12/11/13

«Cuidado com eles»

O 5 dias anda num corropio. A propósito das posições dos trotsquistas sobre o Álvaro Cunhal, os membros daquele blogue que se identificam como militantes do PCP ou partem dali para fora ou ficam amuados com as críticas, respondendo com saraivadas de bla bla blás sem nenhuma substância política. Verdade seja dita que a crítica do Renato Teixeira, que desencadeou a crise naquele espaço, é relativamente frágil mas toca num ponto complicado na história do Partido Comunista: a vida durante a clandestinidade e a relação do PCP com as restantes forças da extrema-esquerda.

De facto, a crítica do Renato é frágil na medida em que responde numa linha rigorosamente simétrica à que Cunhal fez no seu famoso escrito "Radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista". Centrar a crítica política no atirar de chavões sobre o maior ou menor reformismo ou o maior ou menor carácter revolucionário de uma organização tende a passar por uma disputa do tipo "o meu clube é melhor do que o teu". Por outro lado, parece-me que o Renato aborda as questões do ponto de vista da busca da organização que melhor possa dirigir as massas. Ora, o problema em 74 e 75, como hoje e sempre, não é o de se atingir o nirvana da organização política mais oleada e pura mas, pelo contrário, auxiliar a que a diferença entre as vanguardas e a classe se esbata. E que seja o conjunto dos trabalhadores que tome os destinos da sociedade nas suas mãos, tomando colectiva e democraticamente as decisões e sem terem de esperar pelo comunicado de um qualquer Comité Central que lhes ilumine o caminho... Nesse sentido, a legítima crítica do Renato situa-se na mesma plataforma de pensamento da acção política do PCP.

Retirado daqui
Jornal Avante!, nº349, VI série, 1964 - Dezembro

Curiosamente, em toda a polémica gerada recentemente no 5 dias ninguém ligado ao PCP é teoricamente capaz de responder à crítica do Renato. Como sempre fazem com quem não concordam, o que lhes interessa é o insulto gratuito e a transformação de críticas políticas em ataques ad hominem. Isso revela que, na geração nascida após 74, quase ninguém no PCP conhece puto de história, inclusive do seu próprio partido político. Esse comportamento típico do crente irracional só demonstra o quanto a adesão da maioria das pessoas a organizações de esquerda se baseia unicamente no desejo de partilha identitária e de afeição sentimental a um ideal político. Claro que não existe política sem sentimentos, mas estruturar a acção política na base da emoção costuma dar merda. Primeiro, isso significa que a adesão de mais pessoas para a luta política se vai encarreirar numa via moralista, fomentando assim o desconhecimento completo de como funciona o capitalismo. Segundo, quando o irracionalismo e o voluntarismo guiam a prática política, então fácil se torna ver como a esquerda pode alimentar vectores que comunicam com a direita mais extrema. Os mesmos que hoje insultam o Renato, são os mesmos que primem o gatilho quando alguém critica algum aspecto da linha política do PCP.



Ora, isto leva a colocar uma interrogação que toda a esquerda exterior ao PCP tem de colocar. Se por causa de um texto meramente de polémica bloguista  e se, como mostrei acima, esse mesmo texto até se insere dentro de uma visão do mundo relativamente análoga (mudando apenas a camisola do clube), os militantes do PCP desatam a insultar e a tentar assassinar o carácter de alguém, então o que fariam os PCPistas se estivessem no poder. Esta é uma lição, pelos vistos raramente aprendida, para os que pensam que basta uma organização política se assumir contra a troika para que se possa fazer uma aliança política e na luta da rua. Quem é que ainda acha possível realizar alianças e acordos com gente herdeira das piores práticas políticas do século XX?

19 comentários:

hmbf disse...

não se diz "despoletou". diz-se "espoletou".

David da Bernarda disse...

Os mesmos trotsquistas que se desdobram em críticas a Álvaro Cunhal fazem abertamente o culto de personalidade do Santo Trotski, ocultando factos e dados históricos sobre os feitos criminosos desse dirigente comunista, usando até a censura no blogue para defender o seu patrono.
Podemos nesse sentido falar de uma cultura dogmática e autoritária que corroeu todo o marxismo-leninismo e que não se reduz ao que normalmente se apelida de "estalinismo".
Já estava na hora de todos esses militantes "comunistas", das várias escolas, romperem com o autoritarismo e dogmatismo e aprenderem com a história do socialismo e do comunismo no século XX.

João Valente Aguiar disse...

David da Bernarda,

«Os mesmos trotsquistas que se desdobram em críticas a Álvaro Cunhal fazem abertamente o culto de personalidade do Santo Trotski»

Totalmente de acordo consigo. Aliás, ainda recentemente noutro lugar lembrei que os trotsquistas deveriam ler o livro "Terrorismo e comunismo" e dizer o que acham sobre o assunto da defesa que o seu pai ideológico fazia do escravismo e da militarização do trabalho. Aquele foi um dos textos inaugurais da experiência concentracionária soviética.

João Valente Aguiar disse...

Hbmf,

tem toda a razão.

Miguel Serras Pereira disse...

Trotsky contribuiu decisivamente para a instauração do regime que, sob Estaline, viria a assassiná-lo. Forneceu todas as justificações ideológicas à supremacia do partido de vanguarda, à prioridade dos seus direitos históricos de comando sobre a vontade dos representados, e por aí fora.No plano da prática, foi também consequente com as suas concepções tão antipopulares como as de Lenine, quando não mais autoritárias ainda. O facto de antes de 1917 (no Relatório da Delegação Siberiana, por exemplo) e depois da sua exclusão das funções dirigentes no PC(b) ter produzido análises esclarecedoras, ainda que sempre ambivalentes, da "realidade soviética" não pode nem deve fazer-nos esquecer o seu papel de fundador do regime da URSS (é até condição para podermos aprender ainda alguma coisa com os seus escritos).
Dito isto, quanto às questões de fundo, o episódio do 5dias e do Renato Teixeira é sobretudo ilustrativo da miséria e decomposição das concepções políticas e organizativas da esquerda que se reclama do comunismo e da sua versão leninista. Durante os últimos anos, o RT não só tem defendido, através de elucubrações geoestratégicas verdadeiramente abracadabrantes, tudo o que é contrário à igualdade e à liberdade democráticas, como tem sido aliado entusiástico das piores operações censórias e persecutórias que tiveram o 5dias por palco. Mas, evidentemente, não é por isso que agora os membros do 5dias próximos ou íntimos do PCP o tornam alvo das suas denúncias e o acusam de ter desencadeado, com Raquel Varela, uma purga extremamente profissional. Assim, a única conclusão a tirar deste episódio é a de que tanto o RT como os seus ex-aliados e actuais detractores persistem em "concepções" e métodos de luta política que qualquer acção política que tenha por horizonte e inspiração uma sociedade de iguais terá de começar por excluir.

msp

Um anarco-ciclista disse...

O Renato Teixeira acusou Álvaro Cunhal de ser um delator da PIDE.

Não venhas com blás, blás, blás teóricos e pseudo-teóricos.

Há uma diferença entre crítica e calúnia.

João Valente Aguiar disse...

Anarco-ciclista,

por isso é que eu disse que a crítica do Renato é frágil.

Por outro lado, o meu post é sobre a caça ao homem que os pcpistas fizeram. Se alguém ligado ao PCP no 5 dias percebesse alguma coisa da história do seu partido simplesmente tinha respondido com a auto-crítica que o Cunhal fez no Rumo à Vitória relativamente ao episódio do "Cuidado com eles". E aqui refiro-me a um texto e não a comentários.
Mesmo que essa auto-crítica do Cunhal seja, no mínimo, dúbia e não totalmente esclarecedora, apesar de tudo creio que bastaria isso para dar conta da fragilidade do tom e da crítica do Renato sobre esse ponto em específico - que para mim nem sequer é o aspecto mais importante para discutir no legado político do Cunhal. Espantosamente as pessoas ligadas ao PC preferiram insultar e debandar amuados...

Um anarco-ciclista disse...

Desculpa lá, mas o que o Renato fez não foi "crítica" - foi "calúnia".

zeca marreca disse...

"Espantosamente(...)preferiram insultar e debandar amuados..."

Isso é uma auto-crítica tardia?

João Valente Aguiar disse...

Anarco-ciclista,

se era uma calúnia que fosse confrontada como tal nas linhas do que afirmei.

Mas como disse, a mim o que me interessa discutir do Cunhal e do PCP são questões politicamente muito mais estruturantes, independentemente de qualquer concordância ou discordância.

Miguel Serras Pereira disse...

Nota sobre o caso Renato Teixeira.

O que aqui escreve o André Carapinha (http://5dias.wordpress.com/2013/11/12/em-defesa-de-alvaro-cunhal/#comment-19136)é, de facto, certeiro, esó peca por defeito.

"O Renato é um provocador; o Renato, para além de provocador, mete os pés pelas mãos uma e outra vez, como voltou a meter agora com a imprecisão factual acerca da delação do Xico Rodrigues. O que acho surpreendente, é como alguns que agora se sentem como virgens ofendidas, agora que se tocou no assunto tabu, o Cunhal, nada tenham dito em situações anteriores, aliás bastante piores quanto à forma, como aquela que terminou com a saída deste blogue dos elementos próximos do BE. Alguns, até, por puro tacticismo, a ele se aliaram nesse joguinho baixo, estando agora a provar o veneno do escorpião".

Com efeito, além do seu papel na operação citada pelo AC, o RT distinguiu-se noutras, nomeadamente em aliança com o fascista Carlos Vidal, tomando por alvo, entre duas campanhas obscenas de promoção da "resistência islâmica". alguns dos membros fundadores deste blogue, e muitas outras pessoas ou causas. Dada as cumplicidades quando não aplausos, e talvez sugestões, que recebeu na sua prática contumaz da infâmia censória e da difamação por parte dos mesmos que hoje se queixam da irreverências das suas palhaçadas de ersatz de Humpty Dumpty engendrado pela decomposição mental de não sei que espírito de humorista falhado, tudo o que há dizer é que, no "veneno do escorpião", os seus actuais críticos provam apenas os efeitos do seu (deles) próprio veneno. Não é a primeira vez, nem a mais grave.

msp

João Valente Aguiar disse...

Miguel,

tudo o que dizes é verdade. Repara que eu mencionei de uma forma muito explícita no texto que a posição do Renato - como a da esmagadora maioria da esquerda portuguesa - situa-se na «mesma plataforma de pensamento da acção política do PCP». Não quero com isto dizer que ideologicamente todos partilhem a mesma perspectiva sobre um qualquer assunto, mas que as práticas de organização e a visão vanguardista sobre a classe trabalhadora prevalece.

O meu foco neste post foi unicamente chamar a atenção para o facto de os pcpistas serem incapazes de discutir qualquer questão política, limitando-se ao insulto e a tentativas de assassinato de carácter. Daí que a esquerda leninista (e não apenas a do PCP) se expresse por práticas análogas e que vão desde assuntos mais macro como o delírio nacionalista da saída do euro, a práticas de organização (como o desejo de querer liderar as lutas sociais) e a práticas de ataque pessoal. Este triângulo demonstra o que vale esta esquerda.

Abraço

Niet disse...

Miguel Serras Pereira: Acho que estás a ir longe demais na tua critica ideológica ao C. Vidal. Ele pertence a uma geração muito problemática, niilista e apocalíptica, e que luta por um lugar ao Sol, custe o que custar.Como ele, existem outros do mesmo estilo e contorcionismo, eximindo-se a um módico de controlado estilo e sobrevivência: que pode(m) servir-se de todos os meios para atingir o patamar da efémera fama ou do vão poder...de mandar, de sacrificar e de eliminar: sobre esses nem uma palavra por ti acenada em protesto, dir-se-ia tudo de bem com os anjos e o diabo. Ora, há três anos, jantei em Lisboa com o C.Vidal e, com cristalina e espontânea boa-fé e amizade, sem delongas e com o blitz da mais espectacular das naturalidades, me " convidou " a encarar a hipótese de " entrar " no Cinco Dias. Agradeci e registei o gesto, claro, que prova o sentido democrático essencial que o anima: dialogar com todos sem censura politica e ideológica .Ele pode ser tudo-com mais ou menos talento e um esforço teórico contraditório desbaratado- mas está, para lá do bem e do mal, no mesmo lado da nossa barricada. Salut! Niet

Miguel Serras Pereira disse...

João, caríssimo,
como deves imaginar, não era o teu post o alvo das minhas críticas. E, ao contrário de outros, "reparei" bem no que disseste, e julgo ter-te entendido bem. Não sou o Vítor Dias nem quis distorcer o sentido do que dizes como ele faz numa das suas mais lamentáveis referências ao Vias.
Abraço para ti

Niet,
se quisesse dar-me a esse trabalho pouco nobre, poderia encontrar facilmente quer comentários, quer mensagens tuas por comparação com os quais o que eu digo do fascista CV se torna quase complacente - e que, além disso, recorrem a métodos de desqualificação pessoal que é meu timbre nem contra os fascistas utilizar.
Quanto ao resto, bom proveito te faça o jantar.

misp

Niet disse...

Uma breve nota em forma de palimpsesto melancólico sobre um comentário de MS. Pereira:" Face au sérieux impitoyable de la société totale qui a absorbé toute instance contraire à elle comme la protestation vaine qu´anéantissait jadis l´ironie, il ne reste plus que le sérieux impitoyable, la verité parfaitement comprise ".Liberté et egalité ! Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Niet,
vi este anúncio que talvez te possa interessar:

ASNO DOMÉSTICO MUITO VISTOSO PROCURA MONTADA ERUDITA COM EXPERIÊNCIA EM CITAÇÕES APROXIMATIVAS PARA PARTICIPAÇÃO EM EVENTOS PÓS-REVOLUCIONÁRIOS NAS INSTALAÇÕES CARAVAGGIO DE CARLOS VIDAL & VIDAL, AO CHIADO. CONTRATO TRIMESTRAL RENOVÁVEL.

Vale?

msp

João Valente Aguiar disse...

Miguel,

ao contrário dos meninos pcpistas, evito sempre debater em torno de pessoas e unicamente sobre teses políticas. Aliás, como eles só sabem transformar diferenças políticas em ataques pessoais não costumo dar-lhes troco.

Mas o que colocas sobre a outra personagem tem interesse. Não no sentido pessoal, como é óbvio, mas no sentido de ser mais um exemplo de como gente que se reclama de um ideário libertário participa em espaços com leninistas, ou se preferires com nacionais-bolcheviques. E nem se trata propriamente dos blogues, mas de partilharem teses políticas comuns, mesmo que a linguagem ideológica externa possa ter diferenças. Aliás, é ver como alguma gente que se coloca na área libertária hoje em dia diz preferir o PCP ao BE... Tudo bem que eu não sou adepto do BE e sei perfeitamente que muitas das suas lógicas são análogas às da esquerda burocrática. Todavia, achar que o PC é menos mau só porque tem mais militantes e que a sua cultura política interna seria desejável, é não conhecer nada de nada dos objectivos políticos do PCP. E é não compreender nada da história do leninismo que engoliria todos os idiotas úteis que acham que o partidão os iria incensar se chegasse ao poder. O panteão dos heróis do leninismo é sempre selecto. Creio que a tolerância enorme para com o leninismo com que grande parte da esquerda que aparentemente não tem muito a ver com o PCP, demonstra que, na realidade, a experiência leninista é uma manifestação concreta dos mecanismos de hetero-organização da classe trabalhadora. O que quer dizer que a tolerância da esquerda não-pcpista para com esse partido se deve a uma partilha de elementos estruturais de verticalização e de monopolização das decisões políticas. E a comprovar-se essa partilha, temo que o estado da esquerda se venha a agravar nos próximos anos.

Abraço fraterno

Miguel Serras Pereira disse...

João,

inteiramente de acordo. Mas, já que estamos na análise política de episódios secundários mas sintomáticos, vale a pena reflectir como, passado o ímpeto inicial, as críticas mais graves da ala PCP do 5dias e seus adeptos nas caixas de comentários, tendem a seguir a sugestão do fascista Carlos Vidal, e a tomar por alvo a Raquel Varela, deixando o Renato Teixeira em relativa paz.
É que, apesar de ter incorrido numa brincadeira de sabor sacrílego, o RT não passa de um palhaço, cujas exibições histriónicas acabam por ser úteis ao PCP - contra o BE, contra todas as tendências e organizações (à excerpção da Rubra) que põem em causa o monopólio vanguardista de "O partido da classe operária". Com a Raquel Varela, embora eu esteja tão distante das suas concepções sobre o partido educador, que deve tratar os trabalhadores como alunos que um professor transforma de macacos em seres humanos (para me servir de um símile utilizado pela própria RV), o caso é diferente. A RV procura argumentar racionalmente as suas convicções e pontos de vista, pratica uma censura pedagógica inaceitável, mas não põe em princípio em causa a exigência do dar conta e razão, e, por isso, é, de facto, muito mais perigosa para o PCP do que o RT ou o fascista Carlos Vidal. A Raquel Varela adopta meia-dúzia de pressupostos que a qualquer momento, entrando em tensão com o dogmatismo ideológico que também mantém, a podem fazer renunciar ao segundo em benefício de uma perspectiva racional e democrática da acção política. O RT e o CV, embora também possam vir um dia a mudar de rumo, não defendem hoje uma única ideia que possa servir de apoio ou detonador de uma metamorfose semelhante.
Desculpa o arrazoado, mas não consegui resumir mais o que entendo ser, apesar de tudo, uma adenda solidária e não completamente impertinente ao teu post.

Abrao para ti

miguel(sp)

João Valente Aguiar disse...

Eu acho a análise dela sobre a actual crise económica demagógica e puramente ao serviço da sua linha política. Mas sobre o PCP, é evidente que concordo com várias questões que ela demonstra. E ela demonstra porque os documentos da história do PCP assim o evidenciam. A questão subsequente sobre os lamentos dela e dos trotsquistas acerca da inexistência de um partido que leve ao socialismo, não me interessa e, diga-se em abono da verdade, pouco interfere com a conclusão de que o PCP se comportou em 74-75 como o principal responsável político no abafamento das lutas sociais de base. Entre outros, é lembrar essa bela lei da greve do II governo provisório.

De facto, pior de tudo são os tipos como o Marinetti da esquerda portuguesa que vendem a ideia que são situacionistas enquanto pertencem a uma organização nacional-bolchevique.

Abraço