19/10/15

Está quase, está quase.

Jornais e Televisões martelam insistentemente na mesma tecla: um governo de esquerda é uma coisa inadmissível, um regresso ao passado - para aí dos anos setenta, estimam eles - uma traição ao sentido de voto dos eleitores do PS, coitados, nunca pensaram que António Costa fizesse uma coisa assim. Costa quer destruir o PS, suspeitam eles, e criar as condições para uma maioria absoluta da direita. Coisa que lhes agradaria acima de todas as outras, não se entende porque se queixam. Pelo meio vão sempre anunciando a eminência de uma rotura nas negociações entre PS e CDU ou Bloco. O apoio a uma manifestação contra a NATO, por parte do PCP - coisa nunca dantes vista - serve ao Público como sinal do impasse e prova de que não haverá acordo. [ No Observador, José Milhazes já avisara a navegação: cuidado, o PCP ainda não renegou o Staline, o José, aquele malandro do piorio. Como é que podem ir para um Governo da CEE, perguntava o homem]
No mesmo jornal, Jorge Almeida Fernandes "analisa" os Socialistas e a "esquerda da esquerda" para reflectir sobre os "dilemas estratégicos dos partidos socialistas", na sua própria versão. Há duas ideias fortes que ressaltam do texto do jornalista: a primeira é a de que os partidos socialistas - aqui utilizados para simbolizarem a social-democracia -  são partidos cuja utilidade se mede pela possibilidade de ganharem eleições; a segunda defende que se os partidos socialistas querem permanecer como partidos de Governo, têm que assumir políticas que impedem uma união das esquerdas.

Se olharmos mais de perto veremos que estas duas ideias são apenas uma: apenas é possível aos partidos socialistas governar no quadro das democracias ocidentais, abdicando dos valores da esquerda e, sobretudo, dispondo-se a fazer mais depressa e melhor o trabalho sujo da direita, vulgo as reformas ou as mudanças necessárias. (quais? para quem? em benefício de quem?)

Em abono da primeira ideia socorre-se da eleição de Corbyn no Labour - um anacronismo para JAF e para o Público, que dedicou um lamentável editorial ao tema - que é contraposta à de Renzi em Itália. Pelos vistos, dos apoiantes de Corbyn só 10%  consideraram importante que o líder  do Labour soubesse como vencer uma eleição. Ao jornalista não lhe ocorre que, para já, Corbyn mostrou ser capaz de vencer uma eleição, mesmo num contexto muito difícil: a eleição no Labour. Uma vitória esmagadora, com um programa que, segundo os politólogos que são citados na análise,  não permite ganhar eleições, mas que para muitos outros, mesmo do tão citado Guardian, representa uma lufada de ar fresco, não só no contexto político do Reino Unido mas também Europeu. Programa que passou a ter o apoio económico de Stieglitz e Piketti, entre outros famigerados esquerdistas do século passado.
Já no caso italiano, Renzi  que ganhou as eleições, logo um socialista dos que interessam , não só ignora os valores da esquerda, como tem estado a concretizar as reformas que, nalguns casos, nem Berlusconi ousara. Um socialista na linha de Blair e da sua terceira via. Se Renzi e Valls são os exemplos em que JAF se apoia, péssimas serão as conclusões que poderá obter. Pior do que Valls, esse iluminado do socialismo francês, que queria alterar o nome do partido para o tornar mais moderno, mais aceitável, só o primeiro-secretário do seu partido que é citado como tendo dito que "(...) a grande dificuldade é voltarmos a centrarmos no tema da igualdade, quando as circunstâncias tornam impossível a redistribuição". Quais circunstâncias? esqueceram-se de perguntar.

Há nesta "análise"  uma importante falta de conteúdo. Quando se escreve que a social-democracia se tornou  "historicamente numa grande força política porque escolheu  a vocação de governar e não se acantonou numa posição tribunícia de denuncia do capitalismo", está-se a amesquinhar a história e a importância da social-democracia. Pretende-se ignorar o facto de a social-democracia ter representado, no pós-segunda guerra mundial, um projecto político, cujo triunfo significou, exactamente, a derrota das forças agora dominantes em termos europeus e mundiais. A vitória da social-democracia significou a derrota, por décadas, da mão invisível do mercado. Permitiu  a construção de algumas das sociedades mais justas, alguma vez existentes à face da Terra. Sociedades que, nalguns casos, décadas de neoliberalismo ainda não lograram implodir, como acontece nos países nórdicos. Mas, a social-democracia europeia  cometeu erros crassos, como, entre muitos outros, o de ter promovido a despolitização da sociedade e a transformação dos cidadãos em consumidores  O paradigma redistributivo que foi inicialmente um dos grandes instrumentos de promoção da justiça social - e que concitou sobre si a atenção e a critica dos libertaristas como Nozick -  tornou-se, dramaticamente, num poderoso factor de despolitização da vida do dia a dia, abrindo caminho para o reforço de relações e processos sociais que conduziram a novos e cada vez mais severos processos de dominação e opressão. O financiamento do consumo, que deu origem ao famoso endividamento, foi a forma como a social-democracia pretendeu retocar o paradigma distributivo, no contexto de uma cada vez mais crescente desigualdade na distribuição da riqueza. Foi necessário financiar o consumo para que consumidores com cada vez menos rendimentos, continuassem a consumir, gerando crescentes mais-valias a quem detinha o capital. Não se tratou de um retoque, tratou-se de uma mudança de paradigma, apenas possível pela captura dos partidos social-democratas, e dos Estados, pelos interesses de alguns poucos: os mais ricos entre todos e o sistema financeiro internacional.
Contrariamente ao que aqui escreve JAF, e ao que se escreve de forma contínua no Público, a crise da social-democracia não resulta do regresso da esquerda aos seus lugares de origem, pelo contrário. O que torna irrelevante, e mesmo trágico, o papel da social-democracia actualmente é ela insistir em percorrer um caminho sem retorno, que a afasta de qualquer ideia de justiça social, de qualquer projecto reformador da sociedade, conduzindo-a para esse lugar ao sol onde lhe estará destinada a sua última tarefa: governar a sociedade da desigualdade extrema, com um rosto vagamente humano. Para essa tarefa os Renzis e os Valls já se disponibilizaram e são bons. Há quem trema só de pensar que em Portugal o PS, sempre tão bem comportado, sempre tão responsável,  pode de repente recusar continuar a percorrer esse caminho, que tem sido o seu ao longo das últimas décadas.

PS - ao final do dia uma sondagem divulgada  no Público dava conta que a coligação já tinha subido três pontos. Magnânimos, admitem que ainda não chegaria para a maioria absoluta. Não há memória de tanta pressão no período entre uma eleição e a tomada de posse de um novo Governo.
A qualidade da democracia passa muito pela independência dos órgãos de informação. Estamos muito mal em Portugal, nesse domínio.

0 comentários: