Um século atrás escrevia o amigo Carlos Marx:
«A
miséria religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da miséria real e o protesto
contra a miséria real. A religião é o suspiro do indivíduo oprimido, o coração
dum mundo sem coração, ela é também o espírito dum mundo sem espírito».
Estou a citar mais ou menos de memória…
Tudo
isto estava, e está, certíssimo!
Mas o que o Carlos não podia imaginar
nem desvendar, era como este «suspiro» se ia tornar mercadoria e como a «expressão
da miséria real» se ia tornar chorudo negócio de poder e poder de negócios.
E aqui estamos hoje, com estes business de Deus.
De
realçar também que a obsessiva preocupação com o avanço do Islão cobre e serve
de cobertura para o avanço dessas forças obscurantistas mais próximas da «nossa
cultura », como por aí se ouve dizer… As quais, estão a crescer tanto ou
quase tanto como o Islão integrista. Só que, por razões obviamente não
obscuras, este crescimento não é assinalado pelos adeptos iluminados do «choque
de civilizações».
Um
amigo brasileiro envia-me estas linhas de desabafo. São reflexões que me
parecem levantar questões importantes, com desacordos e acordos que fazem
pensar.
E
que vêm mesmo a propósito em tempos de compras e de árvores de Natal. Num mundo
mercantil sem coração, sem espírito !
&&&
O avanço das igrejas protestantes neo-pentecostais ao
estilo texano é um termômetro do que está a acontecer em Brasil...
Um dos fundadores do PT, o escritor e teólogo Frei Betto,
um frade católico ligado à teologia da libertação (frade petista um tanto
progressista), fez recentemente críticas a estas Igrejas ao falar a cerca de
mil lideranças católicas no 9º Encontro
Nacional Fé e Política, no final de semana, no campus da UCB (Universidade Católica de Brasília).
Se mostrou preocupado com os “segmentos
religiosos [evangélicos] que estão cada vez mais partidarizados”. A Frente Parlamentar Evangélica, à qual
Frei Betto se referiu, é presidida pelo deputado João Campos (PSDB/GO [Partido
da Social-Democracia Brasileira, direitista e neoliberal, estado de Goiás]). É
composta por deputados (a maioria) e por senadores de diferentes partidos, no
total de 79.
Esta Frente
Parlamentar Evangélica tem se destacado por ser contra, por exemplo, as
propostas de igualdade aos homossexuais ou de atendimento especial a mulheres
vítimas de estupro. Se pauta principalmente por uma leitura ultra-conservadora
da Bíblia. Um de seus integrantes, pastor Marco Feliciano [um ex-travesti
convertido, segundo a lenda popular], é presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. Estão agora a
colocar projetos de lei que permitem às entidades religiosas questionar a
constitucionalidade de leis e projetos de leis no Supremo Tribunal Federal. Se
aprovada, esta proposta é o primeiro golpe de morte desferido ao estado laico
brasileiro. Cabe aqui lembrar que o governo dos pelegos sindicais do PT fez
alianças com estas igrejas que muito as fortaleceram durante os dois mandatos
de Lulla e o primeiro de Dilma. O governo das tecnocracias de esquerda se
tornou uma incubadora deste fascismo, que começa a quebrar a casca.
Os fundamentalistas evangélicos já congregam cerca de 42
milhões de seguidores no país (22,2% da população, dados do censo de 2010 do
IBGE), dos quais 14 milhões pertencem à Igreja
Assembléia de Deus, a mais fanática e militante de todas, pertencente ao
pastor Silas Malafaia. Estas igrejas já controlam um patrimônio estimado de 72
bilhões de reais (aproximadamente 37-40 bilhões de dolares), arrecadam cerca de
20 bilhões de reais ao ano, e são donas de faculdades particulares, canais de
TV e radio, fundos de pensão, estúdios e gravadoras musicais, etc. Como possuem
79 parlamentares... já conseguem vetar leis de apoio a mulheres vitimas de
abuso, a homossexuais, minorias religiosas. Não possuem nenhuma plataforma
propositiva, sua atuação consiste apenas na "defesa da familia" e
valores conservadores. Entretanto, sob a rubrica de "governo dos
justos", já começam a formar projeto político e seu sonho de transformar o
Brasil em um "país cristão".
Enquanto isso, todos os dias chegam noticias de se
agredirem terreiros de candomblé, quebrarem e queimarem templos indígenas. Ou
discriminarem homossexuais; e noticias de pastores que acobertam maridos que
espancam esposas, pastores envolvidos com drogas, lavagem de dinheiro,
estupros, e coisas assim. Perseguem professores que ensinam Darwin nas escolas
e organizam boicotes coletivos o leituras
de livros considerados "apologetas do satanismo e do
homossexualismo" em escolas e faculdades.
Estamos já preocupados com isto há anos, mas a coisa
começa a assumir uma dimensão que nos assusta muito. Já presenciamos situações
tensas dentro de trens. Não se pode mais falar abertamente de certos assuntos
em lugares públicos sob o risco de brigas e gritarias com os radicais. Já
aparecem analistas políticos advertindo sobre o risco de um fim do estado laico
e um governo futuro formado por coalisões religiosas de direita. Para se ter
uma idéia, até sheikhs de comunidades islâmicas se sentem preocupados com isso
(porque os evangelicos detestam muçulmanos tambem)! Um deles relatava ter sido
seguido nas ruas e ameaçado por sujeitos fanaticos.
Para estas igrejas, toda religião (e cultura humana) que
não seja judaica-cristã é satânica. Não faltam pregadores que incitam à
intolerância, aos moldes dos Protocolos dos Sábios do Sião, ao insuflar seus
fiéis a uma cruzada contra a imensa "conspiração satânica" que
governa o mundo (que incluiria, para eles, desde vegetarianos, gays, homeopatas,
acupunturistas, feministas, misticos, e tudo que distoa).
Será que a crise da racionalidade moderna, do valor de
troca, e consequentemente, das ideologias de modernização sobre ela fundada,
proporciona uma volta à religião? Cabe perguntar isso, se a crise da metafísica
da ciência-razão não leva de volta os individuos à metafísica-teológica, da
qual a primeira herdou a estrutura. Cristianismo, com sua trindade como matriz
da lógica dinheiro-mercadoria-mais-dinheiro. Islão como sistema de reprodução
simples patriarcal (unitarismo que representa dinheiro abstrato e Estado mas
com outro esquema de reprodução). Essa é uma boa suspeita.
A espiritualidade e a religiosidade popular são fatos
sociais e antropologicos naturais às sociedades humanas, e que nunca irão
desaparecer - apenas mudar de formas. Podem ruir as religiões organizadas e
hierarquicas, mas os sujeitos vão criar seus simbolos e suas inter-relações
entre si e com a natureza de outras maneiras.
A religiosidade popular inumeras vezes pode também ser
campo de lutas, e uma boa heresiazinha, teologias da libertação ou
comunistaristas podem cumprir um papel de mobilização social útil, ajudar a
veicular novas relações. Como movimentos tolstoianos, ou o islamismo
anti-institucional de um ali shariati (eliminado pelos Ayatolás; no Brasil há
mesmo rappers muçulmanos negros que são esquerdistas), ou o uso das religiões
africanas e indigenas como elementos de identidade de lutas no Brasil... enfim,
tudo isto é uma grande doidice, mas também terreno de conflitos, a depender de
formas sociais, apropriações e lutas sociais.
Mas neste turbilhão de coisas, fica dificil ter uma
opinião sobre isto tudo. Só se sabe que a coisa anda de mal a pior por aqui, e
estas igrejas pregam o pior darwinismo social. São máquinas econômicas de
arrecadar dinheiro, de des-solidarização, de repatriarcalização. Conseguem hoje
dar mais dores de cabeça do que a velha Igreja Catolica Apostólica moribunda.
Os padres católicos parecem uns liberais perto destes pastores furiosos que
pregam aos gritos como verdadeiros fuhrers
em suas igrejas, e levam os fieis a urrar como torcidas de futebol. Bem o
que Adorno analisava sobre os discursos fascistas do pastor Martin Luther
Thomas. Aliás, foi de lá, do Texas, que estes movimentos horriveis e
intolerantes de exploração da fé popular sairam para a América Latina e Africa
Ocidental.
Ricardo
Flores
2 comentários:
Caro Jorge,
bela pedrada nas árvores de Natal dos centros comerciais ambientes. Como adenda, acrescento este link para o texto de Adorno citado pelo teu camarada:
http://adorno.planetaclix.pt/tadorno21.htm
Abraço para ti
miguel (sp)
Matéria sobre o Pastor Feliciano:
http://revistaforum.com.br/blog/2013/12/para-feliciano-mandela-implantou-a-cultura-da-morte-dentro-da-africa-do-sul/
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