo texto, intitulado "Os perigos da «nação em cólera»" e também publicado no Passa Palavra, constitui uma análise demolidora do manifesto "O Meio da Esquerda: Do Contra ao Como". Este último apresenta graves lacunas, e ideias inaplicáveis no tempo político acelerado em que vivemos. Os seus autores começam por criticar 3 posições que têm sido defendidas (não só) à Esquerda: extensão do prazo para a diminuição do déficit do Estado; re-negociação da dívida (pública); suspensão, ou mesmo anulação, do pagamento dessa dívida. Mas nunca chegam a apresentar uma proposta alternativa: "levar a troika ao aeroporto" implica exactamente o quê?! E vir propor medidas que em nada ajudam a resolver a actual situação, para além de serem absurdas ou demasiado vagas, como a constituição dum fundo soberano ou a criação duma economia assente em "cérebros de obra", só denota incapacidade para pensar o presente. No entanto, o texto publicado no Passa Palavra, merecendo a minha concordância nas críticas que faz, peca por ser parco em propostas alternativas. Tanto quanto consigo descortinar, apenas sugere a constituição de "novos organismos nos locais de trabalho" e "a convocação de assembleias nos bairros". Concordo plenamente. Mas não é suficiente. Ironicamente, parecem partilhar com os autores do manifesto que criticam, a incapacidade para pensarem dentro dos actuais constrangimentos sócio-económicos e político-culturais. Em particular, parecem desprezar a possibilidade de uso das actuais estruturas de coordenação social, mesmo que re-construídas, para fazer face aos problemas com que nos defrontamos. Como muito bem assinalam, há hoje o perigo claro duma deriva fascizante, mas parecem ignorar que esta se tornará tão mais provável quanto maior se tornar o grau de insegurança no presente e incerteza perante o futuro, resultante da acelerada dissolução das estruturas acima mencionadas, que não terão substituto claro e universalmente aceite tão cedo. Voltarei ao assunto em breve, quando analisar o que se passou no Congresso Democrático das Alternativas.
08/10/12
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8 comentários:
Genericamente estou de acordo com o que o Pedro escreve no postal. Deixo aqui também uns breves apontamentos:
“A classe trabalhadora vai à rua e encontra os mesmos do costume", é um título infeliz, inoportuno no tempo que vivemos, de conteúdo algo exacerbado. É o que acho. Enfim, por uma ou outra razão, e perante as mesmas circunstâncias, as pessoas irão seguir estratégias diferentes, etc. etc.
Nunca gostei do termo “vanguardas”, dos “dirigentes” e dos “dirigidos”, mas acho que sem coordenação e organização, qualquer luta social não passará de uma aventura passageira, que nunca irá longe. Isto não invalida - é mesmo imperioso e de necessidade vital, a oposição a qualquer “vanguardas de burocratas”, em qualquer circunstância.
Quanto aos “perigos de uma nação em cólera”, quase que somos instados a não entrar em ebulição, passe a expressão, por causa de uma hipotética deriva fascizante. É esta a mensagem que perpassa da leitura do texto. Subscrevo, no entanto, a crítica feita ao tal manifesto da “esquerda do Meio...”
É de facto extraordinário que alguém consiga escrever sem lhe tremer a consciência que «O PCP sabe disto, e por isso apenas almeja maximizar o seu poder negocial, tornando-se incontornável em qualquer futuro governo de "salvação nacional".
Ou seja, o que os comunistas afirmam e o vasto património de linha política e correspondente prática que têm desde há décadas não valem nada, o que vale são estes processos de intenção formulados sem nenhuma verosimilhança e
sem qualquer ligação com arealidade.
Caro Vítor Dias,
Não percebo bem em que é que discorda do que eu escrevi. Pretende afirmar que o PCP nunca aceitará participar num "governo de salvação nacional"?!... Depois de toda a ênfase patriótica que os seus dirigentes têm se esforçado em colocar nos seus discursos e documentos? Está-me a dizer que se o Presidente da República convidar o PCP a participar num "governo de salvação nacional", com um programa que fosse substancialmente de encontro às teses do PCP, este recusaria?! Dir-me-à que tal é improvável, quiçá impossível. Não acho. Sinceramente, parece-me um cenário bem plausível caso Portugal se veja obrigado a deixar o Euro. Não são poucos os comentadores, alguns de Direita, que várias vezes afirmaram que um "governo de salvação nacional" só poderá ter sucesso se integrar o PCP, o que obviamente pressuporá fortes concessões a este. Seria irracional a direcção do PCP actuar com base em qualquer outro cenário, em particular apostando numa chegada ao Poder por via da obtenção duma maioria em eleições ou por via dum golpe militar. Não aconteceu após o 25 de Abril, em condições político-sociais muito mais favoráveis, não vai acontecer agora.
Cumprimentos,
Pedro Viana
Não deixa de ser curioso que mesmo num espaço como este do "Vias de Facto" haja alguma dificuldade de pensar a luta social como um processo de resistência a longo prazo onde o mais importante é bloquear políticas dos grupos dominantes, minar o seu poder, conquistar espaços e direitos para as classes e grupos subalternos e acima de tudo afirmar uma (contra)cultura de mudança radical da sociedade e das instituições.
Aderir à moda "propositiva" é enredar-nos na armadilha da co-gestão das instituições de dominação, como fazem o PCP e o BE.
Caro Libertário,
Concordo com tudo o que diz, como objectivo de longo prazo. Mas também há o curto prazo. E no curto prazo há muita gente a sofrer. Será justo deixá-las sofrer, sacrificá-las, a um objectivo de longo prazo, quiçá inalcançável? Não haverá maneira de conciliar objectivos de curto-médio e longo prazo?
Por outro lado, eu não estou a advogar a co-gestão das instituições de dominação. O que proponho é a utilização de algumas instituições e mecanismos existentes para permitir uma transição democraticamente controlada para uma nova forma de organização sócio-económica e política. De outra forma, arriscamos o colapso sócio-económico, que terminaria com a imposição de soluções de estabilidade baseadas na força das armas. O fascismo não andaria muito perto. Há que lembrar, sempre, que quando uma sociedade inicia um caminho, nunca há apenas duas possibilidades - andar para a frente ou recuar. Outros caminhos apresentam-se continuamente, que podem parecer mais apelativos caso o caminho antes iniciado não se revele há altura das expectativas.
Cumprimentos,
Pedro Viana
Um ligeiro apontamento técnico nada dispiciendo, pois, como dizia Pannekoek, a importância dos nomes é muito relativa e afasta-nos muitas vezes de pensar criticamente e ver claramente o nó insuperável das questões, neste caso, o processo de criação e instituição da autonomia das classes em luta contra o Capital e os seus avatares ideológicos e políticos. P. Vieira alude sem entusiasmo aos apelos para a constituição de " novos organismos nos locais de trabalho " e a " convocação de assembleias nos bairros ". Tudo isso tem nome:a irrupção paralela de orgãos de duplo poder( sovietes, conselhos de fábrica, milícias,etc), único caminho para evitar o surgimento de atitudes verticais de dominação política.As fortíssimas manifs de 2011, para não irmos mais longe,mereciam uma expressão militante mais consistente e frutuosa. E tal não surgiu pela acção de controlo e um reformismo vesgo canalizados pela burocracia de caciques autistas e sectários mais funestos e inoperantes. " O dilema que se coloca entre, por um lado,o facto de que não pode existir grupo e acção autónomos, que não se verifica a vitória da revolução, senão na base de um só programa, exprimindo os interesses históricos da classe, e, por outro, o facto de que o portador concreto desse programa não é nunca conhecido de antemão( pelo menos não é nunca reconhecido imediatamente pela maioria da classe) e que várias organizações pretendem disputar a expressão desses interesses- este dilema fundamental de toda a politica revolucionária não pode ser resolvido a partir de uma construção a priori. A solução, a sintese concreta destes dois termos, não se pode construir senão através da experiência e só se pode modificar à luz dessa mesma acção ",C. Castoriadis. A experiência do Movimento operário.Como lutar ". Niet
Pois, a longo prazo dizia o Keynes, estamos mortos. Isso de adiar projetar sempre ou a luta imediata ou o longo prazo sem nunca pensar em como ligar um extremo ao outro é um dos vícios que a esquerda tem alimentado, e do qual obviamente se reconhece ser difícil ser, mas que nem por isso deixa de ser menos urgente.
Caro Pedro Viana:
O Pedro escreveu «governo de salvação nacional» e esqueceu-se do sentido corrente, contornos e características que, em 99% dos casos, estáo aparecendo ligados à expressão.
Foi em relação a esses contornos e caracteristicas ( e às políticas que daí derivam) que fui tão peremptório.
Pontop absolutamente claro é que o PCP se bate desde há muito por uma alternativa de esquerda.
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