30/12/13

A insurreição no Brasil



A insurreição generalizada que ocorreu no Brasil em Junho passado teve alguns elementos peculiares. Um dos mais relevantes foi o facto de ter tido na sua génese a reivindicação da gratuitidade total do transporte público. Como Raúl Zibechi salienta num excelente artigo de pesquisa sobre as origens do MPL - Movimento Passe Livre, publicado no volume 34 da revista OSAL - Observatorio Social de América Latina,

"La adopción del objetivo estratégico de la “tarifa cero” fue apenas uno de los virajes del movimiento. Los demás irán en el mismo sentido: la profundización de su carácter popular y anticapitalista. Despegarse de la consigna de “pasaje gratuito” fue también un modo de ir más allá del movimiento estudiantil para levantar una propuesta que involucra a toda la población.(…) Todo esto le permitió al MPL convertirse en referencia en el debate sobre el transporte y sobre el derecho a la ciudad, que es el núcleo de la propuesta sobre la “tarifa cero”."

Uma tradução para inglês deste artigo pode ser encontrado aqui e aqui.

Num outro artigo, da autoria de Giuseppe Cocco e Antonio Negri, publicado no volume 17 da Revista Global Brasil, intitulado Do bolsa família ao levante da multidão, é colocada em evidência a ligação entre a criação do programa Bolsa Família e o aparecimento duma nova classe de actores sociais, antes esmagados e isolados na luta diária pela mera sobrevivência,

"Em um artigo publicado em 2005, dissemos que as críticas de direita e de esquerda ao Programa Bolsa Família (PBF) convergiam porque usavam categorias ultrapassadas. Os dois lados diziam que era assistencialista e criava dependência. Só a geração de emprego proporcionaria “emancipação” e essa dependeria da política econômica. Nós afirmamos que as duas críticas eram erradas por pensarem o trabalho como emprego. No capitalismo contemporâneo, o trabalho não envolve mais apenas isso. O próprio chão de fábrica depende da circulação. A produção implica a mobilização da vida como um todo, uma mobilização que não é paga. Massificado, apesar de sua concepção originalmente neoliberal (condicionada e focada), o PBF se tornou o embrião de uma renda básica, um primeiro reconhecimento das dimensões produtivas da vida."

Aproveito para relembrar os artigos muito interessantes sobre a insurreição de Junho publicados na edição especial da Revista Sinal de Menos, intitulada Os Sentidos da Revolta, e já antes assinalados pelo Jorge Valadas.

Junho já terminou. Mas a luta continua e amplia-se!

27/12/13

Glosa de Jaufré de Rudel (c.1100-c.1148)


Amors de terra lonhdana

Amors de terra lonhdana,
per vos totz lo cors mi dol.

Amor de terra longínqua
de terra em terra sem fim

A morte a bordo do mar
o mar a bordo de ti

Da morte leva-te o mar
a mim a terra de ti

Amor de terra longínqua
amor sem-terra sem fim

24/12/13

É Natal!

Competição e autonomia

Na discussão entre o Hugo Mendes e o Alexandre Homem Cristo sobre a queda dos resultados educativos na Suécia, o segundo aventa a hipótese de que a causa mais provável esteja na autonomia ("não enquadrada") das escolas, e não tanto na competição.

Mas o ponto da competição entre escolas não é exactamente competição entre modelos educativos diferentes? Logo não me parece que faça grande sentido separar a "competição" da "autonomia"; ou melhor, não é muito difícil ter "autonomia" sem "competição" - a escola em que eu cresci (1979-1991) era mais ou menos isso - um sistema de ensino público, em que os alunos iam para a escola da sua área de residência ou do emprego dos pais (a partir do 10º ano, para a escola em que houvesse a área que queriam), e em que as escolas eram largamente auto-geridas (e em que, na sala de aula, cada professor ensinava à sua maneira e muitas vezes escolhia - face à extensão dos programas - qual a matéria a dar).

Mas o oposto, "competição" sem "autonomia" é dificil de perceber o que seria (bem, podemos imaginar um sistema em que uma autoridade central decidisse programas e métodos diferentes para escolas diferentes, e depois essas diferentes escolas fossem competir umas com as outras com base nessas diferenças centralmente determinadas; podemos realmente imaginar isso, mas parece-me um sistema absurdo).

É verdade que AHC não fala em acabar com a autonomia, mas em "enquadrá-la" (ou seja, limitá-la); mas defender a limitação da "autonomia" implica, na prática, defender a limitação da "competição" (mas é interessante como, pelos vistos, na moderna mentalidade liberal, "competição" parece ter uma maior carga positiva que "autonomia", para acharem que o maior problema no "cheque-educação" sueco estar na "autonomia" e não na "competição").

Mas isto chama uma questão mais profundo - é que os chamados defensores da "liberdade na educação" não são realmente nada entusiastas da "autonomia" (e daqui para a frente, neste post, jã não estou a falar especificamente do AHC, nem conheço o seu pensamento acerca de muitos assuntos que vou referir); pelo menos no que se refere à escola pública, muitas vezes essa área politica parece ser a maior defensora da centralização, via mega-agrupamentos, directores nomeados, fim da gestão democrática, guiões hiper-detalhados determinando metas de aprendizagem, (por vezes até vêm com conversas de "livro único"), etc., etc. Na verdade, por vezes até parece que o tal "centralismo burocrático estalinista do Ministério da Educação" tem como problemas fundamentais os concursos nacionais de professores e as regras determinando em que escolas os alunos se podem matricular, e em tudo o resto o centralismo já não faz mal.

O que me leva a pensar que o ponto  fundamental de muitos dos defensores da "liberdade da educação" não é tanto que que numa esquina uma escola tipo Summerhill e noutra uma para "Tiger Moms", mas sobretudo que as escolas possam facilmente expulsar (ou negar a matricula a) alunos e despedir professores.

23/12/13

Leituras para a estação

O consumo patológico tornou-se tão habitual que praticamente ninguém o identifica como tal.

The Gift of Death por George Monbiot

Quanto mais a odiamos, mais ela concorda connosco. Como a publicidade transformou o anti-consumismo numa arma secreta.

Ad Nauseam por Adam Corner

18/12/13

Israel não existe

Ou, pelo menos, não existem israelitas (segundo o seu Supremo Tribunal).

17/12/13

Produzir para manter a ordem


"A obrigação de produzir aliena a paixão pela criação. O trabalho produtivo é parte integrante dos processos de manutenção da ordem. A jornada de trabalho diminui à medida que o império do condicionamento cresce."

Assim se inicia o capítulo 5 do livro "Traité de savoir-vivre à l'usage des jeunes générations" (PDF), também conhecido por "The revolution of everyday life" (PDF), escrito por Raoul Vaneigem em 1967.

Re-lembrado por Tiago Sousa, Raoul Vaneigem tem construído uma das mais lúcidas e incisivas críticas à sociedade contemporânea, vista como constituída no essencial por indivíduos alienados - forçados a reprimir o seu desejo de descoberta e potencial criador, não só por via do consumo que lhes é imposto, mas também em resultado do trabalho que lhes é exigido. A sua leitura torna evidente que a defesa da produção, do emprego, do trabalho assalariado, apenas reforça os mecanismos de comando e controlo do sistema capitalista, e de qualquer outro que eventualmente o venha a substituir. Não basta mudar a propriedade dos meios de produção, não basta passar a gestão desses meios para os trabalhadores, é preciso abandoná-los, quiçá destruí-los. E passar a viver também quando se trabalha, não trabalhar para (sobre)viver.

"Dans une société industrielle qui confond travail et productivité, la nécessité de produire a toujours été antagoniste au désir de créer. Que reste-t-il d'étincelle humaine, c'est-à-dire de créativité possible, chez un être tiré du sommeil à six heures chaque matin, cahoté dans les trains de banlieu, assourdi par le fracas des machines, lessivé, bué par les cadences, les gestes privés de sens, le conrôle statistique, et rejeté vers la fin du jour dans les halls de gares, cathédrales de départ pour l'enfer des semaines et l'infime paradis des week-ends, où la foule communie dans la fatigue et l'abrutissement ? De l'adolescence à l'âge de la retraite, les cycles de vingt-quatre heures font succéder leur uniforme émiettement de vitre brisée: fêlure du rythme figé, fêlure du temps -qui-est-de-l'argent, fêlure de la soumission aux chefs, fêlure de l'ennui, fêlure de la fatigue. De la force vive déchiquetée brutalement à la déchirure béante de la vieillesse, la vie craque de partout sous les coups du travail forcé. Jamais une civilisation n'atteignit à un tel mépris de la vie; noyé dans le dégoût, jamais une génération n'éprouva à ce point le goût enragé de vivre. Ceux qu'on assassine lentement dans les abattoirs mécanisés du travail, les voici qui discutent, chantent, boivent, dansent, baisent, tiennent la rue, prennent les armes, inventent une poésie nouvelle. Déjà se constitue le front contre le travail forcé, déjà les gestes de refus modèlent la conscience future."

16/12/13

A estratégia dos gestores - conclusão

A quinta e última parte do artigo do colectivo Passa Palavra sobre a estratégia dos capitalistas europeus pode ser lida aqui.

«Em 2014 realizar-se-ão eleições europeias e a esquerda e a extrema-direita farão campanha pela dissolução da zona euro. No mesmo ano em que o primeiro pilar da união bancária europeia, o SSM (Mecanismo Único de Supervisão bancária), deverá estar em fase de conclusão, as bandeiras da esquerda andarão em torno das investidas nacionalistas. Bizarra situação em que a esquerda pensa estar a lutar por algo exequível, quando nem o jogo parlamentar decide o que quer que seja relativamente às orientações políticas fundamentais dos capitalistas.

Descobrir onde está a realidade e onde está a ficção não será muito difícil. Para o leitor interessado em questionar-se sobre estes assuntos, difícil é perceber porque o que se convenciona chamar de esquerda continua a não discutir os processos sociais de reorganização do capitalismo e prefere reduzir as manifestações do capitalismo a uma gigantesca máquina manipulatória de poder e de saque evocadora da finança feudal. O quadro programático dessa coisa chamada esquerda não é muito mais do que uma colecção de teorias da conspiração.


(...)

Como se teve oportunidade de verificar no decorrer da nossa análise dos documentos e testemunhos dos gestores, as crises económicas constituem formas de inovação e de reorganização institucional por parte da classe dominante. Enquanto as várias correntes da esquerda oficial pensam que os capitalistas andam à deriva, e enquanto a direita suspira por lideranças individuais à altura da situação, os capitalistas têm um plano estruturado, sistematizado e partilhado por todas as suas altas instâncias. Aliás, os murmúrios da direita portuguesa por personalidades e dirigentes fortes e carismáticas é um sinal da sua obsolescência política. O sucesso da reorganização institucional está cada vez mais sustentado em traços estruturais e organizacionais da classe dos gestores e é muito menos dependente de figuras especiais e marcantes. É isso que explica que os procedimentos institucionais levados a cabo pela tecnocracia europeia, no concreto e no imediato a união bancária, preparem a nova fase de recuperação económica e já estejam a ser aplicados. O que para a maioria da população não merece mais do que uma nota de rodapé no telejornal é, para a classe dominante, um avanço na sua coesão interna e na transnacionalização da sua actividade.

Enquanto por toda a Europa essa coisa que se chama de esquerda direcciona as suas fanfarras militantes para os governos e os casos de corrupção dos ministros, e enquanto essa esquerda pensa ver a crise económica como antecâmara para vias políticas nacionais, os capitalistas demonstram estar com vários passos de avanço. O facto de a realidade ser contrária aos nossos desejos não implica que se deva preferir a ilusão e a histeria à realidade.

Se a classe trabalhadora não souber contra quem e em que condições concretas pode lutar, todas as manifestações de luta não serão diferentes de investidas quixotescas contra moinhos de vento. Inventando monstros fictícios, os dirigentes da esquerda não são afinal mais do que Rocinantes a lançar a cabeça de activistas e de trabalhadores contra a parede».
Para quem estiver  interessado, a série A estratégia dos gestores é formada pelos seguintes artigos:

Nota de Natal ou o gangue do menino Jesus


            Um século atrás escrevia o amigo Carlos Marx:
            «A miséria religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro do indivíduo oprimido, o coração dum mundo sem coração, ela é também o espírito dum mundo sem espírito».
            Estou a citar mais ou menos de memória…
            Tudo isto estava, e está, certíssimo!
            Mas o que o Carlos não podia imaginar nem desvendar, era como este «suspiro» se ia tornar mercadoria e como a «expressão da miséria real» se ia tornar chorudo negócio de poder e poder de negócios. E aqui estamos hoje, com estes business de Deus.
            De realçar também que a obsessiva preocupação com o avanço do Islão cobre e serve de cobertura para o avanço dessas forças obscurantistas mais próximas da «nossa cultura », como por aí se ouve dizer… As quais, estão a crescer tanto ou quase tanto como o Islão integrista. Só que, por razões obviamente não obscuras, este crescimento não é assinalado pelos adeptos iluminados do «choque de civilizações».
            Um amigo brasileiro envia-me estas linhas de desabafo. São reflexões que me parecem levantar questões importantes, com desacordos e acordos que fazem pensar. 
            E que vêm mesmo a propósito em tempos de compras e de árvores de Natal. Num mundo mercantil sem coração, sem espírito !


                                                                              &&&


             O avanço das igrejas protestantes neo-pentecostais ao estilo texano é um termômetro do que está a acontecer em Brasil...
            Um dos fundadores do PT, o escritor e teólogo Frei Betto, um frade católico ligado à teologia da libertação (frade petista um tanto progressista), fez recentemente críticas a estas Igrejas ao falar a cerca de mil lideranças católicas no 9º Encontro Nacional Fé e Política, no final de semana, no campus da UCB (Universidade Católica de Brasília). Se mostrou preocupado com os “segmentos religiosos [evangélicos] que estão cada vez mais partidarizados”. A Frente Parlamentar Evangélica, à qual Frei Betto se referiu, é presidida pelo deputado João Campos (PSDB/GO [Partido da Social-Democracia Brasileira, direitista e neoliberal, estado de Goiás]). É composta por deputados (a maioria) e por senadores de diferentes partidos, no total de 79.
            Esta Frente Parlamentar Evangélica tem se destacado por ser contra, por exemplo, as propostas de igualdade aos homossexuais ou de atendimento especial a mulheres vítimas de estupro. Se pauta principalmente por uma leitura ultra-conservadora da Bíblia. Um de seus integrantes, pastor Marco Feliciano [um ex-travesti convertido, segundo a lenda popular], é presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. Estão agora a colocar projetos de lei que permitem às entidades religiosas questionar a constitucionalidade de leis e projetos de leis no Supremo Tribunal Federal. Se aprovada, esta proposta é o primeiro golpe de morte desferido ao estado laico brasileiro. Cabe aqui lembrar que o governo dos pelegos sindicais do PT fez alianças com estas igrejas que muito as fortaleceram durante os dois mandatos de Lulla e o primeiro de Dilma. O governo das tecnocracias de esquerda se tornou uma incubadora deste fascismo, que começa a quebrar a casca.
            Os fundamentalistas evangélicos já congregam cerca de 42 milhões de seguidores no país (22,2% da população, dados do censo de 2010 do IBGE), dos quais 14 milhões pertencem à Igreja Assembléia de Deus, a mais fanática e militante de todas, pertencente ao pastor Silas Malafaia. Estas igrejas já controlam um patrimônio estimado de 72 bilhões de reais (aproximadamente 37-40 bilhões de dolares), arrecadam cerca de 20 bilhões de reais ao ano, e são donas de faculdades particulares, canais de TV e radio, fundos de pensão, estúdios e gravadoras musicais, etc. Como possuem 79 parlamentares... já conseguem vetar leis de apoio a mulheres vitimas de abuso, a homossexuais, minorias religiosas. Não possuem nenhuma plataforma propositiva, sua atuação consiste apenas na "defesa da familia" e valores conservadores. Entretanto, sob a rubrica de "governo dos justos", já começam a formar projeto político e seu sonho de transformar o Brasil em um "país cristão".
            Enquanto isso, todos os dias chegam noticias de se agredirem terreiros de candomblé, quebrarem e queimarem templos indígenas. Ou discriminarem homossexuais; e noticias de pastores que acobertam maridos que espancam esposas, pastores envolvidos com drogas, lavagem de dinheiro, estupros, e coisas assim. Perseguem professores que ensinam Darwin nas escolas e organizam boicotes coletivos o leituras  de livros considerados "apologetas do satanismo e do homossexualismo" em escolas e faculdades.
           Estamos já preocupados com isto há anos, mas a coisa começa a assumir uma dimensão que nos assusta muito. Já presenciamos situações tensas dentro de trens. Não se pode mais falar abertamente de certos assuntos em lugares públicos sob o risco de brigas e gritarias com os radicais. Já aparecem analistas políticos advertindo sobre o risco de um fim do estado laico e um governo futuro formado por coalisões religiosas de direita. Para se ter uma idéia, até sheikhs de comunidades islâmicas se sentem preocupados com isso (porque os evangelicos detestam muçulmanos tambem)! Um deles relatava ter sido seguido nas ruas e ameaçado por sujeitos fanaticos.
        Para estas igrejas, toda religião (e cultura humana) que não seja judaica-cristã é satânica. Não faltam pregadores que incitam à intolerância, aos moldes dos Protocolos dos Sábios do Sião, ao insuflar seus fiéis a uma cruzada contra a imensa "conspiração satânica" que governa o mundo (que incluiria, para eles, desde vegetarianos, gays, homeopatas, acupunturistas, feministas, misticos, e tudo que distoa).
            Será que a crise da racionalidade moderna, do valor de troca, e consequentemente, das ideologias de modernização sobre ela fundada, proporciona uma volta à religião? Cabe perguntar isso, se a crise da metafísica da ciência-razão não leva de volta os individuos à metafísica-teológica, da qual a primeira herdou a estrutura. Cristianismo, com sua trindade como matriz da lógica dinheiro-mercadoria-mais-dinheiro. Islão como sistema de reprodução simples patriarcal (unitarismo que representa dinheiro abstrato e Estado mas com outro esquema de reprodução). Essa é uma boa suspeita.
            A espiritualidade e a religiosidade popular são fatos sociais e antropologicos naturais às sociedades humanas, e que nunca irão desaparecer - apenas mudar de formas. Podem ruir as religiões organizadas e hierarquicas, mas os sujeitos vão criar seus simbolos e suas inter-relações entre si e com a natureza de outras maneiras.
            A religiosidade popular inumeras vezes pode também ser campo de lutas, e uma boa heresiazinha, teologias da libertação ou comunistaristas podem cumprir um papel de mobilização social útil, ajudar a veicular novas relações. Como movimentos tolstoianos, ou o islamismo anti-institucional de um ali shariati (eliminado pelos Ayatolás; no Brasil há mesmo rappers muçulmanos negros que são esquerdistas), ou o uso das religiões africanas e indigenas como elementos de identidade de lutas no Brasil... enfim, tudo isto é uma grande doidice, mas também terreno de conflitos, a depender de formas sociais, apropriações e lutas sociais.
            Mas neste turbilhão de coisas, fica dificil ter uma opinião sobre isto tudo. Só se sabe que a coisa anda de mal a pior por aqui, e estas igrejas pregam o pior darwinismo social. São máquinas econômicas de arrecadar dinheiro, de des-solidarização, de repatriarcalização. Conseguem hoje dar mais dores de cabeça do que a velha Igreja Catolica Apostólica moribunda. Os padres católicos parecem uns liberais perto destes pastores furiosos que pregam aos gritos como verdadeiros fuhrers em suas igrejas, e levam os fieis a urrar como torcidas de futebol. Bem o que Adorno analisava sobre os discursos fascistas do pastor Martin Luther Thomas. Aliás, foi de lá, do Texas, que estes movimentos horriveis e intolerantes de exploração da fé popular sairam para a América Latina e Africa Ocidental.

Ricardo Flores                                                                                           



13/12/13

Para uma história dos que não têm tido direito à mesma

Para pensar a história da sexualidade em Portugal temos de começar pela história do feminismo. Talvez o momento mais emblemático desta luta seja a “queima de soutiens” no Parque Eduardo VII (Lisboa) em Janeiro de 1975. Uma queima que nunca existiu, garante quem esteve na primeira manifestação feminista do país e que foi injuriada por três mil machistas histéricos em contra-manifestação. Existiu, sim, a “queima” de símbolos da opressão feminina, que ao longo da história aprisionaram mulheres na sua condição de trabalhadoras sem salário – panos do pó, esfregonas, tachos e cama – e de outras instituições tão vigorosas que se confundem com a própria ideia de género feminino – a mãe e a esposa que a tornam mulher. Mas a desconstrução de género não se faz sem liberdade sexual. Destas lutas ficaram de fora as lésbicas e as prostitutas. A emancipação de género, laboral e reprodutiva, encarava mal o desejo como luta das lésbicas e o sexo como trabalho das prostitutas. Seria possível construir um movimento que se esquivava dos estigmas de “putas” e “fufas”, que pendiam sobre as feministas, em vez de os enfrentar?

Continuar a ler Há uma história queer em Portugal?, publicado no jornal Mapa.

09/12/13

O RBI continua a incomodar à Esquerda

Adriano Campos e Ricardo Moreira escreveram uma das melhores críticas ao Rendimento Básico Incondicional (RBI), que, no entanto, não está isenta de incoerências. Uma delas é de tal modo óbvia, que leva-me a colocar em causa a abertura com que aparentemente pretendem abordar a questão. Todas as propostas de financiamento do RBI vão buscar os fundos necessários, antes de mais, a várias prestações sociais que hoje possuem papel semelhante ao RBI em alguns aspectos (como o RSI), mas estão associadas a grupos específicos da população. No entanto, como o RBI pretende ser universal e possuir um nível suficientemente alto para permitir viver com dignidade, tais recursos não são suficientes. O remanescente só poderá vir através de novos impostos ou o aumento de alguns já existentes. No texto em questão, são mencionadas duas possibilidades: aumento do IVA ou do IRS. A primeira hipótese é claramente mais prejudicial para quem tem menores rendimentos, pois a proporção do rendimento que é alocada ao consumo (e portanto tributável via IVA) é tanto maior quanto menor for o rendimento disponível (ie. os mais ricos poupam e investem mais, consumindo menos proporcionalmente ao seu rendimento). É na abordagem que fazem da segunda hipótese que Adriano Campos e Ricardo Moreira demonstram que, talvez, não estejam a ser completamente sérios na sua crítica. O que escrevem

"Retira-se, portanto, ao salário o que se quer acrescentar em alocação universal. A pretensão igualitária do RBI esbarra no seu modelo politicamente regressivo: atacar os salários dos enfermeiros ou dos professores para submetê-los à dependência do Estado, repartindo esse valor com os mais ricos é uma forma de dar a todos o que não é de todos."

não faz qualquer sentido. É óbvio que um aumento do IRS, mesmo que fosse igual em percentagem para todo os níveis de rendimento (e o mais expectável do ponto de vista político seria que esse aumento crescesse com o rendimento), redistribuído posteriormente como RBI, origina uma transferência de rendimento dos mais ricos para os mais pobres. É absurdo, para dizer o mínimo, dar a entender que os mais ricos ganham rendimento (vindo dos "enfermeiros ou dos professores") com a instauração dum RBI (apesar de também o receberem). É irrelevante se a fronteira entre os que perdem mais via IRS do que ganham via RBI está mais acima (se o RBI for mais reduzido) ou mais abaixo (se o RBI for mais elevado). O que importa é que via IRS e RBI passa a haver uma transferência directa dos que auferem maiores salários, para os que auferem menores salários, ou mesmo nenhum. Ou seja, o RBI contribui para uma equalização dos rendimentos, e em particular do salário efectivo. Que haja à Esquerda quem efectivamente conteste a diminuição da desigualdade salarial diz-nos muito sobre o nível de desorientação que grassa em algumas mentes. E aqueles que apenas auferem rendimentos do Capital?!... Taxem-nos! Expropriem-nos! Tenho a certeza que sendo isso feito, perderiam muito mais rendimento do que ganhariam por passarem a receber RBI. Em que medida é que a instauração dum RBI impede uma maior taxação dos rendimentos do Capital, ou mesmo a sua expropriação?! As necessidades de financiamento do RBI são, aliás, uma "boa desculpa" política e social para fazer isso mesmo.

06/12/13

África do Sul, mais um exemplo, sem excepções


Infelizmente, a África do Sul é mais um exemplo de como (auto-intituladas) vanguardas (pretensamente) revolucionárias, desejosas de colocar as mãos no aparelho de comando e controlo do Estado, invariavelmente acabam por o utilizar para os mesmos fins repressivos que antes condenavam.

"(…)the tragic outcome of the ANC’s liberation struggle was encoded into the very DNA of the party’s vanguardist strategy. First of all, the ANC decided to take over existing institutions — political and economic institutions that were based on systematic exclusion and massive inequality — and thereby ended up unwittingly reproducing these same oppressive structures with a new elite formation. Secondly, (…) the ANC leadership deliberately embraced a particular ideological vision of how to “transform” the country: a vision he refers to as the “political philosophy of rights”, in other words: liberalism. South Africa’s new constitution was the clearest manifestation of this: everything was put to work to secure the rights of individuals to vote and be represented, to own property, and to not be discriminated against in any way. Little attention, however, was given to questions of political participation, genuine popular sovereignty, and the satisfaction of basic human needs.

This state-centered and rights-based approach never truly broke with the legacy of apartheid; it merely extended the franchise while keeping the structural logic of separation between people and power, between property-owners and wage-earners, intact. Partly because of the reigning neoliberal ideology of the time, and partly out of fear of reproducing the Zimbabwean experience where Mugabe’s violent land expropriations had led to a white exodus and economic collapse, Mandela and the ANC opted for a gradualist approach that actually ended up turning the ANC into an agent of apartheid itself. Legally, the property rights of white landowners took priority over the human needs of local shackdwellers. Workers’ rights were increasingly hollowed out as the right to unionize gave way to the “right” to be “represented” by a corrupt and ANC co-opted union leadership. The state-oriented approach and the political philosophy of rights thus locked poor South Africans into a logic of representation and top-down decision-making whereby human needs, social autonomy and political participation came to be subordinated to the formation of a new political and corporate elite of former ANC revolutionaries."

03/12/13

Este sábado Unipop na Fábrica Braço de Prata: Seminário Pensamento Crítico Contemporâneo e Violência

Tano

Inscrição: 5 euros (só a frequência no seminário) ou 10 euros (inclui um exemplar de um dos três primeiros números da revista Imprópria). Inscrição através de transferência bancária para o NIB 0035.0127.00055573730.49, seguida de envio de comprovativo para o e-mail cursopcc@gmail.com). Lugares limitados.

Almoço: a Fábrica terá disponível almoço. Quem estiver interessado em almoçar deverá confirmar no e-mail de inscrição do seminário.

O tema da violência política regressou ao centro do debate, em particular na sequência de um conjunto de confrontos em diversas manifestações nos últimos três anos. A eficácia, mas também a legitimidade, do recurso à violência na luta política, e em especial no que se refere ao questionamento teórico e prático do monopólio da violência por parte do Estado, constitui uma clara linha de divisão numa discussão que está longe de estar fechada. Tendo como principal objectivo lançar uma discussão abrangente sobre o tema da violência, a sua relação com a acção política, a sua dimensão histórica e social, bem como a forma como atravessa os campos da literatura e do cinema, a revista Imprópria publicou no seu n.º 3 um dossiê sobre o tema. Neste seminário, a Unipop e a revista Imprópriapretendem prosseguir este debate, convocando o contributo teórico de um conjunto de autores que, de uma forma ou de outra, tem tratado o tema na sua obra.

PROGRAMA
Mesa 1: 10h-13h
Elias e o Processo Civilizacional – Fernando Ampudia de Haro (CIESI-IUL e Universidade Europeia)
O Estado de Excepção, de Carl Schmitt a Giorgio Agamben – António Fernando Cascais (CECL FCSH-UNL)
Poder e Guerra em Amílcar Cabral – José Neves (IHC FCSH-UNL, Unipop)
Comentador: José Luís Garcia (ICS-UL)

Mesa 2: 14h30-17h30
Fanon, Guerrilha e Libertação Nacional – Manuela Ribeiro Sanches (CEC FL-UL)
Violência, Revolução e Contra-revolução: a Década de 68 em Itália e na Alemanha – José Nuno Matos (ICS-UL, Unipop))
Zizek e a Violência – André Barata (UBI)
Comentador: Nuno Ramos de Almeida (Jornalista)

Mesa 3: 18h-19h
Debate final, com todos os participantes

01/12/13

A democracia dos generais e da policia, o exemplo do Egipto



Chega-nos esta mensagem do Cairo. 

We don't need permission to protest

to you at whose side we struggle,

November 26 2013, we saw the first implementation of a new Egyptian law effectively banning any and all protest not approved and regulated by the Ministry of Interior. This is the same Interior Ministry whose soldiers have killed thousands of protesters, maimed tens of thousands and tortured unknown others in recent years. This security apparatus is acting with renewed arrogance since the July coup that returned the Egyptian Army to a position of direct authority. Around noon on November 26, riot police attacked a protest commemorating the murder of Gaber "Gika" Salah one year ago. Announcing that the protest was illegal, police fired water cannons and then baton-charged demonstrators, arresting several. Hours later, the ¨No Military Trials for Civilians¨ campaign organized a protest against the new anti-protest law as well as the inclusion of military trials for civilians in the constitution currently being drafted. This time, the police beat and arrested dozens, among them some of Egypt's most renowned activists, the same people who fought the injustice and oppression of Mubarak, the SCAF, the Muslim Brotherhood, and now Abdel Fattah al Sisi and the puppet civilian government in place since the coup.

The public outrage that followed the release of footage of the police beating and sexually assaulting some protesters compelled authorities to release all female protesters as well as lawyers, journalists and a handful of prominent male detainees, while keeping 24 male protesters in detention. Protesters demonstrating against the same illegitimate law elsewhere across the country likewise remain in custody. The events of the past week make it clear that the so-called justice system in Egypt, and the anti-protest law in particular seek little more than the suppression of any form of political activity or protest. The demonization of the Muslim Brotherhood as terrorists provides the cover to crack down on dissent of any kind, including the continued calls for the revolution's demands.

On November 27, six of the released female protesters informed the public prosecutor that they were the ones to call for the protest, which according to the new law would force the prosecutor to re-arrest them. The prosecutor ignored their claims, while extending the detention of the 24 male protesters, who have undergone continuous torture, by another 15 days. In the court, the detainees disrupted proceedings by chanting "down with military rule," and have started a hunger strike.

On November 28, the repression continued as the police surrounded a student protest in support of the Muslim Brotherhood in Cairo University. After preventing anyone from leaving the premises the police forces fired tear gas, buck shot and live ammunition at the demonstrators and other students inside. The body of Mohamed Reda reached the morgue later that night, with gunshot wounds. His friends claim he was neither politically active nor participating in the protest. The court in turn charged other students arrested in the protest with his murder. Hours later, the police stormed Alaa Abdel Fattah's home without a search warrant, beat him and his wife and kidnapped him; all this for charges of organizing the protest on the 26th. The following morning the prosecution questioned him at the Cairo Security Directorate and extended his detention to four days pending investigation.

The protest law, draconian and kafkaesque in its very essence, is not the first time that laws effectively criminalizing protest have been passed since 2011. The army and the Muslim Brotherhood both attempted and failed to pass and enforce such laws. This new one comes under the trappings of the rule of law, supposedly free of political weight, but its intention is clear: to crush dissent and further empower the police to use violence and lethal force. Egyptian lawmakers even have the gall to use oppression abroad to justify a crackdown at home.

This is not a call to reform the protest law. This is a rejection of all such laws and the system behind the law- a system that is merely a new face to the one we confronted on January 25 2011. Following the military's coup on July 3, the army's head of command appointed a government that is made up of liberals, retired police and military generals as well as a few individuals considered participants in the January 25 revolution. In their attempt to outlaw any opposition on the street, the role of the liberals and deemed "revolutionaries" is to whitewash the violence of the security regime. These figures are the handmaidens of the attempt to re-create a pre-January 25 Egypt where the regime's murder and torture becomes the norm. It is their role to prevent outrage on the street. The justification for the return to this pre-January 25 state of normalcy is the fighting of "terror" and the need to impose "stability" and "order".

We will not protest at the whim and convenience of a counterrevolutionary regime and its armed enforcers. After the generals' latest attempt to co-opt the revolution by kidnapping the June 30 protests for their own desire for power, the January 25 Revolution has returned to the streets.

We will oppose the system everywhere we can. Stand by our side. This system must fall.

Comrades from Cairo
November 2013

30/11/13

L’honneur des gueules noires



Caros amigos,

Se tiverem 52 minutos, e souberem francês, convido-vos a ver este pequeno documentário realizado o ano passado, sobre uma belíssima história judiciária :


O filme é também uma homenagem a Tiennot Grumbach, que faleceu no verão passado. Mas acima de tudo, trata-se de um hino à resistência e à luta pelos valores da esquerda. Vê-lo faz um bem incrível, nesta época rendida aos dogmas idiotas do capitalismo de sangue puro e selvagem, que no fundo sempre sonhou com a mesma panaceia : trabalho caído do céu, gratuito, sem trabalhadores que dêem nas vistas.

Abraços fraternos

29/11/13

Vivemos num "Estado de direito", mas uns têm mais direito a levar porrada do que outros

Muito fica dito quando um deputado constrói a sua defesa e critica a acção da polícia partindo da sua condição de deputado, como se esse “estatuto” agravasse o significado duma agressão policial ou, por outro lado, como se a agressão a um cidadão "comum" fosse mais legítima, aceitável ou compreensível. Muitas vezes, as críticas aos deputados ou às instituições políticas “tradicionais”, como os partidos ou sindicatos, podem ser confundidas (até porque o são efectivamente) com má vontade, desonestidade, facciosismo ou com uma atitude persecutória, visando mais uma condição (a de deputado, político, etc.) do que uma atitude ou acção concreta. Tornam-se, então, numa espécie de moralismo superficial, mais do que num argumento político. Não é este o caso (e tento que nunca seja esse o caso quando escrevo sobre tais instituições ou figuras), não só porque não gosto de fazer julgamentos ou proferir sentenças, mas, acima de tudo, porque as palavras raramente são tão inequívocas como neste exemplo. É pelo seu significado político particular que merecem que se olhe para elas e se teçam dois ou três comentários, e não, obviamente, para entrar na moda corrente de malhar em deputados, partidos e sindicatos apenas por o serem. Até porque se é verdade que "nem todos são iguais" estas palavras também demonstram que há certas atitudes e lógicas – no mínimo pouco democráticas – que são partilhadas por membros de todas as bancadas parlamentares (e mesmo que possam ser mais comuns numas do que noutras, não se tornam menos assinaláveis por isso, antes pelo contrário).

As declarações em questão podem ser ouvidas neste vídeo e foram feitas num piquete de greve dos CTT pelo deputado do Bloco de Esquerda, Pedro Filipe Soares, depois da polícia ter sido "chamada a intervir". Citando directamente o deputado (pode ser ouvido a partir do minuto 3:50), que começa por afirmar estar a falar em nome de todos, “em primeiro lugar, houve aqui um desrespeito por deputados da assembleia da república. Foram levados à frente duma polícia de choque, algo que não é aceitável numa sociedade de direito democrático e num estado de direito.” Em segundo lugar, vem então a questão da brutalidade aplicada à multidão “anónima” feita dos “homens e mulheres que estão a defender os seus postos de trabalho”.

Os tais comentários. Por muito paradoxal que pareça, estas palavras expõem alguns dos aspectos que levam algumas figuras com poder, com lugares de responsabilidade ou “somente” uma posição privilegiada, a ser tão tolerantes para com as autoridades e as leis e tão hesitantes na altura de agir de acordo com o que entendem por justiça. Se consideram que um dado estatuto lhes dá mais autoridade – seja para criticar as atitudes duma qualquer autoridade, seja simplesmente para estarem acima das restantes pessoas – percebe-se por que é que noutras circunstâncias não estão interessadas em questionar a autoridade em si mesma. Suponho que sintam que ao fazê-lo estarão, eventualmente, a questionar-se a eles próprios e a colocar a sua posição em xeque. É claro que fazê-lo não teria necessariamente qualquer consequência directa e não implicaria sequer que deixassem de ser deputados. É óbvio. Mas é precisamente esta evidência que torna ainda mais surpreendente essa incapacidade de questionar a autoridade e, acima de tudo, de questionarem a sua própria condição.

Outra forma de olhar para essa incapacidade, e para a sua ligação com a tolerância e atitude “moderada” para com as atitudes da polícia ou das autoridades – tão característica dos nossos “radicais” institucionais” –, está na importância que atribuem ao papel que heroicamente assumem desempenhar (deixemos, para outra altura, o facto de os próprios ambicionarem alcançar um lugar que não dispensa o monopólio da violência). Neste caso, como já ouvi, podem dizer em sua defesa: "nós não gostamos particularmente da autoridade, nem pensamos ser superiores a ninguém, mas esta posição é uma arma que temos (uma das poucas) e, por isso mesmo, temos não apenas que usá-la como defendê-la". A lógica viciada deste raciocínio é clara. Mas talvez mais importante é aquilo que está implícito nesse papel auto-atribuído e que fica por problematizar: a suposta inevitabilidade ou necessidade de liderar as massas e conduzir as lutas, tornando consequentes os anseios, o desespero, a revolta daqueles que dizem representar (o que é dizer, agindo como tradutores institucionais, usando uma linguagem que lhes é própria, enquanto intermediários entre a “rua” e o poder).

Tudo isto me lembra, infelizmente, como muita gente (interlocutores potencialmente interessantes para uma luta comum, entenda-se) insiste em permanecer alheada daquilo que os tempos que vivemos nos gritam constantemente: a necessidade de repensar radicalmente o que existe e a urgência de criar algo novo que o supere – sempre na direcção de uma sociedade mais igualitária. Em vez disso, continuam a refugiar-se num abrigo que perdeu o telhado e as paredes há muito tempo, pelo menos para a maioria das pessoas: aquilo a que chamam, e julgam ainda existir, uma "sociedade de direito democrático" ou um "estado de direito" Neste sentido, aliás, o que descrevi parece-me ainda mais problemático pelo contexto em que acontece. Os CTT representam o que de melhor, em termos de igualdade, pode representar um serviço público. A capacidade de entregar uma carta, uma encomenda ou seja o que for em qualquer parte do território nacional, mesmo no local mais remoto, e por um preço que não muda consoante o local para onde vai ou de onde parte, é algo apenas possível por um serviço público assente numa lógica antagónica àquela que se hegemoniza e que leva à sua destruição. Como tal, a luta contra a privatização dos CTT não é somente a defesa dos CTT, é muito mais do que isso. E, precisamente por essa razão, esta luta em particular podia servir para nos ajudar a pensar para além do que existe, mais do que se limitar a defender a conservação eterna duma entidade ou o regresso a um estado de coisas menos mau.

24/11/13

Há 20 anos - 24 de novembro de 1993

Confesso que não me lembrava desta data, mas este artigo de Mariana Avelãs (via Joana Lopes) lembrou-me.

Ao contrário de muita gente, acho que o principio do fim do cavaquismo não foi com a ponte 25 de Abril, foi mesmo na manifestação anti-propinas de 24 de novembro de 1993.

Há um facto curioso acerca dessa manifestação: é que até estava menos gente que o costume (um amigo meu até comentou "Isto é melhor é deixar-se de fazer manifestações"). Mas, de repente, a policia de choque carrega sobre os manifestantes, descendo a escadaria e os jardins da Assembleia da República - foi um erro fatal: por um lado, o facto de os estudantes terem sido concentrados nos passeios da Praça de S. Bento, só por si, fazia-nos parecer mais; e, mais importante, logo no próprio dia 24, os estudantes das faculdades de Lisboa, ao saberem das noticias da carga policial, dirigiram-se espontaneamente à Praça de S. Bento (ao melhor, às ruelas dos arredores - a praça estava ocupada pelo Corpo de Intervenção) e ao ISEG, que fica ali ao lado.

Quando saí da Praça e fui jantar à cantina do ISEG, aquilo estava a abarrotar de gente, sobretudo alunos da Faculdade de Letras (inclusivamente uma pessoa que eu não me lembrava de ter alguma vez ter visto na vida mas que me perguntou "És o Miguel, não és? A gente brincava juntos quando vivias em Paderne"; eu vivi em Paderne até aos 4 anos de idade...) - quase de certeza que, ao fim do dia e à noite esteve lá muito mais gente do que na manifestação propriamente dita.

Conclusão: uma manifestação que até nem tinha sido das melhores, graças à carga policial, tornou-se o ponto de viragem da luta anti-propinas, com manifestações quase diárias nas semanas seguintes.

Conclusão da conclusão: muitas vezes, a "repressão policial" não é apenas "terrorismo oficial"... é burrice!

Efeitos secundários: com a demissão de Couto dos Santos, uma semana depois, e a sua substituição por uma Secretária de Estado, isto foi também o principio do "ManuelaFereirraLeitismo"

O que escrevi acima baseia-se num post meu de 2005; algumas observações adicionais:

- A minha geração ainda foi a única a ganhar alguma coisa com a luta anti-propinas: com a substituição de Couto dos Santos por Ferreira Leite, as sanções para os boicotadores foram endurecidas - em vez de uma simples multa, a sanção passou a ser a não atribuição a licenciatura a quem não pagasse as propinas; mas isso abriu um curioso vazio legal: devido ao principio da não-retroatividade das leis, essa sanção não se poderia aplicar às propinas que já estavam em dívida; e como a lei anterior foi revogada, também não podíamos ser multados. Ou seja, os estudantes que boicotaram as propinas no ano lectivo de 1992-93 safaram-se sem as pagar (tivemos que pagar as dos anos seguintes, mas essas não); inclusivamente, nas RGAs era frequente aparecerem alunos que em 92-93 não tinham feito boicote a reclamarem que a Associação de Estudantes não estava a fazer nada para eles recuperarem o dinheiro das propinas (e creio que realmente nunca mais o viram...).

- A referência ao "ManuelaFerreiraLeitismo" é completamente datada (quem era mesmo essa mulher?)

23/11/13

Mais um referendo suiço para limitar os vencimentos dos gestores

Amanhã, dia 24, vai a votos na Suiça uma proposta determinando que os administradores de uma empresa não possam ganhar mensalmente mais do que o trabalhador mais mal pago da empresa ganha por ano.

Tudo indica que a proposta irá ser rejeitada, mas, de qualquer forma, uma proposta destas (reduzir o leque salarial para 12:1, num país em que é comum o 100:1) conseguir o apoio de quase 40% dos eleitores (como indicam as sondagens) já é alguma coisa.

Resultado final: a proposta foi derrotada, por 65,3% contra 34,7% .

22/11/13

Da polícia e da política

Os acontecimentos da manifestação das polícias ocorrida hoje não teriam nada de muito surpreendente não fosse o que nos dizem (ou melhor, recordam) acerca da esquerda (institucional e não-institucional) que temos em Portugal. Historicamente ignorante e politicamente ingénua (perdoem-me a arrogância), continua a agir como se algo como um simples gesto de desobediência civil fosse já, em si, a expressão de um fenómeno altamente disruptivo, o último passo antes de se resvalar para o descontrolo social, para o caos absoluto ou para a temida revolução (sim, por vezes a revolução parece causar mais pesadelos à esquerda do que à direita, a julgar pela ânsia com que insiste em atirá-la para o horizonte mais longínquo possível). Quem é polícia parece revelar maior lucidez a este respeito, tal como demonstra não só o acto de invasão da escadaria mas também a opção de não irem mais longe – o mais curioso, nesta última opção, é que a polícia (quer a manifestante, quer a de serviço) agiu contrariamente a um dos dogmas basilares da psicologia de massas de qualquer manual policial: aquele que sublinha constantemente a imprevisibilidade da multidão, em particular o facto de esta ser tomada por uma irracionalidade colectiva com enorme facilidade, alcançando rapidamente um ponto de não retorno, como uma avalanche que avança e inevitavelmente cresce até ser parada por uma força maior.

E, por falar em imprevisibilidade, estes acontecimentos lembram-nos ainda outra coisa quando olhados em comparação com a esquerda e os protestos que esta tão gentilmente nos tem proporcionado: até a polícia parece perceber que a imprevisibilidade é indissociável da política. O esforço que os organizadores das manifestações ditas inorgânicas (como lhes chamam aí pelos jornais) dedicam a controlar cada um dos gestos, passos e gritos dos manifestantes, diz muito sobre o seu entendimento da política e da sociedade (e também, porque não, sobre as pretensões de muitos dos seus membros). A tentativa de controlar totalmente um sujeito e de lhe impor uma ordem (seja esse sujeito colectivo ou individual) é a negação total da política; é, paradoxalmente, a substituição da política pela polícia. É, por isso, curioso constatar que a maioria das manifestações à esquerda tem tido “polícias” (tanto a organizá-las como a participar nelas) muito mais eficazes do que os próprios polícias profissionais.

Nenhuma destas aparentes contradições na acção da polícia (contradições que ajudam a expor o carácter anedótico das “nossas” manifestações) causaria qualquer perplexidade se não fosse uma espécie de tabu, para muita gente, aceitar que a polícia é a primeira a recorrer a meios de acção ilegais quando isso lhe é conveniente. E fá-lo sistematicamente, isto é, por lógicas derivadas do seu próprio funcionamento, o que é dizer que o recurso à ilegalidade não é algo que só acontece excepcionalmente (por exemplo, na conjuntura de “crise” em que vivemos) mas mesmo em tempos de suposta “estabilidade social”. Se é verdade que esse recurso à ilegalidade é em momentos como este mais evidente (e evidente para mais gente), é certo que ele acontece sempre.

A ausência de uma reflexão acerca do monopólio da violência pelo Estado e do funcionamento do seu aparelho repressivo permite que, entre outras coisas, se continue a criticar a violência ou a defender o pacifismo nas manifestações ao mesmo tempo que se aceita – mais ou menos plenamente – o recurso à violência por parte das forças da autoridade (ignora, desde logo, que o simples acompanhamento duma manifestação pela polícia já é em si uma forma de violência, pela demonstração de força que representa e sem a qual esta seria obsoleta).

O que aconteceu hoje sublinha, ainda, outra coisa igualmente tabu acerca da polícia (talvez ainda mais ignorada do que o resto), expressa geralmente no argumento de “que eles são pessoas como nós”. Se a frase em si é um truísmo, pois quem veste a farda da polícia é uma pessoa, a verdade é que acaba por esconder outros elementos fundamentais (e talvez o faça com tanta eficácia precisamente por ser algo aparentemente óbvio). Antes de mais, e ainda em jeito de anedota, neste caso particular coloca-nos a seguinte questão: se eles são como “nós” por que é que “nós” temos, e insistimos em ter, tanta dificuldade a fazer o que eles fizeram, i.e., desobedecer? Num registo mais sério, se é verdade que quem veste a farda de polícia é uma pessoa como “nós”, também temos que saber ver as particularidades de se ser polícia e aceitar que um polícia não é uma pessoa como outra qualquer. Tal como o controlo absoluto (ou a sua tentativa) é a negação da política e a sua substituição pela polícia, o polícia é, enquanto sujeito, a negação de toda a subjectividade política. Ser polícia é uma condição profissional derivada dum treino específico e altamente rigoroso que tem a obediência como seu ponto fundamental. Se a inculcação do sentido de obediência falhar na formação de um polícia, esta falha completamente e torna-se ineficaz enquanto instituição. Mais uma vez, a situação de hoje demonstra-o com clareza, ao revelar o peso dessa “condição profissional” sobre o sujeito, ou por outras palavras, demonstrando o peso que a farda tem (na medida em que, quando um polícia "veste a farda" e está a exercer a sua actividade profissional, é capaz de bater ou mesmo matar alguém que esteja a fazer algo que compreende ou até corresponde àquilo que ele próprio gostaria ou quereria estar a fazer; basta ser ordenado a fazê-lo). Um dos maiores paradoxos desta democracia (e um daqueles que a expõe como farsa) é precisamente o de a sua ordem ou regularidade funcional depender duma força construída com base no princípio da obediência, ou seja, algo que é a negação da própria democracia, da individualidade e do espírito crítico.

Finalmente - mas isto já não devia ser novidade para ninguém -, as manifestações e o recurso à desobediência por parte dos manifestantes não indiciam per se, como é óbvio, nada de revolucionário num sentido emancipatório e igualitário. Que uma entidade repressiva e autoritária - uma "força da ordem" - tenha sido aquela que mais rapidamente recorreu à desobediência numa manifestação, devia servir precisamente para nos chamar a atenção para a elevada probabilidade de qualquer transformação social poder resvalar para um pesadelo ainda maior do que aquele que vivemos. E digo isto não só pelo sentido de alerta que devia surgir em quem deseja e luta por um mundo melhor, mas, especialmente, porque esse pesadelo parece um cenário mais provável do que qualquer outro.