31/05/17

Uma versão da Geringonça para governar o Reino Unido?

Pela primeira vez uma sondagem retira a maioria absoluta aos Conservadores. Pela primeira vez é possível formar um Governo do Labour com apoio parlamentar - uma reedição da geringonça, mas com uma politica muito mais à esquerda - ou um Governo de coligação liderado pelo Labour e com Corbyn como primeiro-ministro.
A recusa de May em participar no debate eleitoral  que esta noite reuniu todos os líderes partidários é mais um prego no caixão da funesta estratégia eleitoral dos conservadores.[deus seja louvado, eu que não sou crente]
Tempos excitantes na terra de sua majestade.

30/05/17

Corbyn e a Liderança. Uma questão de fundo.

Eu não sou um ditador, repetiu Corbyn na entrevista que "partilhou" com Theresa May. Acusado de não defender pontos de vista que o Manifesto Eleitoral defende, Corbyn respondeu desta maneira.


26/05/17

A afirmação eleitoral de Corbyn e do Labour. A importância do Manifesto, ou quem falou da "mais longa nota de suicídio da história".(actualizado)

A campanha eleitoral para as eleições do próximo 8 de Junho no Reino Unido ficou marcada, como não podia deixar de ser, pelo ataque bombista em Manchester que vitimou crianças e adolescentes e determinou a interrupção da campanha eleitoral por alguns dias.

Há claramente um antes e um depois do atentado levado a cabo pelo bombista suicida, nascido e criado em Inglaterra. Até ao atentado a campanha estava ser dominada pela subida contínua dos trabalhistas nas sondagens. O partido trabalhista tinha recuperado um atraso de mais de 20 pontos percentuais - à data do anuncio das eleições gerais antecipadas -  até uma distância de 5 pontos percentuais - ver aqui  -  colocando a hipótese de vitória em cima da mesa.

O que dominou a eleição até ao dia do ataque foi o impacto que os Manifestos eleitorais de cada um dos partidos teve na opinião pública. O Manifesto e o tom adoptado pelas respectivas lideranças para a campanha eleitoral. A disputa eleitoral foi dominada pelas condições de vida das pessoas, da maioria das pessoas, pelas suas necessidades e pelas respostas que os partidos prepararam para elas.

O Manifesto Eleitoral dos trabalhistas representa a proposta politica mais à esquerda apresentada por um partido socialista ao longo dos últimos trinta anos. Trata-se da proposta mais radical de um partido que aposta em transformar a sociedade sem colocar como questão prévia a substituição do sistema capitalista. Trata-se de uma proposta politica que devolve ao Estado a capacidade de intervir activamente na economia, que defende o retorno da primazia do Estado sobre o Mercado e que coloca o interesse da maioria das pessoas no cento da actividade politica.

De forma resumida podemos afirmar que o Labour sob  a liderança de Corbyn rompe com o neoliberalismo que  transformou, desde Thatcher, o Reino Unido na quinta essência da desigualdade e da injustiça social. O slogan que os trabalhistas utilizaram para a campanha é uma síntese perfeita dos objectivos politicos que perseguem: For the Many, not the few.

Combater a desigualdade e devolver a esperança às pessoas. Salvar a democracia. Mobilizando os meios e os recursos onde eles estão. Indo ao coração da desigualdade e actuando de uma forma deliberadamente redistributiva. Através da politica fiscal, através da valorização do factor trabalho, actuando no salário mínimo e nos salários mais elevados, através da intervenção directa do Estado na economia renacionalizando sectores estratégicos da actividade. Impondo a universalidade do acesso ao Estado social, no Sistema Nacional de saúde, no sector da Educação, acabando com as propinas no ensino superior. Muitas destas medidas fotam paulatinamente abandonadas por parte da esquerda com o argumento de que  o acesso universal e gratuíto perpetua as condições de desigualdade existentes na sociedade. Corbyn e os trabalhistas não estão para aí virados. É necessário ser o Estado a garantir o acesso universal, sendo claro quem mais disso beneficiárá.

Um forte investimento na Habitação já que o Reino Unido, ou melhor os seus cidadãos, são vitimas de uma crise sem precedentes neste sector. Os trabalhistas britânicos não precisam de uma Lei de Bases. Optaram por uma politica. Vão construir um milhão de casas no prazo de cinco anos. Com dinheiro público. Casas construídas onde fazem falta, para cidadãos que possam nelas viver sem terem que ser deslocadas para as periferias apenas porque não são dos Happy Few.

Uma proposta politica que foi recebida pela imprensa, largamente dominada pelo pensamento único, e pelos adversários politicos, como um regresso ao passado, como um projecto sem futuro. Na imprensa inglesa, hegemonizada pelos Conservadores, e em Portugal, o Manifesto trabalhista foi classificado como a mais extensa nota de suicídio da história recente. Precipitadamente, diga-se.

Do outro lado o Manifesto dos Conservadores revelou-se um desastre. Trata-se de um documento que exibe uma inusitada violência social e que, sem subterfúgios, aposta na construção de uma sociedade de vencedores e de vencidos, Cada cidadão idealmente para os conservadores deverá  estar perante si próprio, sem qualquer apoio social, sem qualquer papel a desempenhar pelo Estado, vitima apenas e só de si próprio e das boas ou más opções que tomou durante a sua vida. É um projecto politico que dá passos largos no  sentido de consolidar o projecto politico neoconservador.  A  penalização dos cidadãos idosos que tenham que recorrer aos serviços de saúde e de apoio especializado foi o grande destaque do manifesto. A taxa que ficou conhecida como "dementia tax" obrigou May a vir a terreiro tentar negar os seus objectivos - U-Turn.

Um dos momentos mais penosos para a actual primeira-ministra foi a entrevista que concedeu ao jornalista da BBC, Andrew Neil. Por esta altura o partido conservador parecia à beira de um ataque de nervos e como alguns comentadores destacaram o Manifesto eleitoral tinha-se tornado um pesado fardo que ameaçava afundar a campanha eleitoral.

O ataque bombista coincidiu com a passagem de Corbyn pelo crivo de Andrew Neil. Com os acontecimentos de Manchester ainda frescos, o carácter pacifista do líder trabalhista e as suas conhecidas posições sobre o desarmamento nuclear ou sobre as acções miliatres contra países terceiros, forneciam o contexto para um forte aperto a Corbyn.

Mas as coisas não se passaram assim. Numa corajosa tomada de posição prévia o líder trabalhista não perdera a oportunidade de associar os acontecimentos internos aos erros tomados no campo da politica externa.  A entrevista não foi o massacre que se esperava. Corbyn foi confrontado com todas as questões polémicas e saiu com a sua posição reforçada.

Os conservadores apostam tudo no aproveitamento politico dos efeitos preversos do ataque de Manchester. A imprensa britânica reconhece essa deriva estratégica na campanha de May. Podem ser bem sucedidos o que não seria nada de novo. As sondagens imediatamente a seguir ao ataque ainda mostraram o intervalo entre conservadores e trabalhistas a diminuir mas depois disso uma última sondagem mostra que os trabalhistas, pela primeira vez em semanas, recuaram ainda que ligeiramente.

As boas notícias que podem ajudar a atenuar o impacto do atentado e do aproveitamento que os Conservadores dele fazem, é a forma crescentemente positiva como Corbyn é visto pelos cidadãos. O contrário do que se passa com a líder conservadora cujo desempenho na campanha tem roçado o sofrível.

A próxima semana será decisiva para avaliarmos as reais possibilidades de colocar um ponto final no longo reinado Conservador em terras de Sua Majestade. Mais do que isso, será o tempo para sabermos se, pela primeira vez em décadas, um Governo de um país capitalista desenvolve uma  politica de esquerda que constitui uma resposta politica sem paralelo aos desafios colocados desigualdade extrema que mina os alicerces da democracia e do progresso social.

Corbyn, contrariamente ao que aqui se escreve, não ficou a meio da ponte do Brexit. A sua abordagem ao referendo foi límpida e a favor do Remain and Reform. O que foi dúbio foi a forma como se posicionou perante os resultados e a actuação politica posterior que o conduziu para uma posição politica insustentável. May - que "não percebeu o sentimento popular prevalecente" ela que fez campanha contra o Brexit, e que defende um Hard Brexit que é um violento ataque aos direitos dos trabalhadores nacionais e aos imigrantes - julgou ver nessa contradição uma oportunidade para decapitar o Labour e arrasar o seu mais perigoso líder. Saiu-lhe o tiro pela culatra. A acção de May acabou por ser aquilo de que Corbyn necessitava para voltar a colocar a vida das pessoas no centro da politica. É daí que vem o seu reconhecimento e é isso que faz dele um dos mais inspiradores líderes politicos da Europa.

PS - a campanha do Labour e o seu programa politico traduzido no Manifesto ajudam a perceber melhor o que afinal caracteriza o essencial do acordo politico que sustenta a nossa geringonça. Mostra como são ainda debeis e curtos e, por isso, injustos, os caminhos percorridos a inverter a dura politica austeritária que nos empobreceu. Ajudam-nos, também,  a perceber de que méritos falamos quando falamos dos méritos de Centeno  e a controlar melhor as euforias patrioteiras  que espreitam por detrás da promoção do ministro das Finanças ao Eurogrupo, esse não lugar da politica democrática europeia onde se exerce e cultiva o poder alemão.

23/05/17

A reforma constitucional de Manuel Braga da Cruz

Manuel Braga da Cruz, professor da Universidade Católica, parece que vai apresentar uma proposta de "reforma do sistema político", que explicou ao Público:
Considera que “a representação proporcional é propícia à formação de governos minoritários e isso não estimula uma cultura de negociação e coligação”. Não é uma contradição nos termos? Parece acontecer o contrário...

Eu não atribuo a dificuldade de realização de consensos ao sistema proporcional, pelo contrário, ele favorece a consociatividade. A dificuldade de obtenção de consensos não está no sistema eleitoral. O que este provoca é, por um lado, o afastamento do cidadão do eleito – porque se votam listas de deputados escolhidos pelos partidos. Falta a pessoalização do voto, que é uma exigência crescente no sistema português. Por outro lado, o sistema eleitoral não favorece a governabilidade. Defendo um sistema misto, muito semelhante ao alemão.

Quer explicar como é?

Um sistema de círculos uninominais locais para metade do Parlamento com eleição maioritária e um círculo nacional com voto de lista em eleição proporcional para a outra metade. Isso teria a vantagem de melhorar a proporcionalidade, porque esta varia na razão da magnitude das circunscrições. Onde se obtém a melhor e a máxima proporcionalidade é num círculo nacional.
Lendo esta conversa fica sem se perceber se Braga da Cruz defende um sistema semelhante ao alemão ou semelhante ao venezuelano; ele primeiro diz que defende um sistema "muito semelhante ao alemão" mas a descrição que ele dá a seguir parece indicar que ele está a pensar mais num sistema parecido com o da Venezuela (frequentemente chamado de "sistema russo", mas tal não é muito correto, porque a Rússia muda de sistema eleitoral quase de eleição para eleição, e só às vezes usa esse sistema).

A grande diferença entre os dois sistemas - no sistema venezuelano/"russo" parte dos deputados são eleitos por círculos uninominais, e outra parte (30% na Venezuela, embora Braga da Cruz proponha metade) são eleitos proporcionalmente num circulo nacional; no sistema alemão metade dos deputados são eleitos por círculos uninominais e outra metade são apurados num circulo nacional (ainda que depois distribuídos por círculos regionais) de forma a que o TOTAL dos deputados seja proporcional.

Exemplificando - vamos supor um parlamento com 230 deputados, 115 eleitos em círculos uninominais e 115 num círculo nacional.

Num sistema de tipo alemão, se um partido tiver, p.ex., 35% dos votos e for o mais votado em, digamos, 60 círculos uninominais, vai eleger esses 60 deputados e mais uns 20 (35% de 230 menos os 60 já eleitos) no circulo nacional.

Já num sistema de tipo venezuelano/"russo", se um partido tiver 35% dos votos e for o mais votado em 60 círculos uninominais, vai eleger 60 deputados e mais uns 40 (35% de 115) no círculo nacional.

Uma nota - há quem diga que o sistema venezuelano/"russo" é o preferido de ditaduras a fingir que são democracias: a existência de um circulo nacional por lista faz com que os partidos (nomeadamente o dominante) tenham muito mais coesão e disciplina interna (e obediência à direção) do que num sistema uninominal, e ao mesmo tempo  o facto de grande parte dos deputados serem eleitos por círculos maioritários (sem compensação posterior) permite ao partido dominante garantir maiorias (eu tenho a ideia de ter lido algo nesse sentido no blog Fruits and Votes, mas não consigo encontrar).
Num tempo em que os cidadãos reivindicam mais participação na democracia, esta prioridade que dá à governabilidade não entra em confronto com as expectativas dos eleitores?

Penso que não. A democracia é um regime de mandatos. O que se pede de um Governo é que governe, tendo nós em democracia a possibilidade de, depois, pedir contas a esse Governo e de o julgar em eleições. O que se pede é que o Governo tenha força suficiente para impor o interesse público e o bem comum aos interesses particulares. As democracias mais consolidadas do mundo não têm governos derrubados a meio das legislaturas.
Penso que aqui Braga da Cruz está como aquelas pessoas que compram um fato e uma cartola para ficarem ricos; mesmo que nas tais democracia consolidadas não costume haver quedas de governos a meio das legislaturas, isso não quer dizer que, por via de alterações constitucionais, tornar difícil a queda de governos vá fazer com que a democracia fique mais consolidada. Aliás, veja-se que os regimes presidencialistas, onde supostamente é legalmente quase impossível o governo ser derrubado a meio do mandato, são exatamente os países onde os golpes de Estado proliferam

O caso do vídeo do Correio da Manhã

O que dá que pensar neste caso é que tanto o Correio da Manhã como muitos dos críticos do Correio da Manhã coincidem em chamar "violação" a algo que, ao que sei, é praticamente impossível (pelas imagens divulgadas) dizer que foi consentido ou não.

[Nota - eu não vi o tal vídeo, mas é o que ouvi de pessoas que viram o vídeo antes de ser retirado]

19/05/17

O Manifesto do Labour. A resposta à crise da social-democracia europeia?

Corbyn pode não ganhar as eleições. A antecipação das eleições, forçada pelos conservadores, pode não o permitir. Mas há vários factos que estão a acontecer e que já não podem ser ignorados.

Em primeiro lugar o Labour está a conseguir uma mobilização sem precedentes, com os cidadãos a aderirem de forma empenhada às acções de campanha do partido. Essa mobilização passa muito pela empatia que as pessoas estabelecem com o seu líder, Jeremy Corbyn. O não  líder, o velho sem carisma, o esquerdista sem credibilidade, é reconhecido pelos seus concidadãos. Pela sua coerência, pelo seu passado, pela sua atitude relativamente à liderança, pelo facto de defender a participação de todos na politica e porque defende ideias justas e progressistas que dão resposta às necessidades das pessoas.

Em segundo lugar o Manifesto eleitoral (consultar aqui) apresenta um conjunto de propostas politicas que recuperam e revitalizam o essencial da social-democracia europeia, antes da deriva neoliberal que a tornou numa cópia desfocada dos conservadores e da direita neoliberal.

O Manifesto reconhece a transformação do Reino Unido numa  sociedade marcada de forma violenta pela desigualdade e propõe-se alterar profundamente esse estado de coisas. Como?
Devolvendo ao Estado um papel na definição e na liderança da politica económica.
Nacionalizando serviços públicos cuja privatização fcou marcada pela degradação do serviço e pela mercantilização do acesso.
Promovendo uma politica fiscal que constitua uma efectiiva redistribuição da riqueza produzida.
Investindo na recuperação do Serviço Nacional de Saúde, na Escola Pública.
Colocando o Estado a intervir directamente na produção de habitação combatendo a gigantesca crise que afecta milhões de pessoas, ignoradas pelo Mercado e atiradas para as diversas periferias.
Apresentando contas e mostrando onde irá buscar o dinheiro e quem pagará e quanto e quem será beneficiado e como.

A deteminação de Corbyn, a sua sinceridade, a firmeza tranquila que o carateriza, transmitem confiança e esperança às pessoas. Provavelmente não irá vencer as elições. As sondagens dão uma vitória confortável aos conservadores. As próximas semanas ditarão com que linhas se cozerá o futuro próximo do Reino Unido.

Mas Corbyn não será esmagado* nas próximas eleições e irá continuar a liderar os trabalhistas. O futuro parece que irá passar pela sua liderança no Labour e parece jogar a seu favor. Avisados estavam os conservadores quando resolveram antecipar as eleições.

* - Arrisco que o Labour irá obter o melhor resultado eleitoral desde a saída de Blair. Mas há uma vitória que ninguém tira a Corbyn: lançou as fundaçoes para uma nova politica que sirva de base a uma nova esquerda, comprometida com a urgente necessidade de construir  uma sociedade para todos.

16/05/17

O vídeo de campanha do Labour realizado por Ken Loach

Foi hoje divulgado um vídeo de campanha do Labour realizado por Ken Loach.


Um importante documento para a campanha dificil que os trabalhistas enfrentam. Repare-se no número de vezes que Corbyn se refere à desigualdade crescente e à necessidade de a combater. Entretanto, apesar das declarações de que as eleições estão resolvidas, os Conservadores reforçaram a campanha de ataques pessoais ao líder trabalhista. Esta campanha recorre a um conjunto de vídeos que visam difundir a ideia de que estamos perante um perigoso radical cujo Manifesto Eleitoral - o que se conhece dele - nos mostra alguém que não tem os pés na terra. 
Será que Corbyn é assim tão radical? Há claramente quem não defenda essa ideia que a imprensa de direita militantemente divulga.

13/05/17

O Golpe Eleitoral de Theresa May e dos conservadores. Será que o Labour e Corbyn sobrevivem? O que está afinal em jogo?

Toda a gente sabe que Theresa May  ocupou o lugar de primeiro-ministro, em consequência da demissão de Cameron após a vitória do BREXIT, não se submetendo ao voto popular. Toda a gente sabe que May recusou repetidas vezes a realização de eleições antecipadas. Como recorda o Guardian essa recusa veemente prolongou-se até ao passado dia 18 de Abril.
Invocando a necessidade de ter um maior  apoio para a batalha do Brexit, May veio anunciar a realização de eleições gerais antecipadas no dia 8 de Junho.

Todaa gente sabe que a opção foi determinada por puro oportunismo politico. As sondagens davam, à data, uma vantagem colossal aos Tories, em parte fruto das trapalhadas em que Corbyn se deixou enredar depois da derrota do "Remain and Refom" que defendia - timidamente, é justo reconhecer - a permanência na UE e a  reforma do espaço comum europeu.

May não resistiu à expectativa de uma vitória eleitoral próxima e à possibilidade de humilhar o Labour e a  liderança mais à esquerda da sua história recente. Pretendeu retirar tempo ao líder trabalhista para desenvolver as suas politicas e divulgá-las como parecia ser a estratégia por ele adoptada.

Owen Jones teve, por isso, razão quando afirmou que não se pode confiar em Theresa May. Estamos perante uma politica cuja palavra pouco ou nada vale. O oportunismo politico de May, que fez campanha contra o BREXIT, faz dela a primeiro-ministra que lidera uma versão  "Hard-Brexit", que constitui  uma séria ameaça aos direitos sociais dos cidadãos e ameaça privatizar o que resta do sector público. Oportunismo que a levou a desencadear uma feroz campanha centrada nos ataques pessoais a Corbyn -e ao seu carácter pacifista que é apontado como uma ameaça para o Reino Unido - ao mesmo tempo que recusa qualquer debate televisivo com ele. Muitos se interrogam sobre o real significado desta estratégia. Neste sentido a apresentação que Corbyn fez sobre a sua politica externa veio colocar os pontos nos is e desmentir parte das calúnias veiculadas pelos conservadores. Corbyn negou a abordagem dos Tories que ele resumiu na frase  "bombardear primeiro dialogar depois".
Qual a razão para que a actual primeiro-ministra se recuse a realizar acções de campanha abertas optando por sessões em que o acesso é condicionado e os próprios jornalistas têm dificuldade em estar presentes? Medo, é a única resposta adequada. Medo de que, tal como nas repetidas sessões de perguntas ao Primeiro Ministro , Corbyn evidencie as fragilidades da politica seguida pelos Conservadores, agravadas por May, e mostre que há uma alternativa, que ele resume num Reino unido para Todos e não apenas para alguns. Medo de que as sondagens, tão reconfortantes, não traduzam afinal a realidade que as urnas ditarão.

Mas, sejam quais forem os defeitos de May e dos Tories, o Labour tem a responsabilidade de liderar uma alternativa. Um partido que desde as últimas eleições gerais escolheu uma nova liderança que representou um corte com o seu posicionamento politico de décadas, que representa, aliás, uma inequívoca viragem à esquerda, que depois disso viu essa liderança ser questionada internamente a partir dos seus deputados e teve a oportunidade de a reafirmar, que viu o número de militantes aumentar transformando-o num dos maiores partidos europeus, não pode deixar a pairar dúvidas sobre qual a razão pela qual não consegue apresentar-se ao cidadãos como uma alternativa de governo e tão pouco o seu líder é aceite como um potencial primeiro-ministro.

Apesar das propostas que defende, nomeadamente uma economia para todos e o combate à desigualdade, com um conjunto de medidas relevantes, aparentemente isso não o torna mais estimado pelos eleitores.

Já aqui escrevemos sobre os nefastos efeitos que o posicionamento de Corbyn face ao BREXIT teve na sua credibilidade. Ainda agora no arranque da campanha o líder do Labour sentiu necessidade de recusar um novo referendo caso vença as eleições. Apesar do resultado ter mostrado que há uma divisão clara, e uma quase igualdade, entre aqueles que queriam sair e os que defendiam permanecer. Donde virá esta inflexibilidade de Corbyn? Provavelmente das suas convicções profundas sobre a Europa. A ser assim uma das partes mais interessantes do seu discurso politico, a necessidade de reformar a Europa, colocando os direitos dos cidadãos e dos trabalhadores no centro da politica, e o combate ao neoliberalismo instalado nas instituições europeias, era apenas retórica.
Os seus potenciais eleitores não lhe perdoarão politicamente. Cerca de dois terços dos eleitores do Labour votaram pelo Remain, sendo que alguns sectores operários de zonas muito flageladas pela globalização, optaram pelo Brexit.

Arrancou nestes últimos dias a campanha. Depois de dias e dias de uma critica impiedosa ao Labour e ao seu líder, em que se vaticina uma derrota histórica, as coisas parecem começar a mudar um pouco no terreno e no campo do debate politico. Dada a falta de comparência dos Conservadores para esse debate o Labour está a optar pelo contacto do seu líder com os cidadãos um pouco por todo o Reino Unido. Esse é o seu estilo e o que melhor se adapta à sua proposta politica de serem os cidadãos a decidirem do seu futuro, pela participação e  não apenas através do voto.

A forma como a situação está a evoluir no terreno, o crescente debate em torno das propostas do Labour concretizadas no seu Manifesto Eleitoral*, levam alguns a afirmar que o destino do Labor ainda  não está traçado.   A analogia com a campanha de Bernie Sanders é perfeita. Tal como Sanders, Corbyn destaca-se pelas suas convicções, pela sua coerência e pelas suas características,  exaltadas como  negativas pelos média: velho, radical de esquerda, sem carisma, pacifista, internacionalista, em suma inelegível para primeiro-ministro.

O Manifesto do Labour foi objecto de uma inesperada divulgação pública antes de Corbyn o ter divulgado numa convenção marcada para o efeito. A intenção foi mais uma vez desacreditar o líder trabalhista e explorar o efeito presumidamente  negativo de muitas das suas propostas. Ora parece que o tiro saiu pela culatra aos autores do Manifestoleaks. O que está a acontecer é exactamente o contrário. As mais deversas reacções, e as  sondagens, mostram que as propostas que o Labour apresenta sob  a mensagem de campanha " For the Many not the Few" gozam do apoio da maioria dos eleitores. Corbyn não deixou de aproveitar o impacto causado pela divulgação de partes do Manifesto para salientar que as politicas nele impressas irão permitir melhorar a vida das pessoas.

Que propostas assim tão importantes merecem referência no manifesto eleitoral dos trabalhistas?  A nacionalização dos caminhos de ferro, cuja degradação com os conservadores tem sido escandalosa. A nacionalização dos correios e de parte das empresas que constituem o sistema energético do Reino Unido. Além destas medidas o líder do Labour promete abolir as propinas no ensino superior e apoiar as famílias carenciadas na educação dos seus filhos, através de alimentação escolar gratuíta e de acesso gratuito a todo o material escolar.
Outra das medidas emblemáticas do Manifesto é a proposta de uma nova politica de Habitação. Um milhão de novas casas em cinco anos, 500 mil das quais serão "affordable housing" construídas pelo sector público. A crise na habitação é uma das mais trágicas heranças dos governos conservadores. Há milhões de pessoas afectadas por essa  politica. A aposta de Corbyn é um elemento politico fulcral para um partido que defende uma politica alternativa ao neoliberalismo e que quer colocar os interesses das pessoas em primeiro lugar. Trata-se de uma aposta que ajuda a perceber que Corbyn não está apenas no campo da retórica e que quer retirar ao Mercado a liderança da politica devolvendo ao Estado o seu papel líder na condução da economia em benefício de todos os cidadãos. Isso mesmo foi salientado por Owen Jones.
Acresce um conjunto relevante de medidas na área fiscal e da redistribuição da riqueza, com destaque para o aumento do salário mínimo para 10 libras/hora e diminuição da carga fiscal sobre as classes populares acompanhadas do aumento de impostos para os mais bem pagos e para as empresas.

As sondagens mostram a enorme aceitação destas propostas e evidenciam que essa aceitação não se reflecte directamente na aceitação de Corbyn como eventual primeiro-ministro.

Há várias explicações para este facto. Uma delas, admito eu,  é a de que as sondagens sejam incapazes de medir a adesão popular do líder trabalhista, construida com base na sua coerência, na sua honestidade, através de um contacto pessoal, mais lento, mas muito mais eficaz. Trata-se de desconstruir um tipo de liderança em que o líder se coloca acima das massas, inacessível, salvo em ocasiões específicas para glorificar os seus feitos, e propôr em alternativa uma relação face a face, olhos nos olhos, que ajude a promover a participação de todos, em pé de igualdade, na construção das politicas e nas decisões relevantes sobre o futuro comum.
Chomsky, numa entrevista ao Guardian adianta outras explicações; uma hostilidade não disfarçada dos grandes orgãos de informação para com Corbyn; o facto deste não ser um líder carismático, à moda de Obama ou de Tony Blair e outros que, através da palavra, conseguiam electrizar as massas; o facto de ter contra ele a maioria dos deputados do próprio partido que em campanha não apoiam as suas propostas e as sabotam. Isso não impede o pensador americano de apoiar Corbyn e de estabelecer as comparações com Sanders no outro lado do Atlântido.
Claro que na generalidade da imprensa internacional,  de que a portuguesa não é excepção, enfatiza-se o carácter potencialmente catastrófico da actual liderança do Labour. Ignorando a história e a história recente do partido, antes da chegada de Corbyn à liderança. Esse erro não cometeu Ken Loach, o celebrado realizador de I Daniel Blake quando escreveu no Guardian so bra o passado recente do partido. Mas a História não é para todos, muito menos para um jornalismo que não é mais do que a voz do dono.

Mas jogará aqui nestas escassas semanas que nos separam do dia 8 de Junho a opção que muitos eleitores farão acerca da importância do seu voto para impedirem uma vitória esmagadora dos Conservadores com todas as consequências que isso pode acarretar.

O que está em jogo é a possibilidade de um líder politico de esquerda assumir a liderança de um dos maiores partidos socialistas europeus e assumir a liderança de um dos páises mais poderosos e mais desiguais do mundo. O que está em jogo é a possibilidade de um projecto politico que rompe com décadas de submissão ao neoliberalismo mostrar que pode vencer eleições legislativas no coração da Europa do capital, da Europa em que os interesses financeiros se sobrepõem aos interesses das pessoas e os esmagam. Projecto que rompe com a economia da desigualdade, com a submissão do Estado aos interesses do Mercado, que quer colocar os cidadãos no centro da politica e devolver aos cidadãos o direito à cidade. Projecto, como se mostra no Manifesto eleitoral, que é viável sem que isso acarrete um agravamento das contas públicas.

Caso Corbyn vença - o que é dificil mas não impossível - o Reino Unido rompe com décadas de sucessivas lideranças politicas que colocaram em primeiro lugar os interesses dos mais poderosos e agravaem as condições de vida dos restantes. Isso representará uma esperança para a democracia. Não posso deixar de referir como me desagrada  o facto de essa mudança - a acontecer - não ser feita no contexto de um Reino Unido membro da UE. O efeito notável que isso teria numa mudança politica na União e o efeito de contágio sobre os restantes partidos socialistas poderia ser o facto politico mais importante das últimas largas décadas.


*  -  O Manifesto foi alvo de uma divulgação prévia não autorizada. A versão oficial apenas será divulgada na próxima quinta-feira.



12/05/17

Irá Trump implodir o sistema americano?

A América preza muito o seu sistema de "cheks and balances". Por isso não há memória de um Presidente ter, de uma forma tão radical, despedido um Director do FBI. Mas foi isso que Trump fez. Inicialmente Trump pretendeu aproveitar o comportamento de Comey na campanha presidencial - o famoso caso dos emails de Clinton - para justificar a demissão, mas, posteriormente, surgiram outras explicações. Para uns o que terá determinado a decisão do presidente foi o facto de Comey se ter recusado a jurar-lhe  lealdade optando por prometer apenas e só ser honesto. Mas, parece irrefutável que o ex-director do FBI tinha solicitado mais recursos para avançar na investigação em curso sobre a ingerência russa nas eleições presidenciais americanas e nas ligações entre a sua campanha eleitoral e os russos.

Mais recentemente o próprio Trump admitiu que a investigação sobre "this Russia thing" pesou na sua decisão.

Seja como fôr esta situação levanta densas nuvens sobre o futuro de Trump enquanto presidente, já que são cada vez mais as vozes que contestam a actuação presidencial e o facto de ele parecer querer situar-se acima da lei. Os Republicanos, na sua mioria submetidos ao poder de Trump, asseguram, por enquanto, alguma protecção contra eventuais tentativas de avançar com um impeachement. Mas são muitos os que comparam a situação de Trump com a de Nixon, sendo que o velho presidente nunca teve coragem para demitir o então presidente do FBI e foi incapaz de questionar o velho sistema do "cheks and balances". Mas Trump é um revolucionário, como o definiu Pacheco Pereira, e isso não tem que ser - não é - necessariamente uma coisa boa.

Trump já tinha mostrado ao que vinha quando demitiu Sally Yates. Esta foi a primeira pessoa que trump despediu quando chegou ao poder. Mas na vetusta democracia americana os despedidos não perdem a voz e o poder que o seu conhecimento lhes assegura. Por isso as declarações de Yates ao Senado devem ter levado Trump a pensar que despedir alguém não é solução para todos os seus males. Por isso não se percebe que tenha insistido com o director do FBI. A menos que Trump se mova por desespero, o que poderá significar que o risco que ele corre é muito maior do que aquilo que nós podemos avaliar.

11/05/17

O nomadismo eleitoral de Mélenchon e outros detalhes

Jean LUc Mélenchon já escolheu a circunscrição na qual irá submeter-se ao voto dos cidadãos. Será em Marselha, numa circunscrição gerida pelos socialistas. [ la 4e des Bouches-du-Rhône] 
Esta decisão tem sido objecto de criticas já que era esperado que o líder da França Insubmissa defrontasse a Frente Nacional nos bairros em que essa força politica é muito forte, como acontece na 3ª circunscrição nos Bairros do Norte de Marselha.
Na verdade o que Mélenchon faz é candidatar-se num local em que as hipóteses de ser eleito são muito elevadas. Nada de diferente do que habitualmente se faz. Pesa na sua decisão o facto de em 2012 não ter sido eleito para o Parlamento, por ter sido derrotado por um candidato da Frente Nacional, que tinha deicidido enfrentar num terreno dificil. Mas não deixa de ser verdade que o principal adversário de Mélenchon é o PSF e que a opção politica de fundo é por tomar o seu lugar, mais do que combater a FN.

Esrta decisão tem provocado algumas críticas, sobretudo da esquerda marselhesa, que acusa o ex-candidato presidencial de "nomadismo eleitoral". No entanto, é claro que em Marselha a frança Insubmissa tem uma forte base eleitoral, muito superior à dos socialistas.

Manuell Valls está a ser ridicularizado pela sua decisão de integrar a maioria de Macron e porque a sua adesão foi recusada. Uma ridicularização que coloca Valls na sua verdadeira dimensão.

Hamon, o candidato socialista esmagado na primeira volta, anunciou que irá lançar um movimento sem deixar o PSF. Ao mesmo tempo parte significativa das propostas de Hamon não integram a candidatura dos socialistas às legislativas.[as mais a esquerda, como seria de esperar] Esse facto terá estado na base da decisão tomada pelo ex-candidato de lançar o seu próprio movimento.

A reconfiguração da direita e a sempre eterna reconfiguração da esquerda estão aí a decorrer a céu aberto. Vamos ver quem ganha e quem perde. Tempos muito interessantes, os que se vivem em França.

Entretanto deixo aqui um link para uma análise de Dani Rodrick sobre o programa económico de Macron, que, recorde-se, Piketty descreveu como um candidato do passado por força das suas propostas económicas.

09/05/17

Manuel Valls. A descarada atracção do poder.

Bastaram dois dias para que Manuel Valls viesse declarar que pretende fazer parte da nova maioria presidencial e integrar o partido de Emmanuel Macron, que sucederá ao movimento "En Marche".
O homem que queria mudar o nome do partido socialista, e a quem Hollande atribuíu o lugar de primeiro-ministro, mostra, mais uma vez, o que o move na politica.
Claro que se pode sempre analisar a debacle dos socialistas à luz da crise da social-democracia  - uma operação que agrada tanto à direita como a parte da esquerda - não cuidando de saber quais as responsabilidades da dita, face aos protagonistas que ascenderam nos partidos socialistas e que colocaram o socialismo num baú de coisas antigas. Os que aderiram entusiasticamente à terceira via e seus derivados e que assumem como inevitáveis a liderança do mercado e a economia da desigualdade.
Ficamos com uma dúvida: irá Hollande seguir o seu primeiro-ministro dilecto?

07/05/17

Ainda as eleições em França.A vitória de Macron.

Macron venceu, como a maioria desejava, face ao cenário Macron versus Le Pen. O apoio a Macron não tem qualquer comparação com o que sucedeu em 2002.
Além de uma reconfiguração da esquerda - a implosão do PS francês é o principal facto politico à esquerda - vai haver uma reconfiguração da direita. Macron não goza de grandes simpatias nos sectores mais conservadores, os que apoiaram Fillon e que na sua maior parte votaram Le Pen na segunda volta.
Neste momento a Frente Nacional é o maior partido francês e isso era inimaginável há uns anos atrás. Há razões para isso: razões politicas, razões que se fundam na forma como a Europa tem sido governada, na forma como a França foi governada. Hollande não alterou grande coisa ao que Sarkozy tinha feito. A sua deriva securitária, a sua falta de autoridade no contexto da Europa, e a sua subserviência em relação a Merkel ditaram este resultado. Le Pen está institucionalizada. Agora irá limpar a imagem do partido profacista, mudando-lhe o nome. Voltará mais forte ou mais fraca, isso depende dos que no poder e à esquerda fizerem.


Em Julho nas legislativas ficaremos a saber com que linhas se coserá o futuro da França e da Europa.
Para quem tiver interesse deixo um conjunto de links onde poderão ver uma entrevista de Macron com os jornalistas da MEDIAPART. (aqui, aqui , aqui, aqui e aqui )
Ajuda a perceber que politico é este que os franceses acabam de eleger seu Presidente da República.

PS - o link para esta entrevista foi-me enviado pelo meu amigo Pedro Caldeira Rodrigues, jornalista da Lusa, a quem agradeço.

06/05/17

Eleições em França.. A magna questão do FASCISMO.

Marie Le Pen é uma fascista, como fascista é o seu partido, a Frente Nacional. Se eu votasse em França votaria Macron nesta segunda volta das Presidenciais, sem nenhuma espécie de dúvida.
Julgo que a esquerda francesa deverá fazer o mesmo. A esquerda é anti-fascista, a menos que já não seja de esquerda.
Macron poderá ter muitos defeitos, politicamente falando, mas não é o teatchariano Fillon, muito menos é alguém que se possa comparar, politicamente falando, com a fascista Le Pen.
Como recorda Varoufakis, no Guardian,  o combate do próximo domingo é uma reedição do que se travou em 2002, quando Chirac enfrentou o senhor Jean Marie-Le Pen, o velho fascista, pai da actual candidata. Há uma diferença nas eleições: em 2002 toda a esquerda apoiou Chirac. A diferença é, aliás, assustadora. Uma parte da esquerda, a que Mélenchon representa, não apoia Macron, havendo índicios de que uma parte significativa dos eleitores da França Insubmissa não votarão no candidato do En Marche.
Há momentos em que é necessário escolher e tomar decisões, mesmo que tenhamos que engolir alguns sapos pelo meio.
O combate que a esquerda trava é por uma sociedade  mais justa, mais democrática, mais progressista. Esse combate não pode ignorar a ameaça concreta do fascismo. Colocar no dois pratos da balança, numa suposta posição de equilíbrio, o fascismo e a direita, mesmo  a mais conservadora, é um erro crasso e politicamente um desastre.
Recordemos o que escreveu Walter Benjamim [ citado por Neil Leach] acerca da ascensão do fascismo na Europa na primeira metade do século passado e sobre as consequências dessa ascensão.

"(...) O problema da modernidade reside[ para Benjamim] na tentativa de conciliar a ascensão da massa do proletariado com o sistema de propriedade vigente. Uma das vias para a resolução deste conflito consiste em recorrer ao fascismo, enquanto meio político que "tenta organizar a massa do proletariado recentemente criada sem interferir no sistema de propriedade que essa massa pretende eliminar". O fascismo goza assim de particular poder de atracção no ínicio da modernidade, tendo, para Benjamin, como "resultado lógico a introdução da estética na esfera política". As consequências são assustadoras: "Todos os esforços para introduzir a estética na política culminam num só ponto: a guerra. A guerra, e só a guerra, é capaz de criar um objectivo para os movimentos de massas em larga escala e respeitar simultaneamente as relações de propriedade tradicionais"(...)"


É isso que a senhora Le Pen se propõe fazer : organizar o descontentamento das massas vitimas das politicas dominantes na União Europeia, e canalizar essa sua energia para manter as relações de propriedade e de poder dominantes e assegurar não só a continuação da exploração mas também uma forte repressão dos direitos básicos dos cidadãos e da própria ideia de democracia. Trata-se de uma movimento de carácter fascista que quer aproveitar o descontentamento crescente de sectores cada vez mais amplos, para, em última análise, reprimir e esmagar qualquer movimento que se funde sobre esse descontentamento. Um movimento fortemente xenófobo e fortemente racista mas que não recusa o voto dos africanos e dos restantes emigrantes em solo francês, que pretende, depois, colocar fora das fronteiras.

04/05/17

Lisboa para todos ? (actualizado)

A CM Lisboa anuncia um parque verde em Marvila. Acontece que esta área, muito marcada pelo uso industrial- portuário obsoleto, foi sempre uma área popular que liga Marvila e o Beato através da rua do Açucar.
Uma área que se foi degradando e perdendo o seu carácter popular e operário ao longo de décadas e que importaria agora revitalizar, sobretudo intervindo nas condições de alojamento.(*)

No contexto de uma reabilitação em curso que não pensa na reabilitação urbanística e que ignora os usos com menor poder de compra, sobretudo dentro do uso urbano, a construção de um parque verde pode apenas ser  - acho eu que é -  um excelente negócio de promoção/valorização  do Plano de Pormenor da Matinha e do Loteamento dos Jardins de Braço de Prata. Plano e Loteamento que privatizam uma vasta frente de rio através da interrupção da ligação da Avenida Infante D.Henrique com a Rua da Cintura do Porto.

Chega a ser chocante que a intervenção na frente ribeirinha se faça apenas e só com um denominador comum: fazer tudo para favorecer os promotores privados, ignorando as populações que ao longo de séculos fizeram de Lisboa aquilo que ela é. Tornar a vista do rio um produto de valorização da oferta imobiliária retirando os cidadãos do usufruto da simples vista do rio da sua cidade. Bom há aqui a necessidade de fazer uma correção: as classes com maior poder aquisitivo ficarão com a frente de rio só para elas. Mas isso não tem nada a ver com a famosa declaração do "Lisboa para todos", pois não?

(*) - Seria necessário para intervir nas condições de alojamento planear o território desde Santa Apolónia à Praça 25 de Abril não apenas a faixa entre a Rua do Açucar  e o rio, mas juntando as áreas contíguas das freguesias de Marvila e do Beato. Um PP que apostasse na revitalização da frente do rio, libertando-a dos usos portuários obsoletos, mas que trabalhasse sobre as condições de habitação e projectasse uma oferta diferenciada e capaz de responder à lógica da "Lisboa para todos". Uma oferta de habitação plural com uma componente de habitação nova e outra intervindo na reabilitação da habitação de cariz marcadamente popular.  O que se está a passar é o futuro de Lisboa e a natureza profunda da cidade futura a ser determinada pelo interesse dos promotores.

Ler os outros: Francisco Louçã e os "70 mil milhões de migalhas"

Francisco Louçã, no blogue que partilha no Público com Bagão Félix e  Ricardo Cabral,  escreve sobre o "Relatório sobre  a Sustentabilidade da Dívida Externa e Pública".

O economista salienta três novidades que o Relatório contem: "o facto de serem apresentadas propostas concretas e bem estudadas"; o facto de se afirmar que a exigência resultante do Tratado Orçamental de "gigantes saldos primários exigem uma austeridade destruidora"; e por fim o facto "de pela primeira vez na sua história, o PS se compromete com uma proposta de reestruturação da dívida. Nunca o tinha feito".
São analisadas as reacçõe ssucitadas por este trabalho, em particular dos comentadores mais identificados com o status quo e com a TINA.

De facto, como já aqui tínhamos referido, esta foi uma importantíssima iniciativa politica e o resultado deste trabalho, realizado por um conjunto plural de economistas, um excelente contributo para alterar as condicionantes que tolhem o nosso progresso. É engraçado, ao mesmo tempo que triste, ver a ligeireza com que à direita, e algumas vezes à esquerda, se pretende minimizar o documento. Há quem esteja muito confortável com a banalização do mal.

03/05/17

"Eu não tenho culpa do tráfico de escravos"

A respeito do papel dos portugueses no tráfico de escravos, alguns (como a Maria João Marques ou o Vitor Cunha) têm contra-argumentado que eles pessoalmente (e provavelmente nenhum português vivo) nunca escravizaram ninguém.

De certa forma têm razão - nem eles nem eu temos qualquer culpa da escravatura (tal como não temos nenhum mérito nos Descobrimentos, ou na poesia de Camões ou Pessoa, e eu pelo menos não tenho nenhum mérito nos golos do Cristiano Ronaldo).

Mas não se pode querer sol na eira e chuva no nabal – atendendo que para as coisas positivas se costuma praticar o coletivismo intergeracional, reclamando com orgulho coisas que alguns portugueses fizeram há 700 anos, a coerência implica que também o pratiquemos para as coisas negativas - aliás, lembram-se como esta história toda começou, não se lembram? Com o Marcelo Rebelo de Sousa a falar com orgulho de Portugal ter sido dos primeiros países a abolir o tráfico de escravos; na altura não vim ninguém a reclamar  “eu não aboli tráfico de escravos nenhuns”.

Diga-se que não estou a acusar, p.ex., a Maria João Marques de contradição, já que nunca a vi a defender o coletivismo intergeracional, mas a maior parte dos políticos com responsabilidades e grande parte dos comentadores praticam-no regularmente, comemorando datas históricas sempre que surge a oportunidade (já o Vitor Cunha é outra história, já que penso que ele defende que os descendentes de imigrantes possam perder a nacionalidade e ser deportados se cometerem crimes - não consigo encontrar o link, mas tenho a ideia que ele escreveu algo há uns anos nesse sentido no Blasfémias; se for assim e eu não estiver a fazer confusão, não me parece coerente para umas coisas - responsabilidade pela escravatura - achar que as pessoas devem contar como indivíduos e para outras - possibilidade de perder a nacionalidade e ser deportado - já devem contar como descendentes dos seus antepassados).

Há mais de dez anos, Chris Dillow escrevia algo sobre isso, a respeito do Reino Unido:
Should Britain apologize for its role in the slave trade? There's something about this that puzzles me.

Put it this way. Crudely speaking, there are two conceptions of society.

1. We're just a collection of atomized individuals. Though associated with libertarianism, this is also the Rawlsian view.

2. Society is an organism with a history. It's a "partnership not only between those who are living, but between those who are living, those who are dead, and those who are to be born." The quote is Edmund Burke's, but this position seems also that of Gordon Brown, who speaks of a "golden thread" running through history.

Now, you'd expect adherents of position 1 to think it absurd to apologize for slavery, as Longrider does. But supporters of position 2 would be more likely to apologize, because they regard slave traders as a part of British society and tradition.

However, when we look at who's apologizing and who isn't, we see no such correlation. (...)

I suspect Rawlsian liberals are more likely to want to apologize than Burkean conservatives.

3 de maio de 1937

Há 80 anos, em Barcelona, a "Guarda de Assalto" (a policia da República) tentou tomar o controlo da central telefónica, controlada pelos anarquistas.

Nesse dia, e em resposta, rebentam confrontos por toda a cidade, opondo, de um lado, a polícia e os Comunistas (o PSUC - Partido Socialista Unificado da Catalunha), e, do outro, os anarquistas e o POUM (Partido Operário de Unificação Marxista, um partido reunindo várias facções dissidentes do movimento comunista); nos primeiros dias de combates, até se poderá dizer que a aliança anarquista-poumasista terá levado a melhor, mas face aos apelos dos anarquistas Garcia Oliver e Federica Montseny (ministros do governo republicano) para "cessar-fogo", e também com a vinda de reforços de de outras localidades para apoiar a polícia, os comunistas acabaram por controlar  a situação, terminado os combates a 8 de maio.

O resultado imediato do desfecho das "jornadas de maio" foi a substituição de Largo Caballero por Juan Negrin na presidência do governo da Repúblico e a saída de Oliver e Montseny do governo, com o reforço dos poder dos comunistas e da ala direita do PSOE, em detrimento dos anarquistas e da ala esquerda dos socialistas, e o acentuar do refluxo das transformações revolucionárias que haviam ocorrido na Espanha republicana (ou pelo menos na Catalunha e em Aragão).

Meses mais tarde, o POUM será ilegalizado sob a acusação de que os acontecimentos de maio terão sido uma tentativa de golpe de Estado, sendo o seu líder, Andrés Nin, assassinado.

[Como resultado não imediato, poderá ser considerada quase toda a obra posterior de George Orwell, combatente na milícia do POUM, que, a começar pela Homenagem à Catalunha - onde narra os acontecimentos atrás referidos - e a acabar n'O Triunfo dos Porcos e em 1984 - se calhar os únicos livros que muita gente conhece dele - anda largamente à volta do tema do comunismo "oficial" como traidor da revolução e no final similar ao capitalismo e ao fascismo]



Na Homenagem..., Orwell apresenta a clivagem que na altura mais dividia o POUM e os comunistas ortodoxos:
A «linha» do PSUC, pregada na imprensa comunista e pró-comunista de todo o mundo, era aproximadamente a seguinte:

«Presentemente a única coisa que interessa é ganhar a guerra; sem vitória na guerra tudo o mais não tem significado. Portanto este não é o momento em se falar em andar para a frente com a revolução. Não nos podemos dar ao luxo de alienar os camponeses, impondo-lhes a colectivização , assim como não nos podemos dar ao luxo de assustar e permitir que se afaste a classe média, que combateu ao nosso lado (...). Quem tentar transformar a guerra civil numa revolução social estará a fazer o jogo dos fascistas e será de facto, se não em intenção, um traidor»

A linha do P.O.U.M. divergia desta em tudo, excepto, evidentemente, na importância de ganhar a guerra. (...) A sua «linha» era mais o menos a seguinte:

«É tolice falar em oposição ao fascismo por meio de uma "democracia" burguesa. "Democracia" burguesa é apenas um nome diferente do capitalismo, assim como o fascismo. Lutar contra o fascismo em nome da "democracia" é lutar contra uma forma de capitalismo em nome de uma segunda, susceptível de se transformar na primeira em qualquer momento. A única verdadeira alternativa contra o fascismo é o governo dos trabalhadores. Se aceitarmos qualquer objetivo que fique aquém deste, das duas uma, ou entregamos a vitória a Franco ou, na melhor das hipóteses, deixamos o fascismo entrar pela porta das traseiras. A guerra e a revolução são inseparáveis»

(...) Portanto, de uma maneira geral, o alinhamento de forças era o seguinte: de um lado, a C.N.T.-F.A.I., o P.O.U.M. e uma fação dos socialistas, defendendo o governo dos trabalhadores; do outro, a facção direitista dos socialistas, os liberais e os comunistas, defendendo um governo centralizado e um exército militarizado.
[Eu sei que é uma situação que não tem nada a ver, mas isto faz me lembrar as discussões sobre a segunda volta das presidenciais francesas]

01/05/17

1º DE MAIO