17/12/13

Produzir para manter a ordem


"A obrigação de produzir aliena a paixão pela criação. O trabalho produtivo é parte integrante dos processos de manutenção da ordem. A jornada de trabalho diminui à medida que o império do condicionamento cresce."

Assim se inicia o capítulo 5 do livro "Traité de savoir-vivre à l'usage des jeunes générations" (PDF), também conhecido por "The revolution of everyday life" (PDF), escrito por Raoul Vaneigem em 1967.

Re-lembrado por Tiago Sousa, Raoul Vaneigem tem construído uma das mais lúcidas e incisivas críticas à sociedade contemporânea, vista como constituída no essencial por indivíduos alienados - forçados a reprimir o seu desejo de descoberta e potencial criador, não só por via do consumo que lhes é imposto, mas também em resultado do trabalho que lhes é exigido. A sua leitura torna evidente que a defesa da produção, do emprego, do trabalho assalariado, apenas reforça os mecanismos de comando e controlo do sistema capitalista, e de qualquer outro que eventualmente o venha a substituir. Não basta mudar a propriedade dos meios de produção, não basta passar a gestão desses meios para os trabalhadores, é preciso abandoná-los, quiçá destruí-los. E passar a viver também quando se trabalha, não trabalhar para (sobre)viver.

"Dans une société industrielle qui confond travail et productivité, la nécessité de produire a toujours été antagoniste au désir de créer. Que reste-t-il d'étincelle humaine, c'est-à-dire de créativité possible, chez un être tiré du sommeil à six heures chaque matin, cahoté dans les trains de banlieu, assourdi par le fracas des machines, lessivé, bué par les cadences, les gestes privés de sens, le conrôle statistique, et rejeté vers la fin du jour dans les halls de gares, cathédrales de départ pour l'enfer des semaines et l'infime paradis des week-ends, où la foule communie dans la fatigue et l'abrutissement ? De l'adolescence à l'âge de la retraite, les cycles de vingt-quatre heures font succéder leur uniforme émiettement de vitre brisée: fêlure du rythme figé, fêlure du temps -qui-est-de-l'argent, fêlure de la soumission aux chefs, fêlure de l'ennui, fêlure de la fatigue. De la force vive déchiquetée brutalement à la déchirure béante de la vieillesse, la vie craque de partout sous les coups du travail forcé. Jamais une civilisation n'atteignit à un tel mépris de la vie; noyé dans le dégoût, jamais une génération n'éprouva à ce point le goût enragé de vivre. Ceux qu'on assassine lentement dans les abattoirs mécanisés du travail, les voici qui discutent, chantent, boivent, dansent, baisent, tiennent la rue, prennent les armes, inventent une poésie nouvelle. Déjà se constitue le front contre le travail forcé, déjà les gestes de refus modèlent la conscience future."

7 comentários:

Anónimo disse...

E se em vez de lutarem contra o capitalismo, o melhorassem? O trabalho, na parte das sociedades onde o capitalismo mais se desenvolveu, é algo que é desafiador, estimulante e que dá sentido de vida. Esta guerra contra o capitalismo só tira anos de vida e sentido de existência aqueles que a fazem. Melhorar e transformar o capitalismo, não destruindo-o.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Anónimo,

melhorar o capitalismo significaria, do meu ponto de vista, democratizar o regime económico e o seu funcionamento - democratizar a disposição e direcção dos meios de produção, democratizar o mercado, democratizar o trabalho através da decisão pelos interessados dos seus montantes, objectivos e modalidades, e assim por diante. Mas é difícil considerar que estes "melhoramentos" não equivalem à transformação do capitalismo num regime completamente oposto ao actualmente dominante - ou, se quiser, à sua efectiva destruição.

Saudações democráticas

msp

Anónimo disse...

Carissimo Pedro Vieira. O Vaneigem tem uma obra enorme e muito importante, com mais de 20 volumes. Foi o derradeiro " situacionista " a separar-se com diplomacia do intratável Debord, isto nos anos 80. Tem dado umas entrevistas muito importantes nos últimos tempos. Preconiza uma forma muito aberta e dinâmica de intervenção pluri-cultural através dos Conselhos e comunas de ateliers e bairros. " Não é um revolucionário mas ainda um individuo que não se libertou do intelectualismo, e que objectivamente se vira para a contra-revolução, aquele que admite
que uma revolução proletária se realiza facilmente e sem oposições...", sublinhou no seu famoso Ratgeb- Da Greve Selvagem à Autogestäo", traduzido em Portugal. O livro que o P. Viana cita foi o primeiro por ele publicado.Creio que outro tratado- "Banalidades de Base" , também existe em tradução portuguesa,e os dois referidos expressamente constituem dispositivos de certo alcance para a transformação social e cultural. Salut! Niet

Anónimo disse...

Caro Miguel Serras Pereira

Concordo consigo quando diz "melhorar o capitalismo significaria, do meu ponto de vista, democratizar o regime económico e o seu funcionamento - democratizar a disposição e direcção dos meios de produção, democratizar o mercado, democratizar o trabalho através da decisão pelos interessados dos seus montantes, objectivos e modalidades, e assim por diante."

No entanto considero que estes "melhoramentos" favoreciam mais a situação das classes trabalhadoras se tivessem lugar no próprio quadro do capitalismo do que conquistados pela via da sua destruição.

De certeza que já atravessou o seu espírito uma pergunta com algo parecido a 'o que é que estamos a ser enquanto somos investidos na destruição? '

Ou, no que é que nos convertemos a pensar e a agir com o objectivo de destruir

Se o funcionamento das pessoas e dos grupos fosse algo diferente daquilo que é, talves pudessemos pensar a transformação duma forma diferente.

Não o sendo, acho a ideia de destruir o capitalismo uma ideia muito mais perigosa para aqueles que apostam na destruição, do que para os outros que vivem no capitalismo e que existem com a ideia de o melhorar.

O conflito não é imanente à vida, aos grupos, às pessoas nelas próprias?

Não será o capitalismo o sistema mais consentãneo com a ideia de conflito?

Não vivemos desde sempre em sistemas económicos em que os pressupostos orgânicos de funcionamento são na essência básica idênticos?

Os regimes a Norte da Europa não serão ao fim ao cabo a ilustração de que "os melhoramentos" funcionam melhor do que a ideia e a acção da destruição?


Miguel Serras Pereira disse...

Caro Anónimo,

a destruição não é, para mim, um fim em si própria. No caso que nos ocupa, é subsidiária da vontade de democracia e da acção política que visa a democratização do regime económico governante. E a minha ideia é que a democratização do actual regime económico teria por efeito ou consequência a destruição do capitalismo - ou a sua transformação em qualquer coisa de radicalmente diferente. Quanto ao resto, não concebo a democracia como o fim da história, ou o desaparecimento das tensões e conflitos em geral. Concebo a democracia como um regime de participação igualitária por parte dos cidadãos no exercício do poder que os governa. É uma meta razoável e, se quiser, anti-utópica.
Por fim, não posso aceitar a ideia de que, no fundo, os regimes e modos de funcionamento da economia foram - e serão — sempre idênticos no essencial, ao longo da história humana. Basta considerá-la com um pouco de atenção para o demonstrar. Mas não é aqui o lugar mais adequado para tentar fazê-lo.

Saudações democráticas

msp

joão viegas disse...

Ola,

Dois pequenos reparos sobre esta vossa discussão :

1. Trabalho é uma palavra ambigua (ergon/ponos, opus/labor).

2. O capitalismo é criticavel, pelo menos em meu entender, porque reduz o trabalho a uma so das suas componentes, pelo menos para uma grande multidão de pessoas, que se vê assim impossibilitada de lhe dar sentido, e de o apropriar (este ultimo ponto sendo uma obvia contradição da doutrina capitalista).

Lembro-me perfeitamente de ter ficado deslumbrado apos a leitura do "que sais-je" que o Vaneigem escreveu sobre as heresias. Não fazia então a mais pequena ideia de que o autor era uma dos grandes nomes do situacionsimo...

Abraços democraticos

Anónimo disse...

Enrique Escobar, um dos responsáveis pela reedição das Obras Completas de Castoriadis nas Éditions du Sandre, Paris, aponta num longo prefácio aos terceiro e quarto volumes- " Quelle Democratie?-I et II "- e perspectiva o futuro do projecto autonómico apontando: "Para aqueles que não acreditam em milagres, será preciso acima de tudo,sem impaciência nem renúncia, estarem atentos ao que pode surgir na sociedade- tentando construir, aqui e agora,instituições frágeis e imperfeitas, destinadas como todas as coisas a degenerarem, mas que podem talvez contribuir, outrossim, um dia, para o surgimento da novidade que puderá erguer-se. (...)o papel de um movimento politico organizado( paradoxalmente, já que no contexto actual não se vislumbra qualquer tipo de renovação no horizonte)pode ser importante para dar forma e voz à vontade,mesmo ultra-minoritária, de transformação da sociedade no sentido da autonomia ". E lembra aquela singular e fortíssima tese de Castoriadis, tantas vezes esquecida e neglicenciada:" O eclipse do projecto de autonomia pode durar seis anos, sessenta anos ou seis séculos ". Niet