19/11/13

O euro e as tarefas da democratização

O Nuno Ramos de Almeida escreve na sua última crónica no i: "Aquilo que hoje se depara à esquerda é que, na impossibilidade clara de alterar a política europeia neoliberal, só é possível salvar a democracia e o Estado social num quadro que coincida com o da decisão democrática. Para isso é necessário apostar na autodeterminação das pessoas e na democratização da economia. A política deve definir a economia, as pessoas têm de ter uma palavra a dizer nessa matéria. Ora isso só é possível num espaço que salvaguarde o direito democrático das populações de controlarem as grandes decisões económicas e exige o controlo também da política monetária. Só é possível democracia sem euro".

Se, deixando para outra altura a discussão dos equívocos da palavra de ordem " salvar (…) o Estado social", é fácil dar-lhe razão no que se refere à ideia de que só reforçando a participação democrática e conquistando para a acção política dos cidadãos comuns (o Nuno escreve "as pessoas", mas não me parece que a precisão terminológica que sugiro altere grande coisa no seu raciocínio) o poder governante — o poder de deliberar e decidir — usurpado pelas burocracias governamentais e pelos aparelhos económicos,  já não se compreende o que quer o Nuno dizer com a "impossibilidade clara de alterar a política europeia neoliberal", ao mesmo tempo que afirma, não menos claramente, a possibilidade dessa alteração no quadro mais restrito de cada Estado-nação, nem por que diabo de razão "o direito democrático das populações de controlarem as grandes decisões económicas" é impossível com uma moeda única.

Com efeito, se o Nuno não souber explicar claramente porque é que em Portugal, com o regresso ao escudo, passará a ser possível a democratização de que fala, e porque é que esta é impossível na Europa, o mais razoável será pensar que a grande maioria dos cidadãos portugueses e a grande maioria dos cidadãos europeus tudo teriam a ganhar com a democratização da UE, e que é essa a tarefa que, para garantirem e alargarem os seus direitos e liberdades, terão de levar a cabo, conjugando e coordenando os seus esforços sem se deixarem tolher por fronteiras ou interesses nacionais. E se é evidente que nem o euro, nem tão-pouco a integração fiscal, orçamental e política significam, por si sós, mais democracia, não é menos evidente que serão consequências e condições de desenvolvimento de qualquer democratização efectiva na região.


2 comentários:

José Carlos Guinote disse...

O artigo aqui criticado pelo Miguel Serras Pereira é exemplar de uma forma de exercício da crítica a partir de um conjunto de equívocos a que se podem chamas tradicionais. Há alguns que merecem ser destacados. Desde logo a afirmação sui-generis de que “A democracia deixou de representar os cidadãos porque deixou de haver uma escolha política real”. O que é que isto quer dizer? Será que o problema da democracia se resume, nas sociedades capitalistas, a uma crise da componente representativa da democracia? E a componente participativa que tem sido esmagada e reprimida? Como é que podemos ter uma democracia de qualidade se ela não permitir a todos os seus membros a possibilidade de serem construtores de facto das soluções políticas que desejam? Mas, se fosse aceitável essa tal visão de uma democracia representativa tout-court, qual seria a responsabilidade da esquerda, das diferentes esquerdas, na construção dessa realidade política? O grande problema da democracia, por exemplo na Europa, é que no contexto da demolição do Estado Providência – que nunca foi igual em todo o espaço comunitário – não existem mecanismos eficazes de base comunitária, capazes de permitir aos cidadãos formas de acesso à decisão e à acção políticas. Não me refiro à militância partidária, naturalmente. Os partidos opõem-se – têm-se oposto!!!- a isso, tanto quanto podem, e não sou capaz de distinguir, no que a essa práctica política se refere, a esquerda da direita.
Também eu não percebo de onde nasce a convicção acerca da "impossibilidade clara de alterar a política europeia neoliberal”. Estou pelo contrário convencido que o neoliberalismo está confrontado com uma oposição de uma dimensão nunca dantes vista e que é na Europa que essa oposição ganha cada vez maior força. Faz todo sentido hoje discutir o futuro das sociedades democráticas no contexto do pós-neoliberalismo. Também a mim me causa a maior perplexidade a defesa de uma solução ideal, aparentemente milagrosa, que passaria tão somente pela saída da Europa e do Euro. Por que razão esse facto iria devolver aos cidadãos a possibilidade de se sentirem representadas pela democracia e de poderem fazer “escolhas políticas reais” seja lá isso o que for.
Há um debate a fazer no contexto europeu por uma melhor democracia, que só será construída com cidadãos capazes de idealizarem e construírem a sociedade em que querem viver. Uma sociedade em que o poder político seja um dos direitos humanos inalienáveis dos cidadãos. Esse debate tem no União Europeia e no contexto da actual crise uma oportunidade muito grande. Esse é o mais ideológico de todos os debates e tenho como seguro que ele não poderá contar, naturalmente, com o contributo de todos os que hoje se reclama da esquerda.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro José Carlos Guinote,
inteiramente de acordo. É evidente que não há democracia sem vontade democrática que se traduza nas formas de organização da luta política por uma alternativa às actuais formas de governo (aparelhos de Estado e direcção da economia) - que se traduza, portanto, naquilo a que tenho chamado o "regime das lutas". À falta de vontade democrática, a revolta e o desespero perante a degradação das condições de vida e a corrosão dos direitos sociais poderá dar lugar - e está a dar lugar - a reivindicações regressivas e de medidasd autoritárias que apontam, não para a extensão da participação igualitária, mas para a consagração de melhores governantes, mais "competentes" e mais "poderosos", que ponham as coisas na ordem, recvorrendo a métodos musculados e ao silenciamento (ou pior) das vozes e propostas discordantes. Ora, acontece que a democratização significa a afirmação de uma igual participação governante dos cidadãos no seu próprio governo, e não na reprodução da distinção entre governantes e governados que as concepções vigentes em boa parte da "esquerda" só podem reforçar. É daqui que terá de partir qualquer alternativa verosímil à divisão do trabalho político das oligarquias capitalistas e burocráticas que hoje nos governam e à degradação das condições de existência que o seu governo nos impõe.

Um abraço

msp