Adriano Campos e Ricardo Moreira escreveram uma das melhores críticas ao Rendimento Básico Incondicional (RBI), que, no entanto, não está isenta de incoerências. Uma delas é de tal modo óbvia, que leva-me a colocar em causa a abertura com que aparentemente pretendem abordar a questão. Todas as propostas de financiamento do RBI vão buscar os fundos necessários, antes de mais, a várias prestações sociais que hoje possuem papel semelhante ao RBI em alguns aspectos (como o RSI), mas estão associadas a grupos específicos da população. No entanto, como o RBI pretende ser universal e possuir um nível suficientemente alto para permitir viver com dignidade, tais recursos não são suficientes. O remanescente só poderá vir através de novos impostos ou o aumento de alguns já existentes. No texto em questão, são mencionadas duas possibilidades: aumento do IVA ou do IRS. A primeira hipótese é claramente mais prejudicial para quem tem menores rendimentos, pois a proporção do rendimento que é alocada ao consumo (e portanto tributável via IVA) é tanto maior quanto menor for o rendimento disponível (ie. os mais ricos poupam e investem mais, consumindo menos proporcionalmente ao seu rendimento). É na abordagem que fazem da segunda hipótese que Adriano Campos e Ricardo Moreira demonstram que, talvez, não estejam a ser completamente sérios na sua crítica. O que escrevem
"Retira-se, portanto, ao salário o que se quer acrescentar em alocação universal. A pretensão igualitária do RBI esbarra no seu modelo politicamente regressivo: atacar os salários dos enfermeiros ou dos professores para submetê-los à dependência do Estado, repartindo esse valor com os mais ricos é uma forma de dar a todos o que não é de todos."
não faz qualquer sentido. É óbvio que um aumento do IRS, mesmo que fosse igual em percentagem para todo os níveis de rendimento (e o mais expectável do ponto de vista político seria que esse aumento crescesse com o rendimento), redistribuído posteriormente como RBI, origina uma transferência de rendimento dos mais ricos para os mais pobres. É absurdo, para dizer o mínimo, dar a entender que os mais ricos ganham rendimento (vindo dos "enfermeiros ou dos professores") com a instauração dum RBI (apesar de também o receberem). É irrelevante se a fronteira entre os que perdem mais via IRS do que ganham via RBI está mais acima (se o RBI for mais reduzido) ou mais abaixo (se o RBI for mais elevado). O que importa é que via IRS e RBI passa a haver uma transferência directa dos que auferem maiores salários, para os que auferem menores salários, ou mesmo nenhum. Ou seja, o RBI contribui para uma equalização dos rendimentos, e em particular do salário efectivo. Que haja à Esquerda quem efectivamente conteste a diminuição da desigualdade salarial diz-nos muito sobre o nível de desorientação que grassa em algumas mentes. E aqueles que apenas auferem rendimentos do Capital?!... Taxem-nos! Expropriem-nos! Tenho a certeza que sendo isso feito, perderiam muito mais rendimento do que ganhariam por passarem a receber RBI. Em que medida é que a instauração dum RBI impede uma maior taxação dos rendimentos do Capital, ou mesmo a sua expropriação?! As necessidades de financiamento do RBI são, aliás, uma "boa desculpa" política e social para fazer isso mesmo.
Consideremos agora a alternativa ao RBI proposta por Adriano Campos e Ricardo Moreira, que denominam de "pleno emprego". Antes de mais, convém reflectir sobre o que é um "emprego". Um emprego é habitualmente definido como uma ocupação remunerada. Ou seja, pode-se considerar que alguém possui um emprego quando: (1) recebe um rendimento regular; (2) em troca dum trabalho executado, também de forma regular. Ora, quando analisamos o RBI constatamos que a condição (1) é satisfeita. Será que a condição (2) também o será? Não exactamente. Não porque aqueles que auferissem do RBI não executariam trabalho, em particular de forma regular, mas porque não seria "em troca". Portanto, alguém defender o "emprego" em alternativa ao RBI, como fonte de rendimento, resulta numa imediata caracterização do trabalho como mercadoria. Isto é claro, ou continuamos confusos à Esquerda?… Obviamente, de modo simétrico, há uma implícita desvalorização de todo o trabalho que não é considerado "útil" (como mercadoria) por potenciais empregadores, ie. pelo mercado ou pelo Estado. Mais, o carácter de "pleno" leva-nos a perguntar: quem? Quem é que vai assegurar o "pleno emprego"? Adriano Campos e Ricardo Moreira defendem explicitamente que sejam os agentes do mercado, ie. empresas (via redução do horário de trabalho), e implicitamente suponho que também o Estado (directa ou indirectamente), a fazê-lo. Ora, sabendo que todo esse "emprego" assenta, na sua esmagadora maioria, em relações hierárquicas de dominação e exploração, nos sectores público ou privado, não podemos de deixar de concluir que Adriano Campos e Ricardo Moreira efectivamente pretendem que todos recebam um rendimento digno, sim, mas apenas através da alienação da sua capacidade de trabalho sob a forma de mercadoria, executando trabalhos por si não escolhidos livremente, sob o domínio de relações hierárquicas, muitas vezes de carácter opressivo. É isto, o "pleno emprego"? É este "trabalho" que exigem como direito para todos? É isto a utopia que dizem defender?…
Bem espremidos, os argumentos de Adriano Campos e Ricardo Moreira contra o RBI consistem em mais do mesmo: o trabalho tem de ser "socialmente" enquadrado através do conceito de emprego; não se pode permitir às pessoas que "abdiquem da luta política", mesmo que para isso tenham de ser mantidas na pobreza e encerradas em "empregos" asfixiantes, alienantes e atentórios da dignidade pessoal.
09/12/13
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2 comentários:
De qualquer forma, penso que os rendimentos do capital também estão sujeitos a IRS (ainda que muitas vezes a taxas liberatórias reduzidas)
Todas as análises, algumas muito boas, partem do pressuposto que o trabalho redime que é um fim e não o menor dos males
Que é feito da VIDA e obra de Agostinho da Silva(trabalho/tortura), Luiz Pacheco Sebastião Alba?
O RBI para além de os «outros» me darem o direito intelectual de ter uma vida alternativa dão-me o direito material a essa liberdade
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