11/04/15

Fábula



Em 1999, quando decidi passar da burocracia para a advocacia (seguindo o meu lema na vida: de malo in pejus), precisei de actualizar os meus conhecimentos em direito internacional privado e, mais precisamente, de me informar sobre o que havia sido publicado sobre a matéria em Portugal desde o tempo da minha formatura, completada quase uma década antes. Liguei para uma conhecida livraria jurídica lisboeta e falei com o competente responsável, a quem expus muito claramente o problema: eu tinha “feito” a cadeira de direito internacional privado em 1990 e sabia razoavelmente da poda até essa data, mas depois era o vazio, de maneira que precisava, não necessariamente de uma coisa exaustiva, mas do que ele vendia aos estudantes de 1999, ou daquilo que mais actualizado tivesse à mão. Que sim senhor, que ele percebia perfeitamente, que não me preocupasse, pois afinal não estava a falar para a melhor livraria jurídica do país? O direito internacional privado era precisamente uma matéria que ele conhecia de ginjeira e, por coincidência, tinha acabado de conversar com o Professor Doutor Calhau e Cunha, que estava a preparar uma edição dos principais artigos do ilustre Ferrer Correia sobre o assunto e que regressava de um congresso em Basileia sobre qualificação. Portanto a questão não podia ficar melhor entregue. Se se tratasse da última jurisprudência húngara, ele não estaria em condições de garantir nada, mas doutrina portuguesa era com ele. Antes mesmo de eu acabar de dar o número do meu cartão de crédito, havia de receber exactamente o que queria. Passei logo a encomenda. Menos de uma semana depois, recebi a edição de 1999 das Lições de Direito Internacional Privado do Professor Baptista Machado que, como descobri ao consultar a primeira página, não passavam na realidade da reimpressão de lições policopiadas datadas do ano de 1971-72. Hoje ainda, passados mais de quinze anos, recorro quotidianamente ao precioso calhamaço para amparar uma cómoda que tenho lá no quarto e que ficou manca desde a nossa última mudança. Sôfrego de entusiasmo e gratidão, corri para o telefone e preparava-me para mandar o livreiro para um sítio de que agora não me recordo, quando a Ana me lembrou que estávamos convidados a jantar no XVème arrondissement e que tínhamos que mudar de metro em La Motte Piquet Grenelle, o que demora no mínimo uma hora, de forma que era melhor eu despachar-me ou nunca chegaríamos a tempo. O agradecimento teve de ficar para mais tarde...

O jantar era em casa do meu amigo Jean L., inveterado rato de biblioteca para quem as principais salas de “reservados” da Europa são desprovidas de segredo. A história da minha amizade com esse louco furioso é longa e complicada. Digamos apenas que, naquela altura, ele tinha um passatempo engraçado: ia assistir a tudo o que havia como aula teórica de história da matemática, sentava-se no fundo da sala e intervinha duas ou três vezes para emendar calinadas em latim, ou outros erros igualmente embaraçosos. No fim da lição, chegava-se perto do professor e, respondendo à inevitável apóstrofe, dizia com simplicidade: sabe, há muito tempo que queria assistir a uma aula sua, com efeito, estou prestes a terminar o meu doutoramento, que é sobre fraude intelectual, troca de favores e corrupção na universidade francesa. O Jean recebeu-nos no seu 6° andar sans ascenseur, onde tinha conseguido desimpedir dois ou três dos trinta e cinco metros quadrados que habitava, atulhados com livros, para aprontar uma mesa e servir-nos petiscos incomparáveis, preparados com mimo pela mulher, uma simpática japonesa que tinha vindo a Paris, inicialmente, para aprender haute cuisine. Havia uma surpresa. Estava também convidado François S., eminente especialista dos cabalistas cristãos do século XVI, de quem o Jean me tinha falado inúmeras vezes. François S. fazia parte do clube selectíssimo, reduzido a dois ou três membros, de pessoas (vivas) de quem eu tinha ouvido ao meu amigo dizer que eram verdadeiros sábios. Isto explica que eu estivesse um pouco intimidado quando estendi a mão na direcção de um senhor risonho, de idade respeitável, que a recebeu com descontração. Magro, de estatura média, cabelo branco e olhos muito vivos, parecia um modesto reformado, reservado embora sem timidez, cordato sem ser obsequioso, avesso a complicações mas atencioso com todos. Era visível a parcimónia com que ia participando na conversa. Esta, como não podia deixar de ser, dirigiu-se rapidamente para os vastos campos da prosápia universitária, território onde Jean caçava o bisonte com mestria, celebrando cada tiro com uma estridente gargalhada. Cada vez que François S. era convidado a contribuir, ou simplesmente a anuir, escusava-se com voz fraca, mas segura, em frases de corte delicado, pronunciadas com aquele a propósito que lembra que a politesse francesa foi durante séculos considerada como uma das maravilhas da civilização. “Na verdade, não posso afirmar...”, “fica-te bem seres assim categórico mas, por mim, não irei tão longe...”, ou ainda “quanto a esta matéria, não me sinto verdadeiramente capaz de assegurar coisa alguma...”, etc. Havia uma espécie de contraste entre a boa disposição espalhafatosa com que o Jean nos ia convidando a encher de novo os copos, e o modo impecável com que o velho erudito mantinha o decoro, procurando evitar que este pudesse ser confundido com distância ou com soberba. à hora do café, temendo talvez que achássemos o seu hóspede demasiado apagado, Jean desafiou-o frontalmente a contar-nos o que tinha encontrado recentemente de interessante nas numerosas bibliotecas que visitava com regularidade. Sorrindo, o velho disse então, muito calmamente, o seguinte: “Bom, como sabes, já passaram dez anos desde que me aposentei, o que me libertou das minhas responsabilidades administrativas e do trabalho exigido pelo meu seminário na Ecole Pratique des Hautes Etudes. Fiquei assim com mais tempo para ir trabalhar nas bibliotecas. Recentemente, tenho frequentado a Mazarine, mas muitas outras há. Pois calcula que, desde que me reformei, não se passou uma semana sem que eu desse de chapa com um texto que me fizesse exclamar-me: Mas como é que eu só agora vejo isto! Como pude permanecer décadas sem conhecer esta peça absolutamente fundamental! Pois é, meus amigos. Dez anos. E não se passa nenhuma semana sem que isto aconteça...”

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