A propósito do
polvo das relações entre o poder político e o sector da economia social, prossegue incansável a tarefa de tentar extirpar o tentáculo caído em desgraça, minorando as consequências do nefasto incidente, permitindo que tudo continue a fazer-se como até aqui.
O principal objectivo é impedir qualquer reflexão sobre a relação entre o Estado e os diversos actores que actuam nas esfera da prestação dos serviços públicos, em substituição do poder público.
Em particular uma reflexão que coloque sob escrutínio a avaliação do custo e do benefício dessa delegação de poder, que questione as prácticas de gestão numa lógica que valorize a transparência e o combate ao tráfico de influências e à corrupção.[ Tarefa árdua, convenhamos]
Para a concretização deste objectivo [de normalização] concorrem duas condições. Em primeiro lugar a existência de comportamentos "desviantes" por parte de alguns actores, o que permite o sacrifício público dos culpados, mantendo todas as restantes variáveis constantes. [recorro à formulação matemática, já que estamos perante uma questão de precisão]. Se algum dos culpados for um actor político, idealmente um ministro, pelo menos um secretário de estado, a tarefa de normalização atinge quase os 100% de eficácia. Se existirem relações entre os actores que invadam o campo familiar dos políticos, dos afectos , ou da exploração da luxúria, atingimos o paraíso. Abatem-se os infractores, nomeiam-se os substitutos, que tomam posse no próprio dia, continua a vida a decorrer com raríssimos sobressaltos.
No caso em apreço o secretário de estado ofereceu-se para o sacrifício. Não lhe restava alternativa, face aos "desenvolvimentos". Como referiu Carlos César, atrasou-se pelo menos 24 horas a apresentar a demissão. Olhando de longe pareceu-nos que nunca deveria ter sido nomeado secretário de estado.
No entanto isto não ficará por aqui. Vieira da Silva está preso por arames. É raríssimo um ministro com uma situação tão frágil conseguir evitar a queda. Parece-me que Vieira da Silva irá ter que sair do Governo a bem, pelo seu próprio pé, ou ajudado por Belém, face às evidências cada vez mais evidentes, passe o pleonasmo. O recurso da auditoria às contas, que ele aprovara como membro dos orgãos sociais da Raríssimas, é uma tentativa desesperada de se manter à tona. Apesar de ser um peso pesado do PS julgo que não tem condições políticas para se manter no cargo. Não virá daí mal ao mundo, acho eu. Falta saber se Vieira da Silva leu as declarações de Carlos César sobre o timing certo de saída do seu ex-colega secretário de estado da saúde. Pareceu-me que Carlos César não estava a falar apenas para Manuel Delgado.
Este clima de promiscuidade entre os dirigentes das Instituições que beneficiam dos apoios do Estado e os políticos com potencial de acesso à governação, e a sua vasta corte, é um dos elementos estruturantes da gestão dos fundos comunitários e de uma parte importante parte dos dinheiros do Orçamento Geral do Estado. São estas relações que "consolidam", e "legitimam", um conjunto de prácticas que substituem os códigos e as regras gerais de transparência e combate à corrupção pelas regras convenientemente não escritas, mas conhecidas e aplicadas pelas pessoas que contam. São estas regras que moldam a forma como o país se constrói, todos os dias em todo o território.São elas a sólida estrutura sobre a qual se fundam as prácticas mais eficazes da corrupção.
Para a direita parlamentar o problema coloca-se no plano dos comportamentos desviantes e da culpa individual. Havendo culpa há que encontrar os culpados - no plano dos actores públicos, exclusivamente - e castigá-los. A demissão basta-lhes. A cobrança política atingirá sempre o primeiro-ministro que se move atordoado entre trapalhadas sucessivas. Nunca deixam de distinguir entre a culpa, e o castigo a aplicar, e a defesa das virtudes do modelo de transferência das funções do Estado para os privados.
Infelizmente o modelo que tinha virtudes, no caso das Instituições de Solidariedade Social, degradou-se, e hoje muitas dessas instituições são máquinas de acentuar as desigualdades presentes nas sociedades locais e regionais, com uma gestão libidinosa dos dinheiros públicos e a criação de mecanismos financeiros, mais ou menos informais, de acesso aos serviços, que os tornam inacessíveis para os mais necessitados. Articulada a gula dos dirigentes pelo luxo e pela promoção social, com a fartura de recursos financeiros disponíveis, com a impunidade que resulta do sistema público de contratação estruturado em torno dos "abençoados" ajustes directos, organizaram-se "estruturas proactivas", integrando consultores, projectistas, prestadores de serviços e uma panóplia de "competências", cuja manutenção e continuidade está fundada na proximidade ao poder, seja ele representado pelo futuro secretário que irá trazer muito guito, seja pelo futuro ministro que ajudou a conceber e aplicar o "sistema".
Em segundo lugar a ronda pelos partidos parlamentares que, um após o outro, se perfilam perante as Câmaras e debitam para os cidadãos-telespectadores as suas preocupações e as recomendações/exigências que entendem fazer ao Governo. Os partidos, todos eles, nestas ocasiões ditadas pela "Agenda", mostram como utilizam o dinheiro que recebem e como desconhecem o que se passa no país, em particular a forma como o país é governado. São, no entanto, capazes de, logo após a detecção do próximo escândalo, virem questionar a necessidade urgente de se obterem explicações e de descobrir de quem foi a culpa.
Neste caso valia a pena - pegando na educação - relações público-privados - no fornecimento das cantinas escolares - relações público-privados - prestação de serviços aos idosos e a situações como a das crianças com doenças raras - relações público - privados - prestação de cuidados de saúde - relações público-privados - questionar o modelo económico que sob o argumento de uma propalada eficiência económica transfere para os privados a gestão de importantes serviços públicos e as fartas dotações orçamentais que as viabilizam.
Talvez os partidos e os seus assessores, todos eles suportados pelo Orçamento Geral do Estado, e muito bem, devessem devolver à sociedade esse esforço financeiro, com um trabalho proactivo de defesa do interesse público. Que podia começar por questionar o próprio modelo de gestão em que o Estado se assume como cobrador de impostos, quanto mais melhor, para financiar instituições que se revelam depois muito generosas a adquirir serviços e consultadorias aos que beneficiam do capital social de terem as relações certas e os conhecimentos que contam numa economia de mercado ... social.
Sob pena de chegarmos à conclusão que uma
jornalista da TVI, com o seu staff, e um orçamento centenas de vezes mais reduzido, poder prestar à República o inestimável serviço de contribuir para que o ar se mantenha pelo menos ... respirável. Coisa que por estes dias o Parlamento não mostra capacidade, nem vontade, para fazer.
PS- à margem deste raríssimo embaraço, estão hoje a anunciar um acordo entre o Governo e o BE que reduz a contribuição para a Segurança Social dos recibos verdes a partir de ... 2019. Porque será que não incluíram a - justa - medida no Orçamento de 2018?