23/05/17

A reforma constitucional de Manuel Braga da Cruz

Manuel Braga da Cruz, professor da Universidade Católica, parece que vai apresentar uma proposta de "reforma do sistema político", que explicou ao Público:
Considera que “a representação proporcional é propícia à formação de governos minoritários e isso não estimula uma cultura de negociação e coligação”. Não é uma contradição nos termos? Parece acontecer o contrário...

Eu não atribuo a dificuldade de realização de consensos ao sistema proporcional, pelo contrário, ele favorece a consociatividade. A dificuldade de obtenção de consensos não está no sistema eleitoral. O que este provoca é, por um lado, o afastamento do cidadão do eleito – porque se votam listas de deputados escolhidos pelos partidos. Falta a pessoalização do voto, que é uma exigência crescente no sistema português. Por outro lado, o sistema eleitoral não favorece a governabilidade. Defendo um sistema misto, muito semelhante ao alemão.

Quer explicar como é?

Um sistema de círculos uninominais locais para metade do Parlamento com eleição maioritária e um círculo nacional com voto de lista em eleição proporcional para a outra metade. Isso teria a vantagem de melhorar a proporcionalidade, porque esta varia na razão da magnitude das circunscrições. Onde se obtém a melhor e a máxima proporcionalidade é num círculo nacional.
Lendo esta conversa fica sem se perceber se Braga da Cruz defende um sistema semelhante ao alemão ou semelhante ao venezuelano; ele primeiro diz que defende um sistema "muito semelhante ao alemão" mas a descrição que ele dá a seguir parece indicar que ele está a pensar mais num sistema parecido com o da Venezuela (frequentemente chamado de "sistema russo", mas tal não é muito correto, porque a Rússia muda de sistema eleitoral quase de eleição para eleição, e só às vezes usa esse sistema).

A grande diferença entre os dois sistemas - no sistema venezuelano/"russo" parte dos deputados são eleitos por círculos uninominais, e outra parte (30% na Venezuela, embora Braga da Cruz proponha metade) são eleitos proporcionalmente num circulo nacional; no sistema alemão metade dos deputados são eleitos por círculos uninominais e outra metade são apurados num circulo nacional (ainda que depois distribuídos por círculos regionais) de forma a que o TOTAL dos deputados seja proporcional.

Exemplificando - vamos supor um parlamento com 230 deputados, 115 eleitos em círculos uninominais e 115 num círculo nacional.

Num sistema de tipo alemão, se um partido tiver, p.ex., 35% dos votos e for o mais votado em, digamos, 60 círculos uninominais, vai eleger esses 60 deputados e mais uns 20 (35% de 230 menos os 60 já eleitos) no circulo nacional.

Já num sistema de tipo venezuelano/"russo", se um partido tiver 35% dos votos e for o mais votado em 60 círculos uninominais, vai eleger 60 deputados e mais uns 40 (35% de 115) no círculo nacional.

Uma nota - há quem diga que o sistema venezuelano/"russo" é o preferido de ditaduras a fingir que são democracias: a existência de um circulo nacional por lista faz com que os partidos (nomeadamente o dominante) tenham muito mais coesão e disciplina interna (e obediência à direção) do que num sistema uninominal, e ao mesmo tempo  o facto de grande parte dos deputados serem eleitos por círculos maioritários (sem compensação posterior) permite ao partido dominante garantir maiorias (eu tenho a ideia de ter lido algo nesse sentido no blog Fruits and Votes, mas não consigo encontrar).
Num tempo em que os cidadãos reivindicam mais participação na democracia, esta prioridade que dá à governabilidade não entra em confronto com as expectativas dos eleitores?

Penso que não. A democracia é um regime de mandatos. O que se pede de um Governo é que governe, tendo nós em democracia a possibilidade de, depois, pedir contas a esse Governo e de o julgar em eleições. O que se pede é que o Governo tenha força suficiente para impor o interesse público e o bem comum aos interesses particulares. As democracias mais consolidadas do mundo não têm governos derrubados a meio das legislaturas.
Penso que aqui Braga da Cruz está como aquelas pessoas que compram um fato e uma cartola para ficarem ricos; mesmo que nas tais democracia consolidadas não costume haver quedas de governos a meio das legislaturas, isso não quer dizer que, por via de alterações constitucionais, tornar difícil a queda de governos vá fazer com que a democracia fique mais consolidada. Aliás, veja-se que os regimes presidencialistas, onde supostamente é legalmente quase impossível o governo ser derrubado a meio do mandato, são exatamente os países onde os golpes de Estado proliferam

1 comentários:

Niet disse...

Muita atencao, sff. Morreu em Paris, a 9 deste mês, um militante revolucionário heterodoxo e um historiador fora de série: Carlos da Fonseca Trata-se de mais uma
perca incomensurável para o pensamento libertário português. Investigador e docente na Sorbonne, Carlos da Fonseca tinha doado ao Arquivo de Pacheco Pereira a sua Biblioteca. No final dos anos 80 publicou na Antigona dois volumes decisivos sobre o Movimento Libertário português e o 1° de Maio em Portugal. Niet