08/12/16

I Daniel Blake. Abatido pelo Estado. Obrigada a prostituir-se pelo Estado.


I Daniel Blake de Ken Loach é um filme extraordinário sobre a vida das pessoas comuns - das  que um dia necessitam do apoio da sociedade -  tal como ela é vivida no mundo ocidental, nas sociedades prósperas. É um filme tocante, violento, de uma enorme humanidade, desesperado, optimista, mas sobretudo é um filme digno, marcado pela dignidade da vida daqueles com cujo sofrimento nos confronta. Sofrimento imposto pelo Estado, pelo chamado Estado Social, pela Segurança Social pública, ou por quem actua, implacavelmente, em seu nome.

Não me recordo de ter visto algo de parecido com este filme. Ken Loach coloca-nos a acompanhar a vida de Daniel Blake - um marceneiro de 59 anos que sofreu um ataque cardíaco e que os médicos consideram incapaz para retomar o trabalho - e Katie, uma mãe solteira e desempregada,  com dois filhos pequenos, que foi despejada da casa que habitava em Londres e que foi relocalizada em Newcastle, numa habitação social, num contexto social que desconhece, longe da escola que era a dos filhos, dos amigos dos filhos, dos seus amigos. Longe. Despejada como algo que é descartável que não tem valor algum, cuja vida pode ser completamente riscada.

Loach raramente afasta a objectiva do corpo dos protagonistas. O centro de tudo é a vida do dia a dia, de todas as horas, de todos os minutos, destas pessoas que estão fragilizadas e  necessitadas do apoio do Estado. Trata-se da relação do cidadão doente, ou desempregado, sem meios de sustento para si e para os seus filhos pequenos, ou de tudo isso, com o Estado que o deve apoiar e o hostiliza, o repudia. Dispensa outros enquadramentos e outros contextos. Não há lugar para futilidades.
O filme mostra-nos, através da vida destas pessoas, a forma como o sistema social britânico as agride e como os direitos das pessoas são cruelmente negados numa base diária e sistemática, sem qualquer pinga de humanidade. Mostra-nos a crueldade do atendimento nos serviços ditos de apoio da segurança social, que rivalizam com o carácter igualmente cruel, mas mecânico e irracional, do atendimento online, aquilo que por cá se chama Segurança Social Directa. Uma voz que Loach filma sobre um fundo negro, a mesma cor de que se vai preenchendo a vida destas pessoas. Serviços  privatizados e com um peso decisivo na atribuição ou não de pensões de invalidez e outro tipo de apoios, incluindo a manutenção do subsídio de desemprego.  Como nos mostra uma das cenas qualquer resquício de humanidade por parte de um funcionário é severamente reprimido. "Não podemos abrir excepções", é a regra que nos é então recordada. Nenhuma piedade, nenhum sentimento será tolerado, parece ser a regra. Os principios do neoliberalismo, enunciados por Nozick,  aplicados à vida de cada um, ao seu dia a dia.

Através deste filme o realizador britânico denuncia a desigualdade extrema que caracteriza actualmente a sociedade inglesa e europeia. Através da história destas duas personagens que se cruzam, ele coloca-nos perante duas das politicas públicas em que o Estado  traiu a confiança que os cidadãos nele depositaram e viola implacavelmente os direitos básicos, os direitos humanos dos mais necessitados. A Segurança Social e a Habitação.  A forma como essa desigualdade toca violentamente as pessoas e os seus direitos,  negando-lhes  até a comida para os seus filhos. A humilhação dos mais pobres, dos mais carenciados, parece ser o único objectivo deste sistema que ostenta na lapela os rótulos de "social" e de "público".  Quem quiser sobreviver é forçado a fazer de tudo: vender os haveres, viver sem luz, sem aquecimento, viver na rua, deixar de comer -ou recorrer ao banco alimentar, engrossando as suas longas filas -, prostituir-se e finalmente sucumbir.
Daniel Blake morreu de um novo ataque cardíaco, nas instalações da Segurança Social, quando esperava para  ser novamente submetido a uma avaliação dos técnicos, ditos sociais, para obter a pensão a que tinha direito e que lhe continuavam a negar. Foi abatido pelo Estado. Katie prostituiu-se para poder comprar comida para os filhos. O Estado a isso a obrigou.

Um filme notável, que deveria ser visto por todos os nossos políticos e deputados . Para conhecerem um pouco da vida das pessoas e para saberem que a governação não se organiza à  volta de números e de estatísticas, e que é da vida das pessoas que ela deveria tratar. Da vida das pessoas aqui e agora e não com o alibi do futuro que justifica e legitima todas as atrocidades do presente.
Tony Blair, Gordon Brown e David Cameron - depois de Teatcher - construíram esta Inglaterra que Loach nos mostra e que denuncia.
E por cá como estão a funcionar as coisas? Como são tratadas os nossos Daniel Blake e as nossas Katie, e os seus filhos,que por cá também existem aos milhares? Não temos por cá nenhum Ken Loach, isso é um facto.

Eis um bom debate a levar a cabo pela geringonça. Mais útil que os famosos grupos de trabalho. Como funciona a nossa segurança social? Como está o seu grau de desumanização?
Não é verdade que a modernização da máquina da Segurança Social foi inspirada no modelo britânico, no famoso modelo de Tony Blair? Tem muitas semelhanças isso é um facto que apenas do lado dos poderosos não é visível.

Adenda: O filme de Ken Loach ganhou o prémio de melhor filme britânico do ano atribuído pelo Evening Standard. Trata-se do prémio de maior prestigio do cinema britânico.


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