30/12/16

O novo conflito EUA-Rússia

Os EUA e a Rússia estão numa maré de expulsão mútua de diplomatas, na sequência de alegações de que a Rússia teria interferido nas eleições norte-americanas.

Primeiro, uma questão terminológica - a linguagem utilizada (p.ex., "election hacking") parece destinada a criar subconscientemente a ideia de que a Rússia terá manipulado mesmo a votação ou o escrutínio (um pouco como aqueles discursos da administração Bush em que frequentemente falava do 11 de setembro e de Saddam Hussein na mesma frase), talvez entrando nas máquinas de voto eletrónico, ou coisa assim. Claro que não é nada disso que se fala - a acusação é de que a Rússia teria estado por detrás do roubo dos emails da Comissão Nacional Democrata (que revelaram que o aparelho institucional Democrata terá nas primárias apoiado Hillary contra Sanders, violando o seu suposto dever de neutralidade - estou chocado, chocado!) e depois dos de John Podesta, diretor de campanha de Hillary, onde estaria alguma informação indicativa de ligações menos claras entre Hillary e algumas das personalidades e empresas que contribuiam para a sua campanha ou para a sua fundação, e que a revelação dessa informação terá contribuído para virar alguns eleitores, levando à vitória de Trump.

Em primeiro lugar é discutível que a Rússia esteja mesmo por detrás do suposto "hacking" - há fortes razões para pensar que foram mesmo insiders do Partido Democrata (possivelmente pró-Sanders) que passaram os ficheiros à Wikileaks, não nenhum cenário de pirataria informática. Note-se que os relatórios da CIA que atribuem a fuga de informação a hackers russos baseiam-se em "causa provável" ("quem teria a ganhar com isto?"), não em provas tangíveis que teriam sido mesmo eles os autores.

Mas vamos admitir que essa história é verdadeira - portanto o crime (ou a agressão) cometido pelos russos foi exatamente o quê? Divulgar informação que contribuiu para alguns eleitores decidirem em que vão votar? Mas para que é que serve a Voice of America ou a Rádio Free Europe? Também não é para divulgar informações que gerem em que, no estrangeiro, as ouça atitudes mais favoráveis às políticas norte-americanas? Andar a espiar comunicações eletrónicas nos EUA? Mas para que serve a NSA e toda a rede denunciada por Snowden senão para espiar as comunicações eletrónicas por esse mundo fora (e que frequentemente são defendidas com o argumento "se não tens nada a esconder, não tens nada a recear")? Aqui parece-me, a acreditar na versão oficial das coisas, que a grande diferença entre essa suposta espionagem russa e a espionagem que todos os países poderosos fazem foi, em vez de guardarem segredo entre eles sobre o que descobrem, terem divulgado ao mundo o resultado dessa espionagem (nomeadamente às pessoas para quem pelos vistos essa informação seria relevante - os próprios cidadãos norte-americanos, que pelos vistos pelo menos alguns acharam que essa informação era importante para decidirem em quem votar).

[Instituição cultural destinada a divulgar o folclore dos EUA além-fronteiras]


[Versão para adultos das Olimpíadas da Matemática, em que grupos de amigos solucionam problemas com algoritmos matemáticos para ocupar os tempos livres]

Amanhã

O documentário Amanhã (Demain, no original) foi exibido na passada segunda-feira, dia 26 de Dezembro, na RTP1, com início às 21h54m. Pode ainda ser visionado através do RTPplay no prazo duma semana a contar da sua exibição. É um excelente documentário, muito bem construído, que procura informar sobre múltiplas ameaças à humanidade, e em particular aos sistemas sociais e económicos em vigor no designado "mundo desenvolvido", ao mesmo tempo que tenta demonstrar que existem meios para evitar essas ameaças, através da implementação de sistemas políticos, sociais e económicos alternativos.

28/12/16

Podemos. Lutas intestinas.

São já recorrentes os problemas no Podemos entre  Pablo Iglesias e outros dirigentes. Desta vez o "inimigo" é o líder parlamentar, e segunda figura mais destacada do Podemos, Íñigo Errejón, a entrar em colisão com Iglesias. Esta clivagem está a provocar divisões internas e o afastamento de dirigentes numa lógica que enfraquece o projecto politico. Parece que a proximidade do poder faz mal a Iglesias. Ou será que a proximidade do poder apenas permite deixar mais a nu quais são afinal as verdadeiras convicções democráticas do líder do Podemos? Iglesias veio a público demarcar-se de uma campanha que nas redes sociais elegia o seu opositor como alvo.
Parece indiscutível que a lógica do debate democrático e do combate politico está a ser secundarizada pela cultura dos egos. Rajoy pode dormir descansado.

27/12/16

Liberdade, leis e opressão social

Ainda a respeito da polémica desencadeada por Ricardo Araújo Pereira, André Azevedo Alves argumenta no Observador que "[n]os dias que correm, defender a liberdade implica, cada vez mais, resistir à ofensiva do poderoso lobby LGBT. (...) Um bom exemplo desse ódio foram as reacções contra declarações do insuspeito Ricardo Araújo Pereira, em que este se terá queixado da crescente opressão do politicamente correcto nestes domínios".

Mas vamos lá ver - ao que me parece, o RAP não se queixou que fosse proibido (legalmente) fazer piadas a falar de mariconços (ou de coxos), mas sim que haveria um ambiente de pressão social que tornaria impossível ou muito difícil fazer isso. Da mesma maneira, nenhum dos comentadores (dos que eu li) que criticou RAP disse que deveria ser ilegal fazer anedotas que pudessem ser vistas como homofóbicas, apenas que os humoristas deveriam abster-se de o fazer (mesmo a Isabel Moreira, abertamente, foi isso que disse,  apesar das implicações mais ambíguas que se possam ver no texto dela).

Na mesma linha, a maior parte dos comentários feitos no post do Facebook de Miguel Vale de Almeida criticando o artigo de AAA (que AAA recomenda a leitura como ilustração prática da sua tese) são bastante violentos (inclusive dizendo que o Observador não devia publicar aqueles artigos), mas parece-me que só dois ou três falam em fazer queixa às autoridades.

Claro que isso levanta uma questão (que, na minha opinião, deveria ser mais discutida do que tem sido nestas polémicas sobre o "politicamente correto") - até que ponto um ambiente de pressão social generalizada não poderá ser quase tão opressivo como as leis do Estado (ou talvez até mais - afinal, não é raro que quando uma coisa seja proibida por lei mas não seja alvo de sanção social, a lei acabe na prática por ser ignorada: como aquela taxa que nos anos 80 se pagava pela televisão ou conduzir a mais 10 kms que o limite de velocidade; mesmo a proibição do aborto ou do consumo de haxixe - quando eram crimes - andavam perto disso, só ocasionalmente dando origem a processos)?

A respeito disso, Henry David Thoreau escrevia, n'A Vida sem Principio:
Mesmo admitindo que o norte-americano tenha se livrado do tirano político, ele ainda é escravo de um tirano económico e moral (...). Não consideramos este país a terra dos homens livres? Que significa ser livre do poder do rei Jorge e continuar escravo do rei Preconceito ?
Ou John Stuart Mill, em On Liberty:
Like other tyrannies, the tyranny of the majority was at first, and is still vulgarly, held in dread, chiefly as operating through the acts of the public authorities. But reflecting persons perceived that when society is itself the tyrant — society collectively over the separate individuals who compose it — its means of tyrannizing are not restricted to the acts which it may do by the hands of its political functionaries. Society can and does execute its own mandates; and if it issues wrong mandates instead of right, or any mandates at all in things with which it ought not to meddle, it practices a social tyranny more formidable than many kinds of political oppression, since, though not usually upheld by such extreme penalties, it leaves fewer means of escape, penetrating much more deeply into the details of life, and enslaving the soul itself. Protection, therefore, against the tyranny of the magistrate is not enough; there needs protection also against the tyranny of the prevailing opinion and feeling, against the tendency of society to impose, by other means than civil penalties, its own ideas and practices as rules of conduct on those who dissent from them; to fetter the development and, if possible, prevent the formation of any individuality not in harmony with its ways, and compel all characters to fashion themselves upon the model of its own. There is a limit to the legitimate interference of collective opinion with individual independence; and to find that limit, and maintain it against encroachment, is as indispensable to a good condition of human affairs as protection against political despotism.
Mas, a ser assim, acho que temos uma curiosa inversão dos alinhamentos tradicionais: usualmente era a esquerda que dizia que, mesmo que possa haver liberdade legal, o peso das tradições sociais e/ou da dependência económica (p.ex., o risco de ser despedido) pode limitar grandemente essa suposta liberdade (creio que era isso que consistiam as teses da Escola de Frankfurt e afins sobre "personalidade autoritária", "tolerância repressiva", "unidimensionalidade", etc.); já à direita é que era mais frequente dizer-se que desde que o Estado não te proíba, és livre (à partida diria que essa posição vinha acima de tudo dos liberais socialmente conservadores - que pretendem uma combinação de Estado não-intervencionista com uma sociedade em que os "valores tradicionais" sejam predominantes; já entre liberais socialmente "progressistas" - a começar talvez pelo Thoreau e o Mill e a acabar em muitos auto-proclamados "liberais espessos" - é mais comum a ideia de que as convenções sociais também podem ser opressivas; quanto a conservadores não-liberais, penso que não perdem muito tempo a discutir sobre se as convenções sociais são ou não restritivas da liberdade - suponho que o raciocinio deles seja algo "e se forem?"). Mas nas polémicas sobre o "politicamente correto" parece-me ser mais frequente ser a direita (e/ou os conservadores culturais, o que não é exatamente a mesma coisa) a queixar-se da alegada "tirania do politicamente correto" (mesmo, parece-me, em situações em que essa suposta "tirania" não vem do Estado), e cada vez mais se vê a esquerda a argumentar que desde que não haja nenhuma proibição oficial de dizer isto ou aquilo, não há problema nenhum (ou será que é exatamente por isso que esta questão da "pressão social" não é tão discutida como eu acho que deveria ser? Porque nenhum dos lados se sente confortável em evidenciar esta contradição?)

[Já agora, a respeito de aparentes trocas de posição, recomendo o texto Brendan Eich and the New Moral Majority, por William Saleton, na Slate, sobre a demissão mais ou menos forçada de Brendan Eich de CEO da Mozilla, depois de se saber que ele tinha doado dinheiro para uma campanha para abolir o casamento homossexual; o autor afirma que os argumentos usados para pressionar Eich a se demitir foram os mesmos que durante décadas foram usados para justificar o despedimento de homossexuais: "ele não se integra", "os clientes e os outros empregados não se sentem à vontade", etc.]

Agora, acho que há duas questões (pelo menos) que se podem levantar acerca disso:

Primeiro, será possível uma situação em que há censura social mas não restrições legais? Ou será que, a partir do momento em que, numa dada sociedade, um dado comportamento (como a homossexualidade ou a homofobia) é socialmente repudiado, é uma questão de tempo até surgirem leis contra esse comportamento?

Segundo, será possível uma situação sem censura social, ou será que a diminuição da censura social sobre uma coisa está forçosamente ligada a mais censura social sobre outra (isto é, combater a censura social contra X implica praticar censura social contra Z)?

Para explicar melhor o que quero dizer, vamos pensar num exemplo que não corresponda a divisão ideológica no mundo real (para pudermos refletir objetivamente no assunto, sem sermos influenciados por clubismos políticos) - p.ex., usar óculos modelo aviador (ou então, para referir algo que foi realmente atacado há uns meses, cargo shorts - como é que isto se diz em português?).

Vamos imaginar que existia um ambiente de censura social generalizada contra o uso de óculos modelo aviador, que era opinião generalizada, frequentemente repetida em todo o sítio, que eram uns foleiros, que viviam mentalmente no princípio dos anos 80, que eram serial killers em potência, que nos lugares que que é "reservado o direito de admissão" eram impedidos de entrar, que nas entrevistas de emprego quem usasse esses óculos era imediatamente posto de parte, etc. e que era frequente alguém que usasse esses óculos, quando finalmente arranjasse um emprego, ser praticamente obrigado pelas colegas de trabalho (via sessões diárias de "quando é que mudas de óculos?") a mudar de óculos.

Agora vamos imaginar que, finalmente, um grupo de utilizadores desses óculos e de "aliados" decidem que é tempo de contra-atacar - consistindo esse contra ataque em artigos indignados nas redes sociais sempre que alguém escreve ou diz qualquer coisa contra os óculos modelo aviador, boicotes e listas negras contra as empresas que discriminam pessoas por usarem óculos modelo aviador, e provavelmente criando as palavras "oculosdeaviadorofóbico" e "imagengista" para designar os seus adversários (e, já que estamos numa de boicotes, boicotando os meios de comunicação que propagam a oculosdeaviadorofobia).

Face a esse contra-ataque, alguns poderiam queixar-se "já não se pode dizer nada"; mas essa perseguição (e repito que estou falando apenas de perseguição ao nível da sociedade civil, não de leis) aos oculosdeaviadorofóbicos teria por objetivo, exatamente, contrariar uma situação em que "já não se pode usar os óculos de que se gosta".

O Estado Controlador


A quarta edição da revista do colectivo ROAR foi recentemente publicada. Dedicada ao crescente reforço do autoritarismo exercido pelo Estado, bem como às formas de resistência que se lhe opôem, "State of Control", inclui os artigos:

Managing Disorder, Jerome Roos
Authoritarian Neoliberalism and the Myth of Free Markets, Ian Bruff
The Concept of the Wall, Elliot Sperber
The Drone Assassination Assault on Democracy, Laurie Calhoun
The New Merchants of Death, Jeremy Kuzmarov
The Dog-Whistle Racism of the Neoliberal State, Adam Elliot-Cooper
Mass Surveillance and “Smart Totalitarianism”, Chris Spannos
Algorithmic Control and the Revolution of Desire, Alfie Bown
Neoliberalism’s Crumbling Democratic Façade, Joris Leverink
Black Awakening, Class Rebellion, Keeanga-Yamahtta Taylor and George Ciccariello-Maher

Neste momento já estão disponíveis online 2 artigos. Os restantes serão disponibilizados ao longo das próximas semanas.

25/12/16

Uma pontada de radicalismo natalício?

O cardeal Patriarca veio chamar a atenção do seu povo para as condições do acesso à habitação. Mas, mais do que um simples alerta, o cardeal defendeu a necessidade de uma verdadeira politica de habitação. Que outro sentido poderemos atribuir à declaração de que são necessárias politicas consequentes que garantam habitação para todos?
O senhor cardeal patriarca saberá as razões porque fez este apelo e neste tom. Bastar-lhe-ia apelar ao cumprimento da Constituição, ao cumprimento do desgraçado e ignorado artigo 65º. Mas, saberá ele, melhor do que muitos, que a Constituição existe, infelizmente, para ser muitas vezes violada e ignorada e, no caso específico do direito à habitação, para ser desde quase sempre tratada como letra morta. Ou talvez optar por  pedir uma Lei de Bases da Habitação, que parece estar a entrar na ordem do dia. Coisa para demorar anos e não aborrecer ninguém assim de imediato.
Podemos talvez admitir que este apelo poderá ser entendido como uma cedência do cardeal a uma visão radical do papel do Estado na economia e do Estado como garante do respeito pelos direitos humanos - urbanos e sociais  - dos cidadãos. Uma pontada de radicalismo natalício.
Talvez não seja bem assim. Talvez o apelo se destine a conquistar um conjunto alargado de boas vontades, que todas juntas, daqui para a frente, possam ajudar a melhorar a situação dos que não tem habitação. No Natal há sempre apelos destes, a propósito disto e daquilo, e mesmo sem que pareça existir algum pretexto que os justifique.
Bom, mas o Cardeal disse o que disse e como falou de politicas, será caso para dizer que falou no tom acertado, já que isto não vai com boas vontades e espírito natalício, necessita de politicas e da intervenção do Estado.
Há uma correlação evidente entre a pobreza e o acesso à habitação, sobretudo em sociedades como a portuguesa, marcada por um liberalismo radical no que se refere às politicas sociais. Sobretudo os jovens e os mais idosos são vitimas violentas dessa correlação. Apesar das mudanças politicas verificadas recentemente  os anos da Troika aumentaram muito a desigualdade e fizeram muitos milhares ficarem sem casa. Há hoje  mais gente a viver em condições degradantes de habitação, se compararmos com o que se passava em 2011. Muitas casas vazias e muitos milhares de famílias sem casa. Mas isso só saberemos no Censo de 2021. Temos tempo.
O cardeal fala, por isso, com o sentido da urgência e terá informação sobre a dimensão real do problema. A pobreza é uma situação muito instável, agrava-se de forma muito repentina. Infelizmente atenuá-la exige muito mais meios e vontades, sobretudo vontade politica, e leva mais tempo.
A politica que tem sido seguida em Portugal e em parte considerável da União Europeia - embora aí existam substanciais diferenças entre países, normalmente não reconhecidas - é contrária ao apelo que D.Manuel Clemente faz. Assumiu-se desde  meados dos anos oitenta - com o advento do neoliberalismo - que o Mercado resolvia o problema do direito à habitação e que o Estado devia não só afastar-se de qualquer iniciativa nesse sentido, como poupar o dinheiro que nessa politica social quisesse investir.
O Mercado - quer dizer os promotores e a banca e os especuladores financeiros - iria tratar do problema e no final - no famigerado longo prazo que, como sabemos desde Keynes, nunca chega -  todos seriam não só proprietários das suas casas, como muito mais prósperos e felizes. Viveríamos todos melhor.
As coisas não se passaram assim. Mas para perceber como esta mudança na intervenção do Estado foi defendida utilizando até a  terminologia dos que são a favor de maior justiça social e espacial, nada melhor do que recorrer a um pequeno excerto de um texto de David Harvey, publicado no seu livro de 2012, "Rebel Cities", mais exactamente no capítulo cujo título é " The Urban Roots of Capitalist Crisis". Cheira-me que o senhor Cardeal iria gostar de o ler.

 "(...)Since the mid 1980´s, neoliberal urban policy (applied, for example, across the European Union) concluded that redistributing wealth to less advantaged neighborhoods, cities and regions was futile, and that resources should instead be channeled to dynamic “entrepreneurial” growth poles.(...)"


(Desde meados dos anos 80, a política urbana neoliberal (aplicada, por exemplo, em toda a União Europeia) concluiu que a redistribuição da riqueza em bairros, cidades e regiões menos favorecidas era fútil e que os recursos deveriam alternativamente ser canalizados para pólos de crescimento dinâmicos  e "empreendedores")



 "(...(A spatial version of “trickle-down” would then, in the proverbial long run (which never comes), take care of all those pesky regional, spatial and urban inequalities. Turning the city over to the developers and speculative financiers redounds to the benefit of all.(...)"

(Uma versão espacial do "trickle-down" deveria, então, no proverbial longo prazo (que nunca chega), cuidar de todas essas desagradáveis desigualdades regionais, espaciais e urbanas. Entregar a cidade aos promotores e especuladores financeiros reverte em benefício de todos).

23/12/16

A liberdade de expressão é de esquerda?

A Isabel Moreira e a Maria João Marques parecem concordar que a liberdade de expressão não é de esquerda.

Será verdade (e deixando de lado a peculiar definição, ou de "liberdade", ou de "autocontenção" da Isabel Moreira)?

Em Portugal não sei se há estudos sobre o assunto, mas a respeito dos EUA, onde essas questões são regularmente estudadas (através de inquéritos como o General Social Survey), parece que os inquiridos que se declaram "liberals" são sistematicamente mais pró-liberdade expressão (medida desta maneira - não defenderem que nenhum destes livros sejam excluidos duma biblioteca pública ou escolar: um livro de um religioso muçulmano atacando os EUA, um livro defendendo a implantação de uma ditadura militar, um livro a favor da homossexualidade, um livro contra a religião e um livro dizendo que os negros são inferiores) do que os que se declaram "conservatives"):

22/12/16

O Google e o Holocausto

Na ultima semana, eclodiu uma espécie de micro-escândalo porque clicar no Google "Did the Holocaut Happen" dava uma lista de links que tinha em primeiro lugar um link para um site neo-nazi dizendo que o Holocausto não tinha existido (digo "micro" porque ninguém ligou a isso, mas os que ligaram trataram o assunto como um escândalo).

Num site português que deu azo ao tal "escândalo" até vieram com uma conversa um bocado absurda a queixar-se de que a primeira resposta que o Google dava à pergunta "Did the Holocaut Happen" era um link negando o Holocausto. Eu digo que a conversa é absurda por uma razão - o Google não é o Quora, ou a secção de perguntas do Yahoo; o Google não dá "resposta" a perguntas - o Google é um motor de busca, que indica sites que contenham as palavras indicadas no campo de pesquisa; se o tal site neo-nazi tem efetivamente as palavras pesquisados, os resultados do Google são exatamente o que o utilizador estava a pedir - sites com as palavras "Did", "the", "Holocaust" e "Happen" (talvez o utilizador não tenha consciência do que está a pedir, e julgue que está a obter a resposta a uma pergunta - a mania que noto que alguns utilizadores têm de preencher o campo de pesquisa com uma pergunta formulada em "linguagem natural" levanta efetivamente essa suspeita - mas os utilizadores também têm que ter um mínimo de noção do que estão a fazer - se alguém vai a uma loja de ferramentas comprar pastéis de nata...).

Entretanto, parece que o Google fez qualquer coisa para que esse site deixasse de aparecer em primeiro; para as pessoas que se calhar estejam contentes com isso, pensem nas implicações: quanto mais a ordem dos resultados nas buscas do Google derivar de decisões humanas (vamos por este site para cima, vamos por aquele para baixo...) e menos de um algoritmo matemático funcionando automaticamente, mais poder tem que controle o Google para controlar aquilo que nós lemos ou deixamos de ler.

É verdade que se pode argumentar que o Google já tem esse poder - afinal, nenhum de nós sabe verdadeiramente se o motor de busca realmente segue o tal algoritmo (que é, creio, parcialmente secreto), pelo que já podem estar perfeitamente a dar-nos resultados pré-fabricados às pesquisas que fazemos, nomeadamente sobre assuntos que possam ser considerados sensíveis. Mas creio o Google começar a fazer isso abertamente em certos casos aumenta a possibilidade de uma manipulação generalizada - quando a manipulação é secreta, há sempre um certo cuidado de se evitar que se saiba (inclusive por via de whistleblowers), e portanto uma tendência para a fazer em dose reduzida; a partir do momento em que se admite que há uma ponderação humana na ordenação dos resultados, essa barreira psicológica, chamemos-lhe assim, desaparece.

Já agora, uma coisa que já há muito me irrita no Google: quando eu faço uma pesquisa sobre, digamos, AAAA, BBBB e CCCC, e aparecem-me entre os resultados links que referem só AAAA e CCCC (indicado que BBBB não é referido nesse site), obrigando-me a por BBBB entre aspas para ter mesmo só resultados em que BBBB apareça - vamos lá ver, se eu pesquisei pelas três palavras, é porque quero resultados com essas três palavras, não é? Não têm que me dar resultados só com duas e obrigarem-me a truques para ter os resultados que quero.

19/12/16

O Colégio Eleitoral norte-americano

Hoje o Colégio Eleitoral eleito a 8 de novembro provavelmente (isto é, com para aí 99,999% de probabilidade) irá eleger Donald Trump presidente dos EUA.

Os Democratas poderiam aproveitar para atacar a instituição do Colégio Eleitoral, referir que foi criado com o objetivo explicito de retirar poder ao povo e dá-lo a elites, que historicamente tem sempre beneficiado os Republicanos, e relembrar os "anti-federalistas" que diziam que reduzir os "direitos sagrados" da humanidade ao de serem "eleitores de eleitores" era abrir caminho para o presidente se tornar um ditador.

Em vez disso, preferem (bem, pelo menos alguns) fazer o contrário - elogiar o papel do Colégio Eleitoral como protetor da República contra "demagogos", elogiar a "sabedoria" dos "fundadores" (a começar pelo arqui-reacionário Alexander Hamilton, o inventor do Colégio Eleitoral, e que, entre outras coisas, também queria que o presidente fosse vitalício), dizer que é exatamente para anular o voto dos eleitores que o Colégio existe, e criticar Trump, não por não ter sido eleito democraticamente, mas com argumentos puramente pessoais (de que não é "qualificado" para ser presidente) ou McCarthystas (de que terá tido apoio dos russos).

Não que eu discorde de uma campanha para pressionar o Colégio Eleitoral a dar a vitória a Hillary (embora ache que faria mais sentido se não fosse uma oposição ao Colégio descoberta só no dia 9 de novembro de manhã) - discordo é dos argumentos, que deviam ser ao contrário do que são: em vez de "o Colégio Eleitoral tem a responsabilidade de impedir um demagogo não qualificado de subir ao poder; foi para isso que os Fundadores o criaram" deveria ser "o Colégio Eleitoral não deveria existir e provavelmente nunca seria criado se os Fundadores soubessem como iria funcionar; portanto o melhor que têm a fazer é, enquanto não se acaba com essa instituição dos tempos da escravatura, vocês fazerem de conta que não existem e darem automaticamente a presidência à candidata que o povo preferiu para a presidência".

Mas alguns Democratas parecem empenhados em dar razão ao slogan Republicano dos "liberais elitistas que desprezam as pessoas comuns"...

Nota - antes que alguém me venha dizer que Portugal também é governado por quem ficou em segundo lugar nas eleições, recordo que o governo teve - nas moções sobre o programa  de governo e nos orçamentos - o voto favorável de partidos que representam a maioria do eleitorado português; fazendo uma analogia com as presidenciais norte-americanas, seria como se Trump fosse eleito numa segunda volta (ou num Colégio Eleitoral em que os "grandes eleitores" fossem distribuidos proporcionalmente pelas várias candidaturas) com o apoio dos outros candidatos da direita (Gary Johnson, Ewan McMullin e Darrel Castle), ou pelo menos dos seus eleitores. Até era possível que isso acontecesse se os EUA tivessem um sistema de eleição direta a duas voltas, mas não foi o que aconteceu, logo comparações com o caso português são descabidas.

Stiglitz sobre as propostas de Trump. Da grande mentira nazi à economia voodoo.

Foi hoje publicado no The Guardian um artigo de Joseph Stiglitz sobre aquilo que poderá ser a governação de Trump.
O artigo, como todos os do autor, dispensa explicações, mas tem o mérito suplementar de não ignorar o contexto em que a vitória de Trump aconteceu e de ser suficientemente pormenorizado na análise de algumas medidas que, entretanto, já foram  propagandeadas como exemplos de que "Trump cumpre as promessas que fez".
Em primeiro lugar Trump não ganhou as eleições. Recebeu menos 2,8 milhões de votos do que Hillary. É o segundo Presidente Republicano que beneficia do sistema eleitoral americano para, contra a vontade maioritária da população, ascender à presidência. A economia que Trump recebe, como Stiglitz esclarece, é uma economia muito melhor  do que a que Obama recebeu de Bush. Um desemprego inferior a 5% e uma taxa de crescimento superior a 3,2%, algo que não fornece o quadro social que o voto em Trump representaria, a fazer fé mesmo nalguma esquerda.
As politicas sociais que Obama pretendeu implementar - e o actual presidente ficou muito aquém do que prometeu, sobretudo na forma como não foi capaz de enfrentar a desigualdade crescente - foram sistematicamente barradas pelos republicanos. Trump beneficia do mal que ajudou a semear, através dos seus apoiantes republicanos.
No que se refere às politicas que visam impedir a deslocalização das empresas e por essa via anular os efeitos da globalização, Trump coleciona já uma vitória .... nos média. O caso da Carrier, empresa que fabrica aquecedores e aparelhos de ar-condicionado, que recuou na intenção de se deslocalizar garantindo a manutenção de 800 postos de trabalho. O telejornal da RTP1 exibiu esta acção como o tipo de politicas que ajuda a perceber o voto dos americanos. Stiglitz explica que esta acção de Trump irá ser financiada com 7 milhões de euros dos  impostos dos americanos e que a Carrier ira, apesar disso ,deslocalizar 1300 postos de trabalho para o México.
Stiglitz compara o programa de Trump a economia voodoo, já que pretende investir em infraestruturas, baixar os impostos e reduzir o défice. O problema de Trump é que na sua vida empresarial acumularam-se as falências e os projectos falhados. Desses falhanços poucas consequências lhe advieram, mercê de uma invulgar capacidade para fugir aos fisco e para aligeirar responsabilidades. Mas, nesta altura, a "empresa" é a América, e os americanos são os seus accionistas. Mais cedo do que tarde os seus eleitores do Rust Belt perceberão o logro em que cairam. Afinal Trump, como refere Stiglitz,  limitou-se a recorrer a técnicas propagandísticas que seem worthy of Nazi Germany’s “big lie” propagandists. 
Pois foi.

18/12/16

Isabel Moreira e liberdade de expressão

Isabel Moreira, no Expresso, escreve algo que penso ter a ver com a polémica que surgiu com o Ricardo Araújo Pereira.

Em primeiro lugar, aquela conversa de que "a direita tem no seu património a liberdade como valor absoluto ou, de certeza, como valor que se sobrepõe aos demais, como o da igualdade" parece-me um disparate (e já o achava quando nas aulas de filosofia do 11º ano discutíamos com o nosso professor qual era a diferença entre a esquerda e a direita e a questão da igualdade vs. liberdade) - desde quando Bonald, De Maistre, Maurras, Dostoievski, Bismarck, Le Play, Donoso Cortés, etc., etc. (incluindo nomes que Isabel Moreira até conhecerá melhor que eu) alguma vez defenderam a liberdade como valor absoluto (ou mesmo não-absoluto)? E nem sequer é uma questão de poder haver exceções - os políticos e pensadores que referi foram largamente o mainstream da direita da Europa continental, durante muito tempo, o liberalismo é que é a exceção. Mesmo no mundo anglo-saxónico, em que a direita é supostamente mais "liberal", não penso que digamos, um Alexander Hamilton, um Coleridge, um Thomas Carlyle, um cardeal Newman, um Disraeli, um T.S. Eliot, etc. etc. fossem particularmente "liberais".

É verdade que, sobretudo a partir dos anos 80 do século XX, o discurso liberal começou a ser bastante popular à direita (ainda que frequentemente apenas nas matérias económicas), mas se tem havido algo claro nos últimos anos tem sido uma ressureição de uma direita claramente anti-liberal (veja-se Donald Trump nos EUA, o Fidesz na Hungria, a Lei e Justiça na Polónia... mesmo Theresa May no Reino Unido pode ser vista como uma versão soft dessa vaga), remetendo o liberalismo de volta ao que talvez seja a sua insignificância natural.

Mas após este aparte, vamos ao meu ponto principal:
Se achas mesmo que a liberdade de expressão não deve ter limites e que não devemos ceder à autocontenção do discurso, és de direita, sabias?

Tens todo o direito a isso. Só não te apresentes como pertencendo a um campo ideológico incompatível com o que dizes (sem freios), pode ser?
O problema de todo este ponto é que, aqui Isabel Moreira, apesar de tudo, parece aceitar a ideia de que autocontenção significa reduzir a liberdade de expressão (o que, aliás, parecia recusar no parágrafo anterior - "Quando decido não perpetuar anedotas sobre deficientes, quando decido parar a cadeia histórica de repetição das palavras que são a tradução dos insultos dirigidos às mulheres ou aos homossexuais, estou a exercer a minha liberdade de expressão negativa, estou a escolher – e aí reside a grandeza da minha liberdade – não contribuir pela linguagem para a desigualdade e para a discriminação.") - ora, é tão liberdade de expressão alguém contar anedotas sobre deficientes como decidir não as contar, e no caso de as decidir contar, também é liberdade de expressão se toda a gente lhe cair em cima a insultá-lo nas "redes sociais".  Ou seja, em vez de discutir esta questão em termos de liberdade de expressão, em muitos aspetos ela seria melhor discutida em termos de "tu tens a tua liberdade de expressão, e eu tenha também a minha".

16/12/16

Sondagens. Crónica de um destino anunciado

O PS reforça paulatinamente a sua influência e aproxima-se da maioria absoluta. Ainda há por aí muita gente que defende que será impossível chegar a esse resultado. Não é, e não vai ser. Está à vista de toda a gente que é o PS que está a capitalizar a maioria dos votos que se devem aos benefícios que os portugueses atribuem ao "governo da geringonça". Não podia ser de outra maneira. Quanto melhor for o resultado obtido pela governação tanto melhor será o resultado do PS e tão mais pequeno será o resultado que juntos PCP e BE somarão.Tal como dois corpos não ocuparão o mesmo espaço ao mesmo tempo, uma pessoa não poderá votar em dois partidos ao mesmo tempo.  Isto podia ser diferente? Podia, caso esses partidos tivessem optado por participar na governação assumindo que as suas posições relativamente à Europa não é impeditiva de o fazer. Neste caso a posição do PCP é compreensível, tão militante tem sido a sua posição relativamente ao projecto europeu e ao euro. Mas, radica nesta posição, o seu progressivo isolamento e a sua perda de influência eleitoral e politica. Que leva tempo mas parece marcada pela inexorabilidade. Infelizmente. No caso do BE tratou-se apenas de uma clara divergência entre a liderança politica e o seu eleitorado. Não foi a primeira vez nem será a última. O BE é no essencial um partido parlamentar e aquilo que se decide nos gabinetes do parlamento é que conta, e aquilo que algumas pessoas possam pensar pelo país fora é uma irrelevância. Infelizmente.
Paradoxalmente esta experiência de governação apoiada pelas esquerdas transforma-se num instrumento que parece representar uma segunda vida para os partidos que, por força do seu comprometimento com a austeridade, estavam a correr o risco de se desintegrarem, como aconteceu e acontece com os partidos socialistas europeus.
Não participar no Governo, ser incapaz de ter um maior peso na definição das politicas do dia a dia, na gestão do quadro comunitário, ser incapaz de mostrar capacidade para exercer a governação nas diversas áreas, conduz inevitavelmente à perda de influência porque traduz uma falta de influência nada proporcional  ao peso eleitoral obtido.
Há um dado novo que jogará a favor do PS. As autárquicas. Contrariamente ao que os comentadores do mainstream estão nesta altura a verbalizar, a história desta vez não será como habitualmente. O PS irá experimentar uma importante vitória nas autárquicas. Porquê? Porque as pessoas estão satisfeitas com a governação e porque desta vez não há razões para penalizar o partido do governo. O PS irá reforçar a sua liderança da Associação dos Municípios, ganhará as principais cidades incluindo Lisboa e Porto, por interposto independente, contando com o apoio do CDS e tudo.
O PS sairá das autárquicas reforçado,  com um PSD esfrangalhado, um CDS pequenino qb e um PCP confinado ao seu universo regional. O BE mais uma vez mostrará que não está virado para essas andanças, sentindo-se mais confortável nos gabinetes de S.Bento.
Dito isto o que irá acontecer à politica do Governo? Irá manter um delicado compromisso entre a sua obediência à Europa e q vontade de aligeirar a pressão sobre os mais desfavorecidos. Irá continuar a cobrar internamente os sacríficios  que a cegueira europeia nos impõe e, caso isso obrigue a dispensar os parceiros, fa-lo-á sem qualquer remorso. Irá continuar a diminuir o investimento público e a canalizar cada vez mais recursos para pagar o serviço da divida. O dinheiro não é elástico, trata-se de um recurso finito e a nossa economia é cronicamente deficitária.  Até que as condições externas se alterem correrá tudo bem. Os portugueses recuperarão parte do rendimento que lhes foi sacado pela Troika e viverão ligeiramente melhor. Na próxima crise recuarão para níveis de décadas atrás. A dinâmica instalada na sciedade portuguesa é esta. Quem está no Governo, se quiser, dificilmente poderá alterar o seu curso mas estando fora ficar-se-á pela retórica.





13/12/16

Habitação. Agora Sim.

A coroar este conjunto de pequenos posts sobre a Habitação e completando um pequeno "tríptico digital" nada melhor do que o "Movimento Perpétuo" dos Deolinda. Trata-se afinal do perpétuo movimento que deixa tudo na mesma.


Habitação. Sai uma Lei de Bases.

A entrevista da relatora da ONU arrastou uma outra noticia relacionada com a habitação. Vai ser elaborada uma Lei de Bases da Habitação. Quem o assegura é a deputada Helena Roseta, que segundo o jornal está a preparar a Lei.
Portugal aprovou em 2014 a  nova Lei de Bases Gerais da Politica Pública de Solos, do Ordenamento do Território e do Urbanismo. Aprovou depois disso o novo Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial. A habitação é um tema omisso em todos eles, particularmente na Lei de Bases Gerais. Optou-se por deixar ao Mercado aquilo que é do Mercado, a hábil e lucrativa gestão do negócio. Atribui-se à Politica aquilo que, pelos vistos, é da Política: nada, apenas retórica.
Tratou-se de uma opção politica. A menos que estas questões sejam técnicas ou cientificas, como alguns pensam e nos querem fazer crer.
Elaborar uma Lei de Bases é optar por dois caminhos convergentes na manutenção das mesmas injustiças social e  espacial (que resulta da oferta de habitação aos mais desfavorecidos ser segregada): adiar a resolução do problema da habitação por alguns anos e insistir na trágica separação entre habitação e urbanismo.

A Habitação. Um desastre politico e social no Portugal de Abril.

É sempre bom que venha alguém de fora, ainda mais sendo da ONU, dizer-nos que cá dentro o rei vai nu. O tema "direito à habitação" ganha assim algum espaço nas noticias. O rei do direito à habitação vai nu e tresanda a falta de respeito pelos direitos humanos e sociais dos cidadãos.
Não há uma politica de habitação de esquerda nem uma politica de habitação de direita. Em Portugal há uma única politica de habitação e tem apenas três parágrafos:

1º - O Estado demite-se de promover e aplicar qualquer politica de habitação, delegando no Mercado a sua concepção e concretização.

2º - Face ao sucesso alcançado pelo Mercado o Estado revoga o artº 65º da Constituição da República Portuguesa.

3º -  O Estado não apoia  a promoção de habitação social ou outra forma de affordable housing já que o Mercado garantiu a todos os cidadãos o acesso em posse plena com um outro patamar de qualidade.

Esta politica tem sido seguida por sucessivos Governos e adoptada pelas diferentes autarquias independentemente da sua filiação partidária.
Este é um dos maiores embustes políticos da história da democracia. 

10/12/16

UBER: regresso às condições de trabalho da época vitoriana.

Trabalho suado, é a designação que os ingleses atribuem às condições de trabalho do período vitoriano. Nesse período os trabalhadores não ganhavam o  suficiente para se sustentarem e às suas famílias,  e eram obrigados a trabalharem incessantemente, colocando em risco a  sua saúde e as suas vidas. Trabalho escravo, mais coisa menos coisa. Foi assim que as condições de trabalho dos motoristas da UBER foi mais uma vez descrita na Inglaterra.

08/12/16

I Daniel Blake. Abatido pelo Estado. Obrigada a prostituir-se pelo Estado.


I Daniel Blake de Ken Loach é um filme extraordinário sobre a vida das pessoas comuns - das  que um dia necessitam do apoio da sociedade -  tal como ela é vivida no mundo ocidental, nas sociedades prósperas. É um filme tocante, violento, de uma enorme humanidade, desesperado, optimista, mas sobretudo é um filme digno, marcado pela dignidade da vida daqueles com cujo sofrimento nos confronta. Sofrimento imposto pelo Estado, pelo chamado Estado Social, pela Segurança Social pública, ou por quem actua, implacavelmente, em seu nome.

Não me recordo de ter visto algo de parecido com este filme. Ken Loach coloca-nos a acompanhar a vida de Daniel Blake - um marceneiro de 59 anos que sofreu um ataque cardíaco e que os médicos consideram incapaz para retomar o trabalho - e Katie, uma mãe solteira e desempregada,  com dois filhos pequenos, que foi despejada da casa que habitava em Londres e que foi relocalizada em Newcastle, numa habitação social, num contexto social que desconhece, longe da escola que era a dos filhos, dos amigos dos filhos, dos seus amigos. Longe. Despejada como algo que é descartável que não tem valor algum, cuja vida pode ser completamente riscada.

Loach raramente afasta a objectiva do corpo dos protagonistas. O centro de tudo é a vida do dia a dia, de todas as horas, de todos os minutos, destas pessoas que estão fragilizadas e  necessitadas do apoio do Estado. Trata-se da relação do cidadão doente, ou desempregado, sem meios de sustento para si e para os seus filhos pequenos, ou de tudo isso, com o Estado que o deve apoiar e o hostiliza, o repudia. Dispensa outros enquadramentos e outros contextos. Não há lugar para futilidades.
O filme mostra-nos, através da vida destas pessoas, a forma como o sistema social britânico as agride e como os direitos das pessoas são cruelmente negados numa base diária e sistemática, sem qualquer pinga de humanidade. Mostra-nos a crueldade do atendimento nos serviços ditos de apoio da segurança social, que rivalizam com o carácter igualmente cruel, mas mecânico e irracional, do atendimento online, aquilo que por cá se chama Segurança Social Directa. Uma voz que Loach filma sobre um fundo negro, a mesma cor de que se vai preenchendo a vida destas pessoas. Serviços  privatizados e com um peso decisivo na atribuição ou não de pensões de invalidez e outro tipo de apoios, incluindo a manutenção do subsídio de desemprego.  Como nos mostra uma das cenas qualquer resquício de humanidade por parte de um funcionário é severamente reprimido. "Não podemos abrir excepções", é a regra que nos é então recordada. Nenhuma piedade, nenhum sentimento será tolerado, parece ser a regra. Os principios do neoliberalismo, enunciados por Nozick,  aplicados à vida de cada um, ao seu dia a dia.

Através deste filme o realizador britânico denuncia a desigualdade extrema que caracteriza actualmente a sociedade inglesa e europeia. Através da história destas duas personagens que se cruzam, ele coloca-nos perante duas das politicas públicas em que o Estado  traiu a confiança que os cidadãos nele depositaram e viola implacavelmente os direitos básicos, os direitos humanos dos mais necessitados. A Segurança Social e a Habitação.  A forma como essa desigualdade toca violentamente as pessoas e os seus direitos,  negando-lhes  até a comida para os seus filhos. A humilhação dos mais pobres, dos mais carenciados, parece ser o único objectivo deste sistema que ostenta na lapela os rótulos de "social" e de "público".  Quem quiser sobreviver é forçado a fazer de tudo: vender os haveres, viver sem luz, sem aquecimento, viver na rua, deixar de comer -ou recorrer ao banco alimentar, engrossando as suas longas filas -, prostituir-se e finalmente sucumbir.
Daniel Blake morreu de um novo ataque cardíaco, nas instalações da Segurança Social, quando esperava para  ser novamente submetido a uma avaliação dos técnicos, ditos sociais, para obter a pensão a que tinha direito e que lhe continuavam a negar. Foi abatido pelo Estado. Katie prostituiu-se para poder comprar comida para os filhos. O Estado a isso a obrigou.

Um filme notável, que deveria ser visto por todos os nossos políticos e deputados . Para conhecerem um pouco da vida das pessoas e para saberem que a governação não se organiza à  volta de números e de estatísticas, e que é da vida das pessoas que ela deveria tratar. Da vida das pessoas aqui e agora e não com o alibi do futuro que justifica e legitima todas as atrocidades do presente.
Tony Blair, Gordon Brown e David Cameron - depois de Teatcher - construíram esta Inglaterra que Loach nos mostra e que denuncia.
E por cá como estão a funcionar as coisas? Como são tratadas os nossos Daniel Blake e as nossas Katie, e os seus filhos,que por cá também existem aos milhares? Não temos por cá nenhum Ken Loach, isso é um facto.

Eis um bom debate a levar a cabo pela geringonça. Mais útil que os famosos grupos de trabalho. Como funciona a nossa segurança social? Como está o seu grau de desumanização?
Não é verdade que a modernização da máquina da Segurança Social foi inspirada no modelo britânico, no famoso modelo de Tony Blair? Tem muitas semelhanças isso é um facto que apenas do lado dos poderosos não é visível.

Adenda: O filme de Ken Loach ganhou o prémio de melhor filme britânico do ano atribuído pelo Evening Standard. Trata-se do prémio de maior prestigio do cinema britânico.


07/12/16

"Autonomia"

Nesta resposta de Alexandre Homem Cristo a Nuno Serra a respeito dos testes PISA reparei numa coisa; não tem nada ou quase nada a ver com o cerne da polémica, mas despertou-se a atenção; é a lista de reformas que AHC elenca, feitas por Nuno Crato: "Fez agregações de escolas, (...) procurou aumentar a autonomia de decisão nas escolas"...

Isto fez-me lembrar este meu post de janeiro de 2015.

03/12/16

A escolha de Macedo. Sinal dos tempos.

A escolha de Paulo Macedo para presidente da CGD é um claro sinal dos tempos. Basta dar uma vista de olhos pela imprensa e verificar o contentamento que esta decisão de Costa suscita na generalidade dos comentadores e actores partidários, com excepção do PCP.
Paulo Macedo é o homem que nunca falha dizem uns, enquanto outros acham que ele é apenas o homem que recebe a Caixa com 3000 milhões de prejuízo, ignorando a recapitalização já negociada com Bruxelas, e preparando mais um feito para o seu currículo de grande gestor. Outros, caso do BE, optam por olhar em frente e apontar ao futuro.
Macedo nunca deveria ter sido escolhido. São várias as razões:
1º - Macedo é um dos rostos da politica austeritária que entre 2011 e 2015 ajudou a destruir o imberbe Estado Social e a conduzir o país para a situação que a maioria dos portugueses rejeitou nas urnas:
2º - Macedo, nesse Governo, assumiu a pasta da saúde e foi o primeiro responsável pela grau de destruição do SNS durante esse período. O homem que não falha foi implacável a cortar o acesso e a retirar direitos aos mais frágeis, aos mais desprotegidos. O episódio na Assembleia da República em que um doente com hepatite C reclamou a ajuda a que tinha direito e a humanidade perdida - há muito - ao ministro Paulo Macedo, deveriam, por si só, impedir a sua nomeação por um governo de esquerda;
3º - Macedo foi, antes disso, Director Geral das Finanças, nomeado pela direita, e nesse cargo aumentou a capacidade de cobrança de receita fiscal pela máquina da AT. Mas, através dos mecanismos do "pague primeiro reclame depois" aumentou, em muito, as injustiças associadas à actividade da AT. Uma máquina frágil com os poderosos - apoiados por bons advogados - e implacável com o cidadão comum e com as pequenas e médias empresas. Medidas tomadas por este Governo visaram exactamente anular alguns efeitos mais devastadores dessas decisões. A penhora da casa própria entre outras:
4º - Macedo é um clássico gestor de direita. Um homem que pelas suas convicções politicas e pela sua carreira de gestor privado está nas antipodas daquilo que era suposto este Governo pretender para a Caixa: Um banco público com um projecto de apoio à economia que rompa com a lógica das últimas décadas. Ora da sua carreira no BCP nunca se entendeu ter Paulo Macedo tomado alguma posição que divergisse da orientação tomada pelo Banco - que o levou à bancarrota e à irrelevância - e pela generalidade da banca portuguesa, CGD inclusivé.
5º - Paulo Macedo não tem dificuldades em encontrar quem lhe pague os elevados salários a que ele  entenderá ter direito. O que choca qualquer contribuinte é que ele encontre no Estado e no Governo da geringonça quem lhe pague mais do que alguma vez ganhou no privado.
Para fazer o quê à Caixa Geral de Depósitos?
António Costa faz uma opção ao centro, piscando o olho a um futuro entendimento com um PSD pós Passos, com Marcelo na galeria a aplaudir e Rui Rio a preparar-se para tomar o lugar do homem de Massamá.  A ala direita socialista, anti-geringonça, rejubila e aplaude a mãos ambas. Afinal Costa mantêm-se fiel ao centro, dizem eles. Afinal, no essencial da economia, o governo não renega o modus operandi das últimas décadas.
O BE e o PCP guetizados num limiar de votos cada vez mais baixo e numa disparatada guerra "fraticida", reagem de maneira diferente. O PCP discorda frontalmente. Pelas razões óbvias. O BE, exausto  da sua luta parlamentar contra a monarquia  espanhola, opta por um "nem sim nem sopas". Por este andar a curto prazo o PS não precisará deles para governar e os famosos grupos de trabalho poderão mesmo ser totalmente desactivados.