O senhor cardeal patriarca saberá as razões porque fez este apelo e neste tom. Bastar-lhe-ia apelar ao cumprimento da Constituição, ao cumprimento do desgraçado e ignorado artigo 65º. Mas, saberá ele, melhor do que muitos, que a Constituição existe, infelizmente, para ser muitas vezes violada e ignorada e, no caso específico do direito à habitação, para ser desde quase sempre tratada como letra morta. Ou talvez optar por pedir uma Lei de Bases da Habitação, que parece estar a entrar na ordem do dia. Coisa para demorar anos e não aborrecer ninguém assim de imediato.
Podemos talvez admitir que este apelo poderá ser entendido como uma cedência do cardeal a uma visão radical do papel do Estado na economia e do Estado como garante do respeito pelos direitos humanos - urbanos e sociais - dos cidadãos. Uma pontada de radicalismo natalício.
Talvez não seja bem assim. Talvez o apelo se destine a conquistar um conjunto alargado de boas vontades, que todas juntas, daqui para a frente, possam ajudar a melhorar a situação dos que não tem habitação. No Natal há sempre apelos destes, a propósito disto e daquilo, e mesmo sem que pareça existir algum pretexto que os justifique.
Bom, mas o Cardeal disse o que disse e como falou de politicas, será caso para dizer que falou no tom acertado, já que isto não vai com boas vontades e espírito natalício, necessita de politicas e da intervenção do Estado.
Há uma correlação evidente entre a pobreza e o acesso à habitação, sobretudo em sociedades como a portuguesa, marcada por um liberalismo radical no que se refere às politicas sociais. Sobretudo os jovens e os mais idosos são vitimas violentas dessa correlação. Apesar das mudanças politicas verificadas recentemente os anos da Troika aumentaram muito a desigualdade e fizeram muitos milhares ficarem sem casa. Há hoje mais gente a viver em condições degradantes de habitação, se compararmos com o que se passava em 2011. Muitas casas vazias e muitos milhares de famílias sem casa. Mas isso só saberemos no Censo de 2021. Temos tempo.
O cardeal fala, por isso, com o sentido da urgência e terá informação sobre a dimensão real do problema. A pobreza é uma situação muito instável, agrava-se de forma muito repentina. Infelizmente atenuá-la exige muito mais meios e vontades, sobretudo vontade politica, e leva mais tempo.
A politica que tem sido seguida em Portugal e em parte considerável da União Europeia - embora aí existam substanciais diferenças entre países, normalmente não reconhecidas - é contrária ao apelo que D.Manuel Clemente faz. Assumiu-se desde meados dos anos oitenta - com o advento do neoliberalismo - que o Mercado resolvia o problema do direito à habitação e que o Estado devia não só afastar-se de qualquer iniciativa nesse sentido, como poupar o dinheiro que nessa politica social quisesse investir.
O Mercado - quer dizer os promotores e a banca e os especuladores financeiros - iria tratar do problema e no final - no famigerado longo prazo que, como sabemos desde Keynes, nunca chega - todos seriam não só proprietários das suas casas, como muito mais prósperos e felizes. Viveríamos todos melhor.
As coisas não se passaram assim. Mas para perceber como esta mudança na intervenção do Estado foi defendida utilizando até a terminologia dos que são a favor de maior justiça social e espacial, nada melhor do que recorrer a um pequeno excerto de um texto de David Harvey, publicado no seu livro de 2012, "Rebel Cities", mais exactamente no capítulo cujo título é " The Urban Roots of Capitalist Crisis". Cheira-me que o senhor Cardeal iria gostar de o ler.
"(...)Since the mid 1980´s, neoliberal urban policy (applied, for example, across the European Union) concluded that redistributing wealth to less advantaged neighborhoods, cities and regions was futile, and that resources should instead be channeled to dynamic “entrepreneurial” growth poles.(...)"
(Desde meados dos anos 80, a
política urbana neoliberal (aplicada, por exemplo, em toda a União Europeia)
concluiu que a redistribuição da riqueza em bairros, cidades e regiões menos
favorecidas era fútil e que os recursos deveriam alternativamente ser
canalizados para pólos de crescimento dinâmicos e "empreendedores")
"(...(A spatial version of “trickle-down” would then, in the proverbial long
run (which never comes), take care of all those pesky regional, spatial and
urban inequalities. Turning the city over to the developers and speculative
financiers redounds to the benefit of all.(...)"
(Uma versão espacial do
"trickle-down" deveria, então, no proverbial longo prazo (que nunca
chega), cuidar de todas essas desagradáveis desigualdades regionais, espaciais
e urbanas. Entregar a cidade aos promotores e especuladores financeiros reverte
em benefício de todos).
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