21/11/13

A estratégia dos gestores

Numa perspectiva muito próxima à que o Miguel aborda no seu texto, o Passa Palavra publicou o primeiro de cinco artigos colectivos sobre a estratégia dos capitalistas europeus. Como ideia-forte deste primeiro artigo ressalto o hiato que existe entre a compreensão estratégica das classes dominantes europeias dos seus objectivos económicos e políticos e a esquerda que apenas sabe apegar-se ao nacionalismo.

«os capitalistas têm plena consciência dos desafios económicos, financeiros e políticos que estão em cima da mesa na actual conjuntura europeia. Pelo contrário, a esquerda e a classe trabalhadora não têm tido consciência clara da substância da crise económica. A recorrente recusa em pensar a integração dos mercados financeiros no seio da economia capitalista só existe no plano ideológico e ilusório da esquerda. No caso dos capitalistas, a situação não podia ser diferente. E, no quadro dos conflitos sociais, quem percebe de onde vieram e para onde vão as coisas tem logo uma imensa vantagem política. O que o voluntarismo da esquerda chama de teoricismo é, inversamente, o pragmatismo da classe dominante a tomar as rédeas do processo económico».

De facto, à esquerda têm prevalecido duas noções politicamente nocivas acerca da natureza da actual crise e das subsequentes respostas a dar.

Por um lado, tem vingado a ideia à esquerda de que não haveria democracia no euro. Fazendo a ponte com a crítica certeira do Miguel Serras Pereira ao panfletarismo irresponsável e nacionalista do texto de Nuno Ramos de Almeida, importa lembrar a incongruência da premissa exposta por este último. Segundo Ramos de Almeida, a saída do euro corresponderia à exigência de um «direito democrático das populações de controlarem as grandes decisões económicas e exige o controlo também da política monetária». A exigência de Ramos de Almeida é pobre e facilmente rebatida. Como se nalgum Estado nacional - dos EUA à Venezuela, do Irão e de Cuba à China - os trabalhadores tivessem qualquer tipo de controlo sobre a emissão monetária... A bem da verdade, e por muito que isso choque a esquerda, em Cuba e na Venezuela não há maior controlo da população sobre a política monetária do seu Banco Central do que o que sucede na zona euro relativamente ao BCE. Então em comparação com o caso venezuelano, com as históricas taxas de inflação sempre acima dos 30% (e que, neste momento, já vai nos 50%!), até o BCE consegue praticar uma política monetária muito menos onerosa. Não há mais democracia num Estado nacional do que numa federação de Estados. Ou melhor, esse critério por si só pouco define. E entre um Estado nacional que conferiu poderes ilimitados ao seu Presidente por um ano e uma federação europeia de democracias liberais, só acha que existe menos democracia no segundo caso quem, no fundo, defende uma via política aproximada com o caso despótico venezuelano.


E isto leva-me para o implícito da proposição defendida por Ramos de Almeida (e por parte significativa da esquerda): a tese de que bastaria emitir moeda quase indefinidamente para compensar défices orçamentais e, dessa forma, pagar a dívida pública. Pena que quem defende esta via não diga quais seriam as consequências. A saber, uma inflação galopante, fruto do crescimento da massa monetária muito acima do crescimento da produtividade; a desvalorização salarial; o aumento colossal do preços de matérias-primas, medicamentos, combustíveis e maquinaria importados; o colapso do sistema bancário e o esfumar das poupanças e depósitos dos trabalhadores, etc.




Por outro lado, tem vingado uma segunda noção à esquerda. A de que as classes dominantes portuguesas, espanholas e europeias se orientariam de acordo com uma mundividência eticamente reprovável. Nas palavras de João Rodrigues, estas classes dominantes teriam como leitmotiv para a sua acção: «o mesmo egoísmo, a mesma miopia, a mesma arrogância, os mesmos complexos do bom aluno e a mesma atitude moralista imoral depois da crise rebentar». Em boa verdade, a acção dos gestores europeus tem-se orientado totalmente em torno de princípios socioeconómicos e não porque moralmente seja egoísta e arrogante. A moralização da discussão política critica os capitalistas unicamente no plano secundário e superficial dos comportamentos. Se tal fosse verdade, ou seja, se fosse verdade que os efeitos comportamentais e morais prevalecessem sobre os princípios socioeconómicos, então bastaria mudar uma parte da classe dominante (tida por parasitária e imoral) e substituí-la por governantes bondosos e honrados. Entretanto, o princípio estrutural de organização da sociedade que caracteriza o monopólio das decisões políticas e económicas num grupo social minoritário (fosse ele uma tecnocracia clássica ou um governo dito de esquerda) manter-se-ia intacto. Espantosamente toda a esquerda não tem sequer pensado minimamente em formas de tentar confrontar este princípio central que organiza de alto a baixo as sociedades contemporâneas.
Mas voltando aos gestores, importa referir que tem sido em torno desses princípios estruturais - e não apenas morais/comportamentais - que a integração europeia se tem desenvolvido. Como evidencia o artigo do Passa Palavra, «a concentração da crítica em figuras e em pessoas, para além de ser uma fulanização fascizante, apaga os vestígios da pegada estrutural do capitalismo na determinação total das práticas que modelam a vida dos trabalhadores».

Ancorado em pesquisa empírica sobre o que realmente a tecnocracia tem dito sobre o assunto, e não sobre o que os economistas da moda pensam que a realidade deveria ser, o artigo do Passa Palavra termina com um breve desenho da actual encruzilhada política e económica:
«a evolução recente da crise das dívidas soberanas na zona euro parece confirmar a necessidade de, num mesmo processo, desalavancar a banca europeia e articular a expansão económica no plano transnacional. Isso significa que, ao contrário do catastrofismo vigente na esquerda nacionalista, a integração europeia vai prosseguir. Enquanto a esquerda cimenta posições nacionalistas, no plano económico e político os capitalistas estão a prosseguir a sua resposta institucional aos desafios que a complexificação do capitalismo lhes tem colocado. Esse até poderá ser o papel da maioria da esquerda oficial: atrelar as camadas mais rebeldes de trabalhadores precários a falsas saídas políticas, regulando assim o desespero social com as medidas de austeridade. Enquanto a esquerda dos gestores se diverte a canalizar a revolta dos trabalhadores contra alvos ilusórios, os gestores tecnocratas podem pacificamente reorganizar as instituições europeias. Para quem tem ilusões sobre o papel da esquerda dos gestores na salvação e na regulação do capitalismo, a actual conjuntura deveria deitá-las abaixo».
Se não houver nenhum cataclismo económico a curto prazo, a integração europeia vai avançar, os capitalistas estarão ainda mais unidos, e essa coisa que se intitula de esquerda vai ajudar a fragmentar ainda mais os trabalhadores que vivem na Europa... Não tenho muitas dúvidas de que, consciente ou inconscientemente, essa esquerda funciona como um importante meio de manter os trabalhadores fragmentados nacionalmente. É essa a sua função dentro (e não fora) do actual sistema de organização social. É essa a sua função de propagandear projectos nacionalistas: favorecer a criação de uma mundividência nacional dos trabalhadores de cada país em vez de cultivar um espírito de solidariedade à escala europeia. Os capitalistas agradecem.

5 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Sim, caríssimo, é como dizes. A "esquerda" limita-se a dizer que é preciso "mudar uma parte da classe dominante (tida por parasitária e imoral) e substituí-la por governantes bondosos e honrados", ou ter um governo que defenda os trabalhadores ou o "povo português" e o "país", mas sem jamais sugerir que sejam os cidadãos a governar. E assim faz seu não só "o princípio central que organiza de alto a baixo as sociedades contemporâneas", mas, por muito anticapitalista que o pinte, o princípio da dominação de classe enquanto tal - o que, reconheçamos, não é pequeno feito. E não há ruptura com o capitalismo - ou, no limite, só para pior ainda: "ruptura" no sentido da "força bruta" (grande Castoriadis!) - sem ruptura com esse princípio, sem substituição desse princípio hierárquico central pelo princípio da democracia. Tal é, como já disse noutra altura, a propósito também de outra intervenção tua, o único critério anticapitalista verosímil (cf. http://viasfacto.blogspot.pt/2012/12/o-anticapitalismo-e-o-criterio-da.html). Não é de uma plataforma de esquerda (e menos ainda de um "governo patriótico e de esquerda") que virá qualquer alternativa ao capitalismo e, mais geralmente, à dominação de classe. É da "plataforma da democratização" que precisamos, e tanto seria mais do que bastante (cf. http://viasfacto.blogspot.pt/2010/11/da-democratizacao-como-plataforma.html).

Abraço para ti

miguel(sp)

Fernando Laceda disse...

Que os partidos da esquerda não queiram rutura, não me preocupa. O que me preocupa é que sejam os 90% dos "cidadãos" a não a querer.
Fernando Lacerda

Anónimo disse...

M. Serras Pereira: Castoriadis assinala que o combate iniciático da luta de classe contra a exploração arrasta/implica a luta contra a hierarquia e a burocracia- que estruturam o capitalismo na sua essência- no desenrolar do processo, sem o qual a tentativa de libertação corre o risco fatal de degenerar. E tudo isso, que é imenso na acção transformadora, pode partir de um declic ambíguo e sem aparente relevo, como no caso da eclosão dos Conselhos Operários na Hungria (1956)ou nos anos 70 nas revoltas operárias na Polónia.Niet

João Valente Aguiar disse...

Niet,

os casos que enuncia (entre outros possíveis) são extraordinários e são a prova empírica de que uma outra sociedade é possível. A questão que se coloca nos dias de hoje é saber porque praticamente toda a esquerda não quer saber do legado prático de experiências que procuraram ir muito para além do capitalismo e que mostraram contornos de uma outra sociedade.

Fernando Lacerda,
concordo consigo. Sobre esses 90% de cidadãos que fala, é o próprio capitalismo que controla directamente: através do medo que provoca nas pessoas de perderem o emprego, através das indústrias culturais, etc.. Os restantes 10% de trabalhadores contestatários são, no actual contexto, levados pela esquerda para becos políticos que só redundarão no fracasso.

Anónimo disse...

JVA, desculpe lá. mas o que eu desejava sublinhar, ao arrepio de todas as aporias mecanicistas ou fatalmente reaccionárias que nos podem ser impingidas, é que, sem sombra de pecado,a tentativa de subversão do sistema capitalista implica, como frisou Castoriadis,tentar dar atenção às determinantes explicitas e incontornaveis: " Uma prática lúcida
é o que se não aliena à imagem virtualmente adquirida, que a altera à medida que se realiza, que não confunde intenção e realidade, possivel e provável, que não se perde em conjecturas e especulações quanto aos aspectos do futuro que não são importantes face ao que importa fazer agora ou face aos quais nada se pode realizar; mas que não renuncia a esta imagem, porque então não somente " não sabe onde vai parar". ,mas acima de tudo acaba por não saber aonde quererá ir( é por isso que a devisa de todo o reformismo, o fim não é nada, o movimento é tudo, é absurda: todo o movimento é movimento em direcção a; outra coisa se determina, como não há fins pré-determinados na história, todas as definições da finalidade se assumem definitivamente provisórias", C. Castoriadis.I.I. de la Société. Niet