15/03/15

Os padrões de consumo de "esquerdistas"

De vez em quando surgem uma espécie de "mini-escandalos" a respeito de pessoas de esquerda que até terão um padrão de consumo de "gama alta", como o caso agora da casa do Varoufakis, ou há tempos os jantares da Raquel Varela e da Isabel Moreira; às vezes também se fala no barco do Francisco Louçã (pegando numa definição mais alargada de "esquerda", teríamos também o corte de cabelo do John Edwards).

Essas polémicas teriam alguma lógica se estivéssemos a falar de rendimentos - realmente pode ser feito um argumento de que alguém que defende uma distribuição mais igualitária da riqueza deveria dar o exemplo e começar por redistribuir o que tem "a mais" (no fundo, aplicar o imperativo categórico kantiano).

Diga-se que mesmo isso é discutível - também pode ser feito o contra-argumento que, enquanto um dado sistema existir, com as suas vantagens e desvantagens, não há razão para alguém renunciar às vantagens (continuando as desvantagens a existir); p.ex., alguém que defenda que deve haver mais impostos e mais apoios sociais deverá pagar voluntariamente a taxa de impostos que acha que deveria existir em vez da que existe realmente? Afinal, se um dia tiver um azar e baixar de classe social, vai receber os apoios sociais que existem e não os que ele acha que deveriam existir.

Eu, à partida, tendo a concordar com esta segunda posição, mas, sendo um desses esquerdistas que ganha mais que a média, isso provavelmente também é a minha condição social objetiva a afetar a minha consciência.

Mas o que se discute nestes "pseudo-escândalos" nem é isso - o que está em causa não é eles ganharem muito, é o fazerem despesas aparentemente sumptuárias. Ora, a partir do momento em que se aceita que alguém tenha um dado rendimento (e a critica nunca costuma ser dirigida ao rendimento em si, mas a um suposto estilo de vida), não se vê muito bem que objeção poderão ter às despesas que depois essa pessoa decida fazer - afinal, se se gasta 200 euros num jantar, isso apenas quer dizer deixou de gastar 200 euros noutra coisa qualquer, ou que poupou menos 200 euros; não se percebe muito bem qual o grande problema ou a suposta "hipocrisia" que vêm nisso, ainda mais que a esquerda tradicional nem sequer é grande defensora da poupança (tanto na versão social-democrata keynesiana como na versão marxista, um dos problemas apontados à desigualdade económica é, exatamente, que os ricos poupam muito, causando assim crises de super-produção).

Claro que se poderia argumentar que aqui o que se está a fazer é usar o padrão de consumo como proxy para o rendimento, e que a indignação não é pelo consumo em si, mas porque isso prova que essas pessoas têm rendimentos elevados - mas isso seria uma parvoíce: toda a gente sabe que deputados, professores ou investigadores universitários ou advogados famosos têm rendimentos acima (nalguns casos talvez mesmo muita acima) da média; veja-se o caso do Varoufakis, professor numa universidade norte-americana e ao mesmo tempo "ministro da economia" da plataforma de trocas virtuais de uma empresa de jogos de computador - é alguma novidade que ele teve rendimentos muito maiores que o grego típico? Ou seja, os que se indignaram com a casa dele e com o vinho branco e o piano, foi mesmo com a casa, com o vinho e o piano, não com os rendimentos que ele auferiu (que não seriam novidade para ninguém).

Resumo do post - a posição "pessoas de esquerda não deveriam ganhar muito" é discutível mas tem a sua lógica; já a posição "pessoas de esquerda até podem ganhar muito, mas mesmo assim deveriam consumir como se ganhassem pouco" não faz sentido nenhum.

11 comentários:

Anónimo disse...

no caso do sr. grego não é o piano ou vinho branco, é a produção, as poses, o mural onde são publicadas... ver o casal louçã numa produção para a caras...

João Vasco disse...

Acho essa crítica geralmente muito hipócrita e absurda, vinda de gente que tenta distorcer o que é que "esquerda" significa, e que quer "castigar" as pessoas de esquerda pelas ideias que tem.

Como se não bastasse, essa crítica nunca é feita a indivíduos com um estilo de vida / rendimentos igualmente "abonado", que sejam cristãos.
Afinal, o evangelho é muito claro:

«Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, e segue-me.
E o jovem, ouvindo esta palavra, retirou-se triste, porque possuía muitas propriedades.
Disse então Jesus aos seus discípulos: Em verdade vos digo que é difícil entrar um rico no reino dos céus.
E, outra vez vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus.

Mateus 19:21-24»

(Existem várias outras passagens no mesmo sentido)

Mas nunca ninguém "se indignou" pelo facto do Belmiro de Azevedo ou António Mexia ganharem balúrdios e depois irem à missa.


E ainda bem!
Mas aparentemente o Varoufakis, que nunca aderiu a nenhuma ideia tão crítica da escolha INDIVIDUAL de ser rico, e ao invés luta por um sistema diferente que presumivelmente o prejudicaria (o que é , no mínimo, altruísta) já é vítima deste ataque.

No entanto, em defesa dessa crítica absurda, só consigo encontrar uma explicação para a diferença entre "gastos" e "rendimentos": se Varoufaquis fosse um "santo" poderia ter altos rendimentos, mas dar a quase totalidade desses rendimentos para instituições de solidariedade social ou associações que lutam pelas causas em que acredita (como o Syriza), tendo um estilo de vida parco e frugal para que sobrasse mais dinheiro generosamente entregue.
Na lógica do "já que te preocupas tanto com os mais pobres e injustiçados, como é que não te sacrificas por eles?".

Anónimo disse...

Boa, Madeira, Ganda final o teu.

Os patrões deviam pagar por duas tabelas: uma habitual, para o pessoal de direita, outra má, para pessoal de esquerda.

Mal por Mal disse...

Nós temos muitos anos de atrazo em relação a estes zorbas.

Ainda o Viriato não falava latim já o Ulisses falava grego e tocava piano há muitos anos.

Nada de comparações e olhemo-nos ao espelho.

Esquerda? Direita? em grego isso são tretas!

Miguel Madeira disse...

"no caso do sr. grego não é o piano ou vinho branco, é a produção, as poses, o mural onde são publicadas"

Se é esse o argumento, ainda me parece mais disparatado - parece aquela conversa do "frequentar meios hostis ao partido".

Mas admito que há um aspeto em que se pode criticar o Varoufakis - aquela conversa de ser contra o star-system, quando parece-me que o que mais ele tem feito é cultivar a pose de estrela

Miguel Madeira disse...

"Os patrões deviam pagar por duas tabelas: uma habitual, para o pessoal de direita, outra má, para pessoal de esquerda."

Bem, se fossemos por esse raciocinio o que talvez pudesse fazer sentido era uma tabela mais diferenciada para pessoal de direita e uma mais igualitária para pessoal de esquerda - ou seja, num hospital os médicos de esquerda ganharem menos que os de direita e os auxiliares de ação médica de esquerda ganharem mais que os de direita.

iupi disse...

ontem o sr varoufakis veio mostrar 'arrependimento' não pelo que come ou bebe, mas pela produção fotográfica. o comentário não tem nenhum argumento, era simplesmente a verificação daquilo que hoje o protagonista viu. (quais meios hostis ao partido, qual carapuça, é de bom gosto/bom senso)

Anónimo disse...

O raciocíno de que "Os patrões deviam pagar por duas tabelas: uma habitual, para o pessoal de direita, outra má, para pessoal de esquerda" não é meu, mas do final do postado do Madeir:

«a posição "pessoas de esquerda não deveriam ganhar muito" é discutível mas tem a sua lógica».

Ora, tem tanta lógica como o que escreveu a seguir, «que pessoas de esquerda até podem ganhar muito, mas mesmo assim deveriam consumir como se ganhassem pouco" não faz sentido nenhum.»



Libertário disse...

Não deixa de ser curioso que certa esquerda considere normal que não haja limites éticos e de coerência a respeitar pelos que dizem defender um modelo social distinto deste capitalista.
Se essa tal esquerda, que normalmente, também defende a existência das vanguardas e burocracias revolucionárias, não vê nada de errado em que um anti-capitalista se insira na lógica consumista, no espectáculo mediático e partilhe dos hábitos, e modo de vida, das classes dominantes, já podemos prever o que eles querem. Já vimos isso no passado nas burocracias dos regimes ditos socialistas, já vimos no PT onde um ex-operário gosta de exibir o seu consumo de bebidas caras, charutos e um estilo de vida semelhante ao da elite brasileira, agora vemos estes neo-esquerdistas de trazer por casa exibir, e ter orgulho, nos seus gostos de novos ricos...
Moralismo nosso? Nada disso, o que se trata é de princípios ou pelo menos de vergonha na cara, como diz o povo.
Qual a credibilidade anti-capitalista podem ter aqueles que partilham dos gostos, valores, hábitos e modos de vida das classes dominantes?

Anónimo disse...

Isso o Libertário queria era que o pessoal de esquerda em vez de de dedicar a sua energia a querer mudar o sistema dentro do qual tem de viver

perdesse tempo a tentar sobreviver como se habitasse uma comuna anarco-sindicalista,

fabricando roupa de cânhamo,

cultivando aalimentos biológicos,

comunicando com pombos correios.

Tretas de merda e dos lobos do homem.

Libertário disse...

Este derradeiro anónimo que tudo indica dedicar «a sua energia a querer mudar o sistema» em vez de perder o seu «tempo a tentar sobreviver como se habitasse uma comuna anarco-sindicalista» é muito perspicaz pois adivinhou que eu vivo há longos anos «fabricando roupa de cânhamo, cultivando alimentos biológicos,comunicando com pombos-correios». Demonstra também conhecer profundamente a história do anarquismo e do anarco-sindicalismo, desses trabalhadores revolucionários conhecidos, nos meios de esquerda frequentados pelo nosso anónimo, como «lobos do homem».