Não me recordo de ter visto algo de parecido com este filme. Ken Loach coloca-nos a acompanhar a vida de Daniel Blake - um marceneiro de 59 anos que sofreu um ataque cardíaco e que os médicos consideram incapaz para retomar o trabalho - e Katie, uma mãe solteira e desempregada, com dois filhos pequenos, que foi despejada da casa que habitava em Londres e que foi relocalizada em Newcastle, numa habitação social, num contexto social que desconhece, longe da escola que era a dos filhos, dos amigos dos filhos, dos seus amigos. Longe. Despejada como algo que é descartável que não tem valor algum, cuja vida pode ser completamente riscada.
Loach raramente afasta a objectiva do corpo dos protagonistas. O centro de tudo é a vida do dia a dia, de todas as horas, de todos os minutos, destas pessoas que estão fragilizadas e necessitadas do apoio do Estado. Trata-se da relação do cidadão doente, ou desempregado, sem meios de sustento para si e para os seus filhos pequenos, ou de tudo isso, com o Estado que o deve apoiar e o hostiliza, o repudia. Dispensa outros enquadramentos e outros contextos. Não há lugar para futilidades.
O filme mostra-nos, através da vida destas pessoas, a forma como o sistema social britânico as agride e como os direitos das pessoas são cruelmente negados numa base diária e sistemática, sem qualquer pinga de humanidade. Mostra-nos a crueldade do atendimento nos serviços ditos de apoio da segurança social, que rivalizam com o carácter igualmente cruel, mas mecânico e irracional, do atendimento online, aquilo que por cá se chama Segurança Social Directa. Uma voz que Loach filma sobre um fundo negro, a mesma cor de que se vai preenchendo a vida destas pessoas. Serviços privatizados e com um peso decisivo na atribuição ou não de pensões de invalidez e outro tipo de apoios, incluindo a manutenção do subsídio de desemprego. Como nos mostra uma das cenas qualquer resquício de humanidade por parte de um funcionário é severamente reprimido. "Não podemos abrir excepções", é a regra que nos é então recordada. Nenhuma piedade, nenhum sentimento será tolerado, parece ser a regra. Os principios do neoliberalismo, enunciados por Nozick, aplicados à vida de cada um, ao seu dia a dia.
Através deste filme o realizador britânico denuncia a desigualdade extrema que caracteriza actualmente a sociedade inglesa e europeia. Através da história destas duas personagens que se cruzam, ele coloca-nos perante duas das politicas públicas em que o Estado traiu a confiança que os cidadãos nele depositaram e viola implacavelmente os direitos básicos, os direitos humanos dos mais necessitados. A Segurança Social e a Habitação. A forma como essa desigualdade toca violentamente as pessoas e os seus direitos, negando-lhes até a comida para os seus filhos. A humilhação dos mais pobres, dos mais carenciados, parece ser o único objectivo deste sistema que ostenta na lapela os rótulos de "social" e de "público". Quem quiser sobreviver é forçado a fazer de tudo: vender os haveres, viver sem luz, sem aquecimento, viver na rua, deixar de comer -ou recorrer ao banco alimentar, engrossando as suas longas filas -, prostituir-se e finalmente sucumbir.
Daniel Blake morreu de um novo ataque cardíaco, nas instalações da Segurança Social, quando esperava para ser novamente submetido a uma avaliação dos técnicos, ditos sociais, para obter a pensão a que tinha direito e que lhe continuavam a negar. Foi abatido pelo Estado. Katie prostituiu-se para poder comprar comida para os filhos. O Estado a isso a obrigou.
Um filme notável, que deveria ser visto por todos os nossos políticos e deputados . Para conhecerem um pouco da vida das pessoas e para saberem que a governação não se organiza à volta de números e de estatísticas, e que é da vida das pessoas que ela deveria tratar. Da vida das pessoas aqui e agora e não com o alibi do futuro que justifica e legitima todas as atrocidades do presente.
Tony Blair, Gordon Brown e David Cameron - depois de Teatcher - construíram esta Inglaterra que Loach nos mostra e que denuncia.
E por cá como estão a funcionar as coisas? Como são tratadas os nossos Daniel Blake e as nossas Katie, e os seus filhos,que por cá também existem aos milhares? Não temos por cá nenhum Ken Loach, isso é um facto.
Eis um bom debate a levar a cabo pela geringonça. Mais útil que os famosos grupos de trabalho. Como funciona a nossa segurança social? Como está o seu grau de desumanização?
Não é verdade que a modernização da máquina da Segurança Social foi inspirada no modelo britânico, no famoso modelo de Tony Blair? Tem muitas semelhanças isso é um facto que apenas do lado dos poderosos não é visível.
Adenda: O filme de Ken Loach ganhou o prémio de melhor filme britânico do ano atribuído pelo Evening Standard. Trata-se do prémio de maior prestigio do cinema britânico.
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