04/11/13

João Valente Aguiar e o primado da democracia

O Passa Palavra acaba de publicar o último capítulo do ensaio do João Valente Aguiar que, há poucas semanas, já tive ocasião de referir (aqui e aqui). Com os sentidos sóbrios e medindo bem o peso das palavras, só posso dizer que se trata de um esforço excepcional de desmistificação do marxismo, que põe em evidência de que modo boa parte dos pressupostos centrais da obra do próprio Marx se prestam, senão solicitaram, àquilo a que com Castoriadis poderíamos chamar a transformação do marxismo em justificação ideológica e reprodução da lógica hierárquica do poder do Estado e das relações de classe fundamentais do capitalismo.

Não se trata, evidentemente, de ignorar ou recalcar o contributo que, na análise de Marx ou, depois dele, em várias correntes políticas de inspiração marxista, pode e deve informar a concepção e o desenvolvimento de uma democratização radical das relações de poder dominantes. Mas, a seu modo, e tomando como ponto de partida a questão da nação e do nacionalismo, o João mostra claramente que só renunciando à sacralização do marxismo ou de qualquer outra fórmula definitiva de gestão da sociedade  ou de ciência social meta-política, podemos continuar a bater-nos e a tornar verosímil e razoável o projecto, também presente em Marx, de uma emancipação que tem por condição a participação igualitária dos implicados no exercício do seu próprio governo.

Assim, sem subestimar a riqueza da análise específica que o João consagra aos temas do nacionalismo, ou da apropriação do marxismo — como "teoria do ser, que justifica o ser do pder", para me servir aqui de uma fórmula de Henri Lefebvre, apesar de este nem sempre ter querido ou podido extrair dela as suas últimas consequências — por diferentes versões de "gestores", sinto-me tentado a dizer que o contributo maior da sua leitura de Marx é opor aos primados, solidários entre si como Castoriadis repetidamente demonstrou, da economia e do teórico-especulativo o primado da política e da democracia.

2 comentários:

João Valente Aguiar disse...

Miguel,

obrigado pela referência e pelos comentários.

O artigo versa fundamentalmente as articulações e as funções das duas esquerdas dos gestores. Em termos gerais, existe uma esquerda dos gestores que defende vias políticas assentes ou hegemonizadas por dinâmicas da mais-valia absoluta. Essa é a maioria da esquerda portuguesa e que defende abertamente a saída do euro, a desvalorização cambial e a impressão maciça à la Nicolas Maduro, o virar do país para dentro e fazer das relações internacionais meras decorrências pontuais. A outra esquerda dos gestores partilha muitos aspectos da anterior mas tem a única vantagem de defender a evolução do capitalismo numa base hegemonizada pela mais-valia relativa. Esse é o caso do Brasil e do PT. Partilhando imensas características com a outra esquerda, diferencia-se por, do ponto de vista económico, ancorar-se no Estado para internacionalizar as actividades económicas e ancorar a modernização capitalista numa base de aumento da produtividade do trabalho. O que por sua vez acarreta aumentos salariais, aumento de qualificações. E, claro está, capacidade para controlar movimentos sociais a partir da esquerda. Mas o que as diferencia não é este último ponto mas apenas no plano económico acima referido.

Dizer que existem duas esquerdas dos gestores (ou até uma, onde o caso chinês casa perfeitamente as duas) significa colocar essa esquerda enquanto espaço político de regeneração e de salvação do capitalismo por vias que em nada rompem com a estruturação antidemocrática de base desse modo de produção. Ou para dizer de maneira muito directa, a(s) esquerda(s) dos gestores são tão anticapitalistas como a tecnocracia capitalista. Ou seja, são simplesmente a ala esquerda do Estado e da classe dominante. A maioria das pessoas (que se consideram) de esquerda é que acham que ser da mesma classe social implica vestir de maneira parecida e frequentar os mesmos espaços de sociabilidade. Claro que isso pode acontecer, mas o sucesso da classe dos gestores consiste em multiplicar e complexificar o conjunto dos seus agrupamentos sociais em torno da monopolização de um único princípio de organização social: o processo da tomada de decisões em todas as grandes esferas da vida social. Ora, sindicatos burocráticos, partidos, o aparelho de Estado clássico, empresas, organismos internacionais, etc. são evidentemente distintas organizações sociais. Mas elas obedecem, por diferentes vias, ao cumprimento de um mesmo princípio: evitar a auto-organização da classe trabalhadora. E aqui os tecnocratas sabem, ou pelo menos dão a entender, que não poderiam controlar as movimentações de base das lutas sociais mais profundas sem a participação da esquerda (dos gestores).

João Valente Aguiar disse...

No fundo, a análise das formações políticas e sociais deve partir, em primeira instância, do que as organizações ditas dos trabalhadores e da esquerda realmente promovem. Ora, se elas promoverem o irracionalismo, o nacionalismo e formas de organização totalmente opostas à auto-organização dos trabalhadores, então elas podem estar próximas de nós em termos vocabulares ("a esquerda"), mas não podiam estar mais próximas dos gestores nas suas práticas. E isto quando a esquerda se caracteriza por discursos genericamente emancipadores, porque o que vemos em Portugal e na Europa (felizmente com algumas excepções) é uma esquerda que organizacionalmente não é mais do que uma burocracia e discursivamente apoia medidas como o decrescimento económico, o resgate da pátria e o anti-europeismo.

Outro aspecto que importa ressaltar. À medida que a UE se vai integrando (para o ano vem a união bancária e, independentemente de pequenos qui pro quods, o Bundesbank anda alinhado com a integração - gradual e progressiva - ao nível orçamental e fiscal da UE), a esquerda refugia-se mais e mais no plano ideológico do nacionalismo. O que torna a maioria da esquerda num solo produtor de ideologia e de irracionalismo.

Em suma, os meninos e meninas da esquerda que se acham muito anticapitalistas são na realidade fomentadores de dinâmicas capitalistas. Na realidade, ainda conseguem a proeza de defender medidas ainda mais retrógradas e nacionalistas (implosão da UEM num contexto sem lutas sociais; estatismo; moeda nacional; decrescimento económico, etc.) do que os capitalistas de Frankfurt...

Abraço