16/12/13

Nota de Natal ou o gangue do menino Jesus


            Um século atrás escrevia o amigo Carlos Marx:
            «A miséria religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro do indivíduo oprimido, o coração dum mundo sem coração, ela é também o espírito dum mundo sem espírito».
            Estou a citar mais ou menos de memória…
            Tudo isto estava, e está, certíssimo!
            Mas o que o Carlos não podia imaginar nem desvendar, era como este «suspiro» se ia tornar mercadoria e como a «expressão da miséria real» se ia tornar chorudo negócio de poder e poder de negócios. E aqui estamos hoje, com estes business de Deus.
            De realçar também que a obsessiva preocupação com o avanço do Islão cobre e serve de cobertura para o avanço dessas forças obscurantistas mais próximas da «nossa cultura », como por aí se ouve dizer… As quais, estão a crescer tanto ou quase tanto como o Islão integrista. Só que, por razões obviamente não obscuras, este crescimento não é assinalado pelos adeptos iluminados do «choque de civilizações».
            Um amigo brasileiro envia-me estas linhas de desabafo. São reflexões que me parecem levantar questões importantes, com desacordos e acordos que fazem pensar. 
            E que vêm mesmo a propósito em tempos de compras e de árvores de Natal. Num mundo mercantil sem coração, sem espírito !


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             O avanço das igrejas protestantes neo-pentecostais ao estilo texano é um termômetro do que está a acontecer em Brasil...
            Um dos fundadores do PT, o escritor e teólogo Frei Betto, um frade católico ligado à teologia da libertação (frade petista um tanto progressista), fez recentemente críticas a estas Igrejas ao falar a cerca de mil lideranças católicas no 9º Encontro Nacional Fé e Política, no final de semana, no campus da UCB (Universidade Católica de Brasília). Se mostrou preocupado com os “segmentos religiosos [evangélicos] que estão cada vez mais partidarizados”. A Frente Parlamentar Evangélica, à qual Frei Betto se referiu, é presidida pelo deputado João Campos (PSDB/GO [Partido da Social-Democracia Brasileira, direitista e neoliberal, estado de Goiás]). É composta por deputados (a maioria) e por senadores de diferentes partidos, no total de 79.
            Esta Frente Parlamentar Evangélica tem se destacado por ser contra, por exemplo, as propostas de igualdade aos homossexuais ou de atendimento especial a mulheres vítimas de estupro. Se pauta principalmente por uma leitura ultra-conservadora da Bíblia. Um de seus integrantes, pastor Marco Feliciano [um ex-travesti convertido, segundo a lenda popular], é presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. Estão agora a colocar projetos de lei que permitem às entidades religiosas questionar a constitucionalidade de leis e projetos de leis no Supremo Tribunal Federal. Se aprovada, esta proposta é o primeiro golpe de morte desferido ao estado laico brasileiro. Cabe aqui lembrar que o governo dos pelegos sindicais do PT fez alianças com estas igrejas que muito as fortaleceram durante os dois mandatos de Lulla e o primeiro de Dilma. O governo das tecnocracias de esquerda se tornou uma incubadora deste fascismo, que começa a quebrar a casca.
            Os fundamentalistas evangélicos já congregam cerca de 42 milhões de seguidores no país (22,2% da população, dados do censo de 2010 do IBGE), dos quais 14 milhões pertencem à Igreja Assembléia de Deus, a mais fanática e militante de todas, pertencente ao pastor Silas Malafaia. Estas igrejas já controlam um patrimônio estimado de 72 bilhões de reais (aproximadamente 37-40 bilhões de dolares), arrecadam cerca de 20 bilhões de reais ao ano, e são donas de faculdades particulares, canais de TV e radio, fundos de pensão, estúdios e gravadoras musicais, etc. Como possuem 79 parlamentares... já conseguem vetar leis de apoio a mulheres vitimas de abuso, a homossexuais, minorias religiosas. Não possuem nenhuma plataforma propositiva, sua atuação consiste apenas na "defesa da familia" e valores conservadores. Entretanto, sob a rubrica de "governo dos justos", já começam a formar projeto político e seu sonho de transformar o Brasil em um "país cristão".
            Enquanto isso, todos os dias chegam noticias de se agredirem terreiros de candomblé, quebrarem e queimarem templos indígenas. Ou discriminarem homossexuais; e noticias de pastores que acobertam maridos que espancam esposas, pastores envolvidos com drogas, lavagem de dinheiro, estupros, e coisas assim. Perseguem professores que ensinam Darwin nas escolas e organizam boicotes coletivos o leituras  de livros considerados "apologetas do satanismo e do homossexualismo" em escolas e faculdades.
           Estamos já preocupados com isto há anos, mas a coisa começa a assumir uma dimensão que nos assusta muito. Já presenciamos situações tensas dentro de trens. Não se pode mais falar abertamente de certos assuntos em lugares públicos sob o risco de brigas e gritarias com os radicais. Já aparecem analistas políticos advertindo sobre o risco de um fim do estado laico e um governo futuro formado por coalisões religiosas de direita. Para se ter uma idéia, até sheikhs de comunidades islâmicas se sentem preocupados com isso (porque os evangelicos detestam muçulmanos tambem)! Um deles relatava ter sido seguido nas ruas e ameaçado por sujeitos fanaticos.
        Para estas igrejas, toda religião (e cultura humana) que não seja judaica-cristã é satânica. Não faltam pregadores que incitam à intolerância, aos moldes dos Protocolos dos Sábios do Sião, ao insuflar seus fiéis a uma cruzada contra a imensa "conspiração satânica" que governa o mundo (que incluiria, para eles, desde vegetarianos, gays, homeopatas, acupunturistas, feministas, misticos, e tudo que distoa).
            Será que a crise da racionalidade moderna, do valor de troca, e consequentemente, das ideologias de modernização sobre ela fundada, proporciona uma volta à religião? Cabe perguntar isso, se a crise da metafísica da ciência-razão não leva de volta os individuos à metafísica-teológica, da qual a primeira herdou a estrutura. Cristianismo, com sua trindade como matriz da lógica dinheiro-mercadoria-mais-dinheiro. Islão como sistema de reprodução simples patriarcal (unitarismo que representa dinheiro abstrato e Estado mas com outro esquema de reprodução). Essa é uma boa suspeita.
            A espiritualidade e a religiosidade popular são fatos sociais e antropologicos naturais às sociedades humanas, e que nunca irão desaparecer - apenas mudar de formas. Podem ruir as religiões organizadas e hierarquicas, mas os sujeitos vão criar seus simbolos e suas inter-relações entre si e com a natureza de outras maneiras.
            A religiosidade popular inumeras vezes pode também ser campo de lutas, e uma boa heresiazinha, teologias da libertação ou comunistaristas podem cumprir um papel de mobilização social útil, ajudar a veicular novas relações. Como movimentos tolstoianos, ou o islamismo anti-institucional de um ali shariati (eliminado pelos Ayatolás; no Brasil há mesmo rappers muçulmanos negros que são esquerdistas), ou o uso das religiões africanas e indigenas como elementos de identidade de lutas no Brasil... enfim, tudo isto é uma grande doidice, mas também terreno de conflitos, a depender de formas sociais, apropriações e lutas sociais.
            Mas neste turbilhão de coisas, fica dificil ter uma opinião sobre isto tudo. Só se sabe que a coisa anda de mal a pior por aqui, e estas igrejas pregam o pior darwinismo social. São máquinas econômicas de arrecadar dinheiro, de des-solidarização, de repatriarcalização. Conseguem hoje dar mais dores de cabeça do que a velha Igreja Catolica Apostólica moribunda. Os padres católicos parecem uns liberais perto destes pastores furiosos que pregam aos gritos como verdadeiros fuhrers em suas igrejas, e levam os fieis a urrar como torcidas de futebol. Bem o que Adorno analisava sobre os discursos fascistas do pastor Martin Luther Thomas. Aliás, foi de lá, do Texas, que estes movimentos horriveis e intolerantes de exploração da fé popular sairam para a América Latina e Africa Ocidental.

Ricardo Flores                                                                                           



2 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Jorge,
bela pedrada nas árvores de Natal dos centros comerciais ambientes. Como adenda, acrescento este link para o texto de Adorno citado pelo teu camarada:
http://adorno.planetaclix.pt/tadorno21.htm

Abraço para ti

miguel (sp)

Anónimo disse...

Matéria sobre o Pastor Feliciano:

http://revistaforum.com.br/blog/2013/12/para-feliciano-mandela-implantou-a-cultura-da-morte-dentro-da-africa-do-sul/