08/01/15
"Islamofobia"
por
Miguel Serras Pereira
Não data de ontem decerto a confusão que reina em torno da islamofobia. No uso que dão à palavra muitos dos que a denunciam, é raro encontrarmos a clareza suficiente. Não há problema — bem pelo contrário — na denúncia das perseguições ou discriminações que visam aqueles que professam uma religião ou uma fé, pelo facto de a professarem. Mas há um problema enorme em não combater implacavelmente como antidemocrática qualquer versão religiosa — cristã, islâmica, satânica, o que se queira — que imponha a revelação como limite à liberdade de pensamento, expressão e deliberação democrática da praça da palavra. Se negar o direito de cidade a uma versão da fé islâmica que pretende ditar as leis e as decisões que democraticamente só os próprios cidadãos têm, igualmente e entre iguais, o direito de se dar, rever, formular de novo, é islamofobia, pois bem, não teremos outro remédio senão assumir o dever de ser islamófobos. O que significa, também, que não poderemos deixar de opor a mesma "fobia" a qualquer versão do cristianismo, do judaísmo, dos mitos nacionais ou da adorçaão do diabo mais velho que pretenda despojar-nos da liberdade e da responsabilidade de nos governarmos a nós próprios, sem "vontade de Deus" ou "leis da natureza" que condicionem a nossa deliberação e livre exame das questões da vida em comum. Sem dúvida, não basta a destituição política da religião para garantir a plenitude da cidadania governante, mas nem por isso o combate pela autonomia democrática deixa de ter nessa destituição uma condição preliminar.
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13 comentários:
Viva Miguel,
Há aqui um ponto interessante mas melindroso. Julgo poder contribuir utilmente para o debate, dado que me tem acontecido defender em Tribunal associações que lutam contra a "islamofobia". Na realidade, aquilo que elas combatem (pelo menos as que conheço) não é a expressão de ideias ou de credos contrários ao seu. Combatem apenas a discriminação que, por vezes, mas nem sempre, opera atravês de amálgamas (os terroristas/os islamistas radicais = os muçulmanos). Falo, como é obvio, da minha experiência. Na medida em que os meus clientes me pedem para mobilizar as regras anti-discriminação, vem sempre a propósito lembrar-lhes que estas regras implicam, como é lógico, que as pessoas que têm credos diferentes, sejam de outra religião ou ateistas (como eu), merecem exactamente o mesmo respeito. O princípio de não discriminação radica no princípio de igualdade. Logo, não pode servir para pedir privilégios... Devo dizer que nunca tive dificuldade em explicar isto, nem nunca encontrei, por parte dos meus clientes “anti-islamófobos”, a menor reticência em relação ao que acabei de explicar.
O problema é que a distância é por vezes muito curta entre o medo do amálgama, e o discurso dúbio que começa a parecer-se com justificação, como ficou bem patente no comentario deixado no post anterior pelo auto-intitulado grupo "regard noir". Portanto devemos navegar entre dois escolhos : não podemos dizer que a "islamofobia" não existe, ou que o perigo do amálgama é uma pura fantasia (que infelizmente não é), mas também não podemos deixar que o medo do amálgama nos paralise ou que nos impeça de criticar actos por aquilo que eles são, e muito menos ainda que nos impeça de debater livremente, o que implica total liberdade de expressão de ideias, sejam elas quais forem. Ora o caminho também não é assim tão estreito comp parece : no fundo, criticar actos e debater livremente constitui, precisamente, a melhor forma de nos precaver contra a lógica do amálgama. Julgo que até as pessoas mais reticentes, que são em regra geral as que mais padecem com o amálgama (os muçulmanos residentes nos paises europeus cabem certamente nesta categoria), conseguem compreender muito bem o que acabo de explicar.
O caso do comentário do grupo “regard noir” é emblemático. Admito que o texto tenha sido escrito de boa fé. No entanto, como apontas muito bem, o próprio autor é forçado a fazer concessões que tornam a mensagem completamente incoerente, para não dizer contraditória. Isto porque o ponto de partida é uma asoluta falácia : “separemos as águas : nós estamos do lado das verdadeiras vítimas, que o são do amálgama feito pelos outros todos”. Portanto o problema não está na intenção, mas no próprio texto, que não tem pés nem cabeça…
Abraço
Viva, João.
Concordo em absoluto com as distinções que operas. Pelo meu lado, só quis chamar a atenção para os usos equívocos do labéu "islamofobia" que alguns mobilizam com propósitos — ou efeitos — peculiarmente liberticidas.
Abraço solidário
miguel(sp)
Muito bem!!! Folgo verificar que não está tudo parvo. Abraço.
Viva, Ana.
Muito folgo eu em ver-te por cá. Agradeço-te o apoio e deixa-me dizer-te que a impressão de que não está tudo parvo sairia reforçada se mais vezes visitasses estas paragens.
Abraço para ti
miguel
Caro Miguel,
Sem pretender arvorar-me em campeão do uso do termo "islamofobia", deixe-me dizer-lhe que as suas observações, perfeitamente pertinentes, só fazem sentido em relação aos que utilizam tal conceito para desautorizarem toda a crítica ao fundamentalismo islâmico em nome da necessidade de proteger as comunidades muçulmanas de qualquer perseguição. Esse uso decorre de uma generalização desculpabilizadora, perfeitamente simétrica da que preside à diabolização genérica dos muçulmanos. Mas, como o Miguel muito bem sabe, não é esse o sentido original da noção de "islamofobia", nem é essa a sua matriz, que remete para os famosos relatórios Runnymede. Aí a preocupação resultava das rotulagens negativas de toda uma comunidade - sobretudo de imigrantes na Europa - baseadas na generalização de estereótipos que indiferenciavam os diferentes grupos e atitudes que atravessam a prática do Islão, dentro e fora da Europa. Ora, esse uso da palavra "islamofobia" continua, para mim e para muitos outros, a fazer todo o sentido. E tanto mais quanto parece ser previsível que os ataques terroristas recentemente cometidos venham a ter como reflexo o aumento da xenofobia anti-islâmica por essa Europa fora. O problema com que nos defrontamos é a necessidade estratégica de fazer várias distinções e de não incorrer em generalizações simplistas. Sublinho que este comentário não é uma desaprovação do seu texto. É apenas um complemento que, julgo eu, se impõe.
Caro Mário,
agradeço as suas observações que, de facto, convergem com as minhas: repare que escrevi, no título do post, "islamofobia" (com aspas) e que pretendi apenas alertar contra as manobras dos pescadores de águas turvas que exploram com propósitos antidemocráticos a ambiguidade do termo. Bom, é verdade que pretendi também mostrar que, sem confundir todas as versões do islamismo, este, sob todas as suas formas, pode e deve, como qualquer outra religião, ser criticado segundo uma concepção da autonomia democrática que, pelo menos em parte, creio compartilharmos. Uma coisa é dizer que nem todos os muçulmanos se revêem no Estado Islâmico ou tendências afins, outra é dizer que não devemos criticar radicalmente o islamismo moderado dos que, por exemplo, condenando o Estado Islâmico, alimentam o sonho de criminalizar a blasfémia, movem processos aos caricaturistas de Maomé, exigem não que os outros respeitem a sua liberdade de expressão, mas mantenham uma atitude de reverência devotaperante as ideias que exprimem em matéria religiosa e política, etc., etc., visando limitar ou condicionar censoriamente as liberdades democráticas.
Obrigado e um abraço
miguel serras pereira
Para muitos dos liberais, no sentido americano do conceito, entre os quais me incluo e pelo que faço desde já a devida mea-culpa, é sinal de sofisticação intelectual pretender que se transcendeu a ligação ao Estado-Nação entendida como sendo paroquial e redutora, tendo substituído esta por valores de cidadania global. É, (ainda), admissível ter laços fortes com a família e amigos, mesmo com a nossa cidade, (“Tenho orgulho em ser Lisboeta” ou, no meu caso,” Londoner”), ou com uma Região, (todos os países têm o seu Norte...), mas se no abstracto a ideia de Comunidade é aceitável já quando se trata de defender os valores da Nação, sobretudo se esta carrega as culpas de um passado imperial, como é o caso da França, Grã-Bretanha ou Portugal, isso torna-se francamente inconveniente.
É por isso que para os liberais é tão difícil entender que na população haja quem levante objecções às modificações radicais que a imigração em massa trouxe às suas comunidades sem as classificar de irracionais ou racistas.
É por isso também que outros Liberais defendendo o multi-culturalismo, defendem simultaneamente o direito das diversas comunidades em praticarem a descriminação, como única maneira de impedir a assimilação, assimilação essa que conduziria obviamente a um mono-culturalismo.
Para muitos outros, sendo a Sociedade um conjunto inorgânico de indivíduos, o problema da integração não se põe, podendo e devendo todas as comunidades imigrantes manter os seus usos e costumes.
Acontece porém que para a generalidade dos cidadãos autóctones os recém-chegados, ao não fazerem um esforço para fazerem parte daquilo que podemos chamar de “comunidade imaginária”, enfraquecem os laços de solidariedade colectiva que é o fundamento do Estado Social.
E se a maioria não se manifesta abertamente, vota porém, e os resultados do Front National e do Ukip aí estão a demonstra-lo.
Temo que os apelos à calma e à separação das águas acabem por cair em saco roto por chegarem tarde de mais. A Europa foi cedendo em demasiadas coisas. Por razões que agora não vêm ao caso. Confundiu-se tolerância com relativismo. E aqui, a responsabilidade cabe toda à esquerda. A crise e o desemprego apenas vieram agudizar uma situação que já não era pacífica. A recorrente diabolização dos EUA, a incapacidade para reconhecer que o Islão radical trazia a semente do fascismo, o silêncio em relação aos curdos (suspeitos porque apoiados pelos americanos e, pecado capital, por venderem petróleo aos israelitas)em contraponto ao endeusamento de movimentos como o Hamas, a absoluta cegueira sobre o que passa nos países islâmicos em relação às mulheres, à cultura, em matéria de censura, a (in)justiça, etc, tudo isso contribuiu para a irrelevância do discurso actual da esquerda em relação a uma situação que não compreende, não compreendeu, e sobre a qual se limita a reproduzir velhos discursos dos quais a realidade se ri. São de facto tempos interessantes. E de chumbo. Se a Le Pen vencer em França é o islamofascismo que ganha mais uma batalha. Isto é uma guerra. E quem não perceber que de repente temos uma guerra pela democracia que não é necessariamente uma guerra anti-capitalista e não se souber posicionar não vai passar do rodapé da página. E uma nota emotiva: quando dois fdp entram pelo Charlie Hebdo dentro e matam à rajada de metralhadora dos seres mais livres que existiam neste planeta enquanto berram que estão a vingar o Profeta, que raio deu às pessoas para trazerem a islamofobia para o centro do debate?!!! Desculpem lá, mas eu não sou cristã e essa coisa de dar a outra face não faz faz o meu género. Arrepiam-me os muçulmanos mortos nos seus países pelos próprios islamofascistas. Comovem-se as mulheres muçulmanas tratadas como seres de segunda ou mesmo como animais. Fecho os olhos às imagens de homens muçulmanos decapitados, decepados e executados no Paquistão, na Síria, na Arábia Saudita. Solidarizo-me com os desgraçados dos yazidis caçados como gado pelas montanhas. Fico sem palavras com as crianças muçulmanas refugiadas na Síria a morrer de frio. Desculpem lá, mas os muçulmanos de Barbès não são mesmo a minha primeira preocupação. Esses têm todos os meios para se defenderem e provarem que a sua religião não é melhor nem pior do que as outras. E que respeitam os valores laicos que regem a cidade.
Um instrumento de análise indispensável e incontornável para se perceber a disseminação irredimivel do flagelo do Jihad islâmico internacional passa, sem apelo nem agravo, pela leitura e consulta dos trabalhos do historiador inglês, Alistair Horne, amigo e confidente de Kissinger,cujos livros " Como perder uma guerra " e " História da Guerra da Argélia " são determinantes para se avaliar o que está na base de um processo histórico gerado nos anos 50 e que alastra hoje do Magreb ao Golfo Pérsico. Niet
Ana,
subscrevo quase literalmente tudo o que dizes — embora com uma ressalva. Admito, sublinho e tenho insistido a propósito desta e de outras questões na prioridade da democracia — da sua defesa e extensão. No entanto, não vejo como tal tarefa — e a sua prioridade lexical — possa deixar intactas as relações de poder dominantes — o "capitalismo".
Abraço
miguel(sp)
Rupert Murdoch, o do escandalo das escutas, o dono do Sun,do News of the World , do WSJ, da SkyNews, da FoxNews, num tweet, @rupertmurdoch, com poucas horas:
"Maybe most Moslems peaceful, but until they recognize and destroy their growing jihadist cancer they must be held responsible."
"Talvez a maioria dos muçulmanos seja pacifica...entretanto eles deve ser responsabilizados"
Islamofobia ? It can't be bigger than that.
Cara Ana,
Quanto à sua crítica das responsabilidades de uma certa esquerda no triunfo esterilizante do relativismo, e do modo como esse triunfo ideológico e cultural nos impede, hoje, de ter uma estratégia para fazer face aos fundamentalismos identitários, inteiramente de acordo. Na minha página do FB escrevi algumas "diatribes" contra aquilo que designo, maldosamente, como a "esquerda tonta" e o que ela tem vindo a sustentar a propósito do assassinato dos redactores do "Charlie Hebdo". Mas este seu comentário suscita-me algumas observações. Primeiro, a opressão das mulheres é um problema das "sociedades islâmicas" ou de alguns países cujo organização estatal e societal se reclama, ideologicamente, do Islão? Por outras palavras: é um problema "islâmico" ou é um problema de determinados países? É um problema da Arábia Saudita ou é também um problema da Turquia e da Indonésia, países onde as mulheres gozam de direitos idênticos aos dos homens, nomeadamente ao nível da representação política? Em segundo lugar, algumas cabeças invocaram - sem necessariamente o inscreverem no centro do debate - o tema da islamofobia a propósito do ataque ao "Charlie" porque sabem muito bem o género de derivas que dominam, hoje, boa parte das populações europeias e dos "fazedores de opinião". Em meu entender, a invocação do tema faz sentido e não é só por causa dos milhões de imigrantes muçulmanos. É porque o triunfo da estigmatização global dessas "comunidades" irá subverter por completo a substância do Estado democrático e do Estado de direito. A "islamofobia" não se vai virar apenas contra os muçulmanos: vai-se virar contra todos nós. Finalmente, os muçulmanos de Barbés podem perfeitamente proteger-se? Sim, enquanto durar o tal Estado de direito. Não, se a LePenização for o rosto futuro da Europa.
Caro Mário, só agora vi o seu comentário.
Duas coisas.
1. Os direitos das mulheres. Acha sinceramente que na Turquia e na Indonésia as mulheres exercem os mesmos direitos que em Portugal ou em Inglaterra? Acha que o facto de as mulheres serem tratadas abaixo dos camelos em N países muçulmanos não tem nada que ver com o Islão? É que da mesma maneira que as mulheres se emanciparam nos países cristãos contra os valores os valores retrógrados do cristianismo nessa matéria, o mesmo terão de fazer as mulheres nos países islâmicos. E isto parece-me uma evidência.
2. Se os muçulmanos de Barbès se podem defender porque vivem num Estado de Direito, onde é que está o perigo real da islamofobia? Isso é como que inverter o ónus da prova. Ou falamos de islamofobia por antecipação, embora o perigo real hoje seja o islamofascismo?
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