29/11/13

Vivemos num "Estado de direito", mas uns têm mais direito a levar porrada do que outros

Muito fica dito quando um deputado constrói a sua defesa e critica a acção da polícia partindo da sua condição de deputado, como se esse “estatuto” agravasse o significado duma agressão policial ou, por outro lado, como se a agressão a um cidadão "comum" fosse mais legítima, aceitável ou compreensível. Muitas vezes, as críticas aos deputados ou às instituições políticas “tradicionais”, como os partidos ou sindicatos, podem ser confundidas (até porque o são efectivamente) com má vontade, desonestidade, facciosismo ou com uma atitude persecutória, visando mais uma condição (a de deputado, político, etc.) do que uma atitude ou acção concreta. Tornam-se, então, numa espécie de moralismo superficial, mais do que num argumento político. Não é este o caso (e tento que nunca seja esse o caso quando escrevo sobre tais instituições ou figuras), não só porque não gosto de fazer julgamentos ou proferir sentenças, mas, acima de tudo, porque as palavras raramente são tão inequívocas como neste exemplo. É pelo seu significado político particular que merecem que se olhe para elas e se teçam dois ou três comentários, e não, obviamente, para entrar na moda corrente de malhar em deputados, partidos e sindicatos apenas por o serem. Até porque se é verdade que "nem todos são iguais" estas palavras também demonstram que há certas atitudes e lógicas – no mínimo pouco democráticas – que são partilhadas por membros de todas as bancadas parlamentares (e mesmo que possam ser mais comuns numas do que noutras, não se tornam menos assinaláveis por isso, antes pelo contrário).

As declarações em questão podem ser ouvidas neste vídeo e foram feitas num piquete de greve dos CTT pelo deputado do Bloco de Esquerda, Pedro Filipe Soares, depois da polícia ter sido "chamada a intervir". Citando directamente o deputado (pode ser ouvido a partir do minuto 3:50), que começa por afirmar estar a falar em nome de todos, “em primeiro lugar, houve aqui um desrespeito por deputados da assembleia da república. Foram levados à frente duma polícia de choque, algo que não é aceitável numa sociedade de direito democrático e num estado de direito.” Em segundo lugar, vem então a questão da brutalidade aplicada à multidão “anónima” feita dos “homens e mulheres que estão a defender os seus postos de trabalho”.

Os tais comentários. Por muito paradoxal que pareça, estas palavras expõem alguns dos aspectos que levam algumas figuras com poder, com lugares de responsabilidade ou “somente” uma posição privilegiada, a ser tão tolerantes para com as autoridades e as leis e tão hesitantes na altura de agir de acordo com o que entendem por justiça. Se consideram que um dado estatuto lhes dá mais autoridade – seja para criticar as atitudes duma qualquer autoridade, seja simplesmente para estarem acima das restantes pessoas – percebe-se por que é que noutras circunstâncias não estão interessadas em questionar a autoridade em si mesma. Suponho que sintam que ao fazê-lo estarão, eventualmente, a questionar-se a eles próprios e a colocar a sua posição em xeque. É claro que fazê-lo não teria necessariamente qualquer consequência directa e não implicaria sequer que deixassem de ser deputados. É óbvio. Mas é precisamente esta evidência que torna ainda mais surpreendente essa incapacidade de questionar a autoridade e, acima de tudo, de questionarem a sua própria condição.

Outra forma de olhar para essa incapacidade, e para a sua ligação com a tolerância e atitude “moderada” para com as atitudes da polícia ou das autoridades – tão característica dos nossos “radicais” institucionais” –, está na importância que atribuem ao papel que heroicamente assumem desempenhar (deixemos, para outra altura, o facto de os próprios ambicionarem alcançar um lugar que não dispensa o monopólio da violência). Neste caso, como já ouvi, podem dizer em sua defesa: "nós não gostamos particularmente da autoridade, nem pensamos ser superiores a ninguém, mas esta posição é uma arma que temos (uma das poucas) e, por isso mesmo, temos não apenas que usá-la como defendê-la". A lógica viciada deste raciocínio é clara. Mas talvez mais importante é aquilo que está implícito nesse papel auto-atribuído e que fica por problematizar: a suposta inevitabilidade ou necessidade de liderar as massas e conduzir as lutas, tornando consequentes os anseios, o desespero, a revolta daqueles que dizem representar (o que é dizer, agindo como tradutores institucionais, usando uma linguagem que lhes é própria, enquanto intermediários entre a “rua” e o poder).

Tudo isto me lembra, infelizmente, como muita gente (interlocutores potencialmente interessantes para uma luta comum, entenda-se) insiste em permanecer alheada daquilo que os tempos que vivemos nos gritam constantemente: a necessidade de repensar radicalmente o que existe e a urgência de criar algo novo que o supere – sempre na direcção de uma sociedade mais igualitária. Em vez disso, continuam a refugiar-se num abrigo que perdeu o telhado e as paredes há muito tempo, pelo menos para a maioria das pessoas: aquilo a que chamam, e julgam ainda existir, uma "sociedade de direito democrático" ou um "estado de direito" Neste sentido, aliás, o que descrevi parece-me ainda mais problemático pelo contexto em que acontece. Os CTT representam o que de melhor, em termos de igualdade, pode representar um serviço público. A capacidade de entregar uma carta, uma encomenda ou seja o que for em qualquer parte do território nacional, mesmo no local mais remoto, e por um preço que não muda consoante o local para onde vai ou de onde parte, é algo apenas possível por um serviço público assente numa lógica antagónica àquela que se hegemoniza e que leva à sua destruição. Como tal, a luta contra a privatização dos CTT não é somente a defesa dos CTT, é muito mais do que isso. E, precisamente por essa razão, esta luta em particular podia servir para nos ajudar a pensar para além do que existe, mais do que se limitar a defender a conservação eterna duma entidade ou o regresso a um estado de coisas menos mau.

3 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Excelente, Diogo.

Abraço

msp

Anónimo disse...

Com um contexto de fundo diferente e outra relação entre os papéis em jogo, há um exemplo recente que evidenciou que a própria esquerda anti-sistémica e libertária não está imune à dualidade de ficar presa à sua própria autoridade embrulhando-se numa esfera identitária em vez de numa consequente análise inclusiva e acção igualitária: as reacções massivas da esquerda não-sistémica ao assassinato de Fyssas. Movimentos de base de luta pelos direitos emigrantes tentaram precisamente levantar a sua voz e gerar o debate sobre essa dualidade no seio das correntes libertárias gregas. (Segundo dados oficiais, em 2012, mais de 120 emigrantes foram assassinados na Grécia, muitos deles pelos neo-nazis da Aurora Dourada).

Diogo Duarte disse...

Obrigado, Miguel. Outro abraço

Anónimo, acho que nenhum campo político está imune, especialmente quando se privilegia o factor identitário, tal como apontas, esvaziando tudo o resto. É claro que há muita gente que pensa que se agitar uma certa bandeira, ou simplesmente se se auto-denominar isto ou aquilo, passa automaticamente a sê-lo de facto, negligenciando a prática e a reflexão. Há disso em todos os campos políticos, certamente...
E precisamente porque cada campo político é tudo menos linear, também no BE existirão pessoas que se revêm nesta crítica e que provavelmente ficaram tão incomodadas como eu ao ouvir as declarações do referido deputado. Por outras palavras, o que escrevi não era uma crítica feita a partir duma posição política específica e dirigida a uma outra posição política distinta ou antagónica. Não estava a tentar separar águas por via de nenhuma "identidade" política particular.