Primeiro, uma questão terminológica - a linguagem utilizada (p.ex., "election hacking") parece destinada a criar subconscientemente a ideia de que a Rússia terá manipulado mesmo a votação ou o escrutínio (um pouco como aqueles discursos da administração Bush em que frequentemente falava do 11 de setembro e de Saddam Hussein na mesma frase), talvez entrando nas máquinas de voto eletrónico, ou coisa assim. Claro que não é nada disso que se fala - a acusação é de que a Rússia teria estado por detrás do roubo dos emails da Comissão Nacional Democrata (que revelaram que o aparelho institucional Democrata terá nas primárias apoiado Hillary contra Sanders, violando o seu suposto dever de neutralidade - estou chocado, chocado!) e depois dos de John Podesta, diretor de campanha de Hillary, onde estaria alguma informação indicativa de ligações menos claras entre Hillary e algumas das personalidades e empresas que contribuiam para a sua campanha ou para a sua fundação, e que a revelação dessa informação terá contribuído para virar alguns eleitores, levando à vitória de Trump.
Em primeiro lugar é discutível que a Rússia esteja mesmo por detrás do suposto "hacking" - há fortes razões para pensar que foram mesmo insiders do Partido Democrata (possivelmente pró-Sanders) que passaram os ficheiros à Wikileaks, não nenhum cenário de pirataria informática. Note-se que os relatórios da CIA que atribuem a fuga de informação a hackers russos baseiam-se em "causa provável" ("quem teria a ganhar com isto?"), não em provas tangíveis que teriam sido mesmo eles os autores.
Mas vamos admitir que essa história é verdadeira - portanto o crime (ou a agressão) cometido pelos russos foi exatamente o quê? Divulgar informação que contribuiu para alguns eleitores decidirem em que vão votar? Mas para que é que serve a Voice of America ou a Rádio Free Europe? Também não é para divulgar informações que gerem em que, no estrangeiro, as ouça atitudes mais favoráveis às políticas norte-americanas? Andar a espiar comunicações eletrónicas nos EUA? Mas para que serve a NSA e toda a rede denunciada por Snowden senão para espiar as comunicações eletrónicas por esse mundo fora (e que frequentemente são defendidas com o argumento "se não tens nada a esconder, não tens nada a recear")? Aqui parece-me, a acreditar na versão oficial das coisas, que a grande diferença entre essa suposta espionagem russa e a espionagem que todos os países poderosos fazem foi, em vez de guardarem segredo entre eles sobre o que descobrem, terem divulgado ao mundo o resultado dessa espionagem (nomeadamente às pessoas para quem pelos vistos essa informação seria relevante - os próprios cidadãos norte-americanos, que pelos vistos pelo menos alguns acharam que essa informação era importante para decidirem em quem votar).
[Instituição cultural destinada a divulgar o folclore dos EUA além-fronteiras]
[Versão para adultos das Olimpíadas da Matemática, em que grupos de amigos solucionam problemas com algoritmos matemáticos para ocupar os tempos livres]