Subscrevo (quase) inteiramente o excelente texto do Jorge Valadas. Acima de tudo por dar uma perspectiva do que ali acontece sem obrigar ninguém
a entrar voluntariamente num beco sem saída (seja assumindo uma posição no
plano geopolítico, seja abandonando o lado – muito minoritário, é certo – que mais
nos interessa e que corresponde à facção que tenta intervir para lá do domínio
da política institucional, como é apontado). Uma das coisas mais interessantes
do texto, por corresponder a algo não muito referido, está, creio eu, no
sublinhado que faz quer da incapacidade de outros grupos em criar correntes e
práticas antagónicas às dos extremistas de direita no espaço da própria
ocupação, quer da ausência de estruturas de solidariedade ou greves para lá do
Euromaidan, o que diz muito sobre os limites populares e “revolucionários” do
movimento. Mas, sem ter propriamente grandes discordâncias, quero deixar um
comentário em que tentarei enfatizar outros aspectos (mais ou menos presentes no texto do
Jorge).
Continuo a achar que o que de mais determinante ocorre na Ucrânia é, também, o que tende a ser mais obscuro e o que mais foge ao controlo de quem
esteve na praça, seja de que facção política for. Refiro-me à disputa entre as
grandes potências travada bem para lá do Euromaidan, pois parece-me ser essa a que
mais preocupa e a que mais perigos encerra (tendo sido parcialmente relativizada,
nos média e nas discussões sobre o assunto, pelo peso da extrema-direita no
movimento em causa). É que mesmo essas forças reaccionárias extremistas,
independentemente da expressão popular que já tinham anteriormente, ganharam
espaço naquele cenário condicionando os seus propósitos a lógicas alheias. Por
um lado, em coisas simples, silenciando, por exemplo, a sua oposição à UE (para
se aproximarem do discurso duma parte significativa dos manifestantes); por
outro lado, noutras matérias, enquanto peões e agentes de pressão popular ora das
potências internacionais interessadas no conflito, ora das outras forças
políticas partidárias também ali presentes. Neste último aspecto, há algo fundamental
que ainda não é possível perceber com clareza – e que não é exclusivo do que se
passa na Ucrânia (na Venezuela e na Tailândia verifica-se o mesmo) – que é o
poder das milícias ou grupos paramilitares (ou que lhe quiserem chamar),
nomeadamente o que respeita à sua capacidade bélica e organizativa (sobre o
crescimento destes grupos nos últimos anos, ver este pequeno texto publicado num blog sobre violência política). Se no caso da Venezuela e da Tailândia estas cumprem
a função de auxiliar as polícias na repressão e “reposição da ordem”, no caso da
Ucrânia estas destacaram-se pela capacidade que tiveram de resistir e combater as
forças repressivas governamentais (particularmente violentas, como se viu). Em
parte, o sucesso e a visibilidade da extrema-direita no movimento explica-se
por isto, pois coube-lhes em grande medida esse papel. Resta saber quem está
por trás da logística e da organização desses grupos, financiando-os, pois não
correspondem a algo espontâneo ou claramente organizado anteriormente (pelo
menos na sua totalidade), nem assentam, somente, na sua “natureza militarista e
machista”, como sugere o texto do Jorge Valadas. Há indícios de que pode haver
mão dos EUA, provavelmente até de outras potências (com a colaboração interna
dos grupos/ partidos interessados na queda do governo), mas tudo parece não passar
ainda de especulação.
Parece-me, também, que o texto do Jorge Valadas continua a não
escapar totalmente a duas tendências recorrentes (mas este entendimento pode
derivar de qualquer coisa que me tenha escapado): por um lado, a que atribui um
peso algo desmedido à extrema-direita; e, por outro lado, a que reconhece uma homogeneidade
no seu campo que não estou seguro de que tenha total correspondência com que
acontece.
Antes de mais, se é evidente que o que ali acontece não deve
entusiasmar ninguém que tenha pretensões emancipatórias e igualitárias (e devo
dizer que em Portugal, pelo menos nas últimas semanas, não tenho visto ninguém
mostrar qualquer entusiasmo com o que ali acontece, ao contrário do que o texto
parece sugerir no início), não devemos entregar todos os manifestantes que
ocuparam a praça àqueles que ganharam a sua frente mais visível e que mereceram
mais atenção mediática, ou seja, a extrema-direita. Isto não significa olhar
para esses outros manifestantes como aliados
ou como potenciais revolucionários. Mas entre o seu discurso desinteressante,
frágil e até inofensivo que assenta numa ideia de cidadania gasta, que se opõe
a pouco mais do que a “corrupção dos políticos” e que deseja a integração na UE,
etc. , e a agenda da extrema-direita, ainda vai uma distância grande. Apesar da
fragilidade do referido discurso, e até da sua permeabilidade a esse tipo de políticas
perigosas (nomeadamente aos valores nacionalistas), não é preciso muito para
aceitar que uma parte significativa dessas pessoas não está disposta a abraçar a
agenda das forças da direita radical. Claro que nada disto deixa de ser
preocupante, pois neste hiato de instabilidade que se abriu a posição ganha pelos
fascistas e neonazis pode significar um retrocesso inultrapassável a breve ou
médio prazo (através da consolidação ou mesmo crescimento da sua participação no
governo presente e governos futuros). Mas parece-me um erro atribuir-lhes um
poder desmedido com base na inexistência de um campo revolucionário de esquerda
e pelo papel destacado que tiveram/ têm no Euromaidan.
Há, ainda, outro factor, algo paradoxal, a perturbar quer a
estabilidade quer a força da extrema-direita, pelo menos por enquanto. Digo paradoxal
porque se deve ao próprio campo da extrema direita e não a qualquer perturbação
externa. Acontece que a extrema-direita não se cinge ao Svoboda e está dividida
entre este e o chamado Pravy Sektor (Right Sector). As divergências entre estes
dois grupos são exploradas por Yulia Tymoshenko e têm consequências nos lugares
que lhes são reservados na reorganização política em curso, fragilizando-os e
tornando-os eventualmente mais manipuláveis (este texto, escrito por um dos
grupos referidos pelo Jorge Valadas, dá conta desta divisão).
Para terminar, volto a sublinhar algo que vai de encontro ao
que o Jorge escreve no fim do texto e corresponde, também, ao que procurei
dizer em textos anteriores (aqui e aqui): o reconhecimento da
extrema-direita no Euromaidan e do carácter predominantemente autoritário do
conflito em curso, não deve servir para abandonar o apoio àqueles que procuram explorar
um caminho revolucionário, emancipatório e anti-autoritário, por muito poucos
que estes sejam. Antes pelo contrário. A oposição à extrema-direita não pode
ser um fim em si mesmo, nem pode implicar o abandono absoluto dum horizonte
próprio em função dos interesses políticos e imperialistas disputados. Até
porque estamos perante um cenário em ebulição, com muita coisa em aberto, ainda
sujeito a muitos impasses e mudanças e propício a uma politização rápida da maioria
da população (o que pode assumir muitas direcções). Tal como diz o fim do texto referido no
parágrafo anterior, “it is these people who are indifferent to the ultra-rightand critical of the system opposition, the “disgruntled members of the Maidan,”who can soon fill the ranks of the left and anarchists”. Assumir isto
como hipótese não implica abraçar qualquer optimismo idiota. Implica, sim,
reconhecer que em cada fissura que se abre surge a possibilidade de construir
algo novo. Abandonar essa possibilidade é uma rendição à derrota.
1 comentários:
é sintomatico que alguns meios e jornalistas(EUA/Inglaterra) foquem as noticias na corrupção do regime Ivanovitch, quando uma das certezas é que o regimen de Timochencko tinha mais furos que uma canasta. Para quem tem idade para ter vivido o 25abril percebe como os fazedores de noticias se afadigam no faz de conta que mais lhes agrada, mesmo que a realidade seja o oposto.
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