Em 1999, quando decidi passar da
burocracia para a advocacia (seguindo o meu lema na vida: de malo in pejus), precisei de actualizar os meus conhecimentos em
direito internacional privado e, mais precisamente, de me informar sobre o que
havia sido publicado sobre a matéria em Portugal desde o tempo da minha
formatura, completada quase uma década antes. Liguei para uma conhecida
livraria jurídica lisboeta e falei com o competente responsável, a quem expus
muito claramente o problema: eu tinha “feito” a cadeira de direito
internacional privado em 1990 e sabia razoavelmente da poda até essa data, mas
depois era o vazio, de maneira que precisava, não necessariamente de uma coisa
exaustiva, mas do que ele vendia aos estudantes de 1999, ou daquilo que mais
actualizado tivesse à mão. Que sim senhor, que ele percebia perfeitamente, que
não me preocupasse, pois afinal não estava a falar para a melhor livraria
jurídica do país? O direito internacional privado era precisamente uma matéria
que ele conhecia de ginjeira e, por coincidência, tinha acabado de conversar
com o Professor Doutor Calhau e Cunha, que estava a preparar uma edição dos
principais artigos do ilustre Ferrer Correia sobre o assunto e que regressava
de um congresso em Basileia sobre qualificação. Portanto a questão não podia
ficar melhor entregue. Se se tratasse da última jurisprudência húngara, ele não
estaria em condições de garantir nada, mas doutrina portuguesa era com ele.
Antes mesmo de eu acabar de dar o número do meu cartão de crédito, havia de receber
exactamente o que queria. Passei logo a encomenda. Menos de uma semana depois,
recebi a edição de 1999 das Lições de
Direito Internacional Privado do Professor Baptista Machado que, como
descobri ao consultar a primeira página, não passavam na realidade da
reimpressão de lições policopiadas datadas do ano de 1971-72. Hoje ainda,
passados mais de quinze anos, recorro quotidianamente ao precioso calhamaço
para amparar uma cómoda que tenho lá no quarto e que ficou manca desde a nossa
última mudança. Sôfrego de entusiasmo e gratidão, corri para o telefone e
preparava-me para mandar o livreiro para um sítio de que agora não me recordo,
quando a Ana me lembrou que estávamos convidados a jantar no XVème
arrondissement e que tínhamos que mudar de metro em La Motte Piquet Grenelle, o que demora no mínimo uma hora, de forma
que era melhor eu despachar-me ou nunca chegaríamos a tempo. O agradecimento
teve de ficar para mais tarde...
O jantar era em casa do meu
amigo Jean L., inveterado rato de biblioteca para quem as principais salas de
“reservados” da Europa são desprovidas de segredo. A história da minha amizade
com esse louco furioso é longa e complicada. Digamos apenas que, naquela
altura, ele tinha um passatempo engraçado: ia assistir a tudo o que havia como
aula teórica de história da matemática, sentava-se no fundo da sala e
intervinha duas ou três vezes para emendar calinadas em latim, ou outros erros
igualmente embaraçosos. No fim da lição, chegava-se perto do professor e,
respondendo à inevitável apóstrofe, dizia com simplicidade: sabe, há muito
tempo que queria assistir a uma aula sua, com efeito, estou prestes a terminar
o meu doutoramento, que é sobre fraude
intelectual, troca de favores e corrupção na universidade francesa. O Jean
recebeu-nos no seu 6° andar sans
ascenseur, onde tinha conseguido desimpedir dois ou três dos trinta e cinco
metros quadrados que habitava, atulhados com livros, para aprontar uma mesa e
servir-nos petiscos incomparáveis, preparados com mimo pela mulher, uma
simpática japonesa que tinha vindo a Paris, inicialmente, para aprender haute cuisine. Havia uma surpresa.
Estava também convidado François S., eminente especialista dos cabalistas
cristãos do século XVI, de quem o Jean me tinha falado inúmeras vezes. François
S. fazia parte do clube selectíssimo, reduzido a dois ou três membros, de
pessoas (vivas) de quem eu tinha ouvido ao meu amigo dizer que eram verdadeiros sábios. Isto explica que eu
estivesse um pouco intimidado quando estendi a mão na direcção de um senhor
risonho, de idade respeitável, que a recebeu com descontração. Magro, de
estatura média, cabelo branco e olhos muito vivos, parecia um modesto
reformado, reservado embora sem timidez, cordato sem ser obsequioso, avesso a
complicações mas atencioso com todos. Era visível a parcimónia com que ia
participando na conversa. Esta, como não podia deixar de ser, dirigiu-se
rapidamente para os vastos campos da prosápia universitária, território onde
Jean caçava o bisonte com mestria, celebrando cada tiro com uma estridente
gargalhada. Cada vez que François S. era convidado a contribuir, ou
simplesmente a anuir, escusava-se com voz fraca, mas segura, em frases de corte
delicado, pronunciadas com aquele a propósito que lembra que a politesse francesa foi durante séculos
considerada como uma das maravilhas da civilização. “Na verdade, não posso afirmar...”, “fica-te bem seres assim categórico mas, por mim, não irei tão longe...”,
ou ainda “quanto a esta matéria, não me
sinto verdadeiramente capaz de assegurar coisa alguma...”, etc. Havia uma
espécie de contraste entre a boa disposição espalhafatosa com que o Jean nos ia
convidando a encher de novo os copos, e o modo impecável com que o velho
erudito mantinha o decoro, procurando evitar que este pudesse ser confundido
com distância ou com soberba. à
hora do café, temendo talvez que achássemos o seu hóspede demasiado apagado,
Jean desafiou-o frontalmente a contar-nos o que tinha encontrado recentemente
de interessante nas numerosas bibliotecas que visitava com regularidade. Sorrindo,
o velho disse então, muito calmamente, o seguinte: “Bom, como sabes, já passaram dez anos desde que me aposentei, o que me
libertou das minhas responsabilidades administrativas e do trabalho exigido
pelo meu seminário na Ecole Pratique des Hautes Etudes. Fiquei assim com mais tempo para ir trabalhar nas bibliotecas.
Recentemente, tenho frequentado a Mazarine, mas muitas outras há. Pois calcula que, desde que me reformei, não se
passou uma semana sem que eu desse de chapa com um texto que me fizesse
exclamar-me: Mas como é que eu só agora vejo isto! Como pude permanecer décadas
sem conhecer esta peça absolutamente fundamental! Pois é, meus amigos. Dez
anos. E não se passa nenhuma semana sem que isto aconteça...”
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