Em novembro e dezembro de 2015, Antonio Costa e Mauricio Macri substituíram, respectivamente, Cristina Kirchner e Passos Coelho como governantes dos respetivos países.
Face à atual crise argentina, muita gente diz que ainda é culpa dos governos do casal Kirchner, e ainda do default à dívida em dezembro de 2001 (sob o presidente interino Adolfo Rodriguez Saa). Curiosamente são os mesmos que, perante qualquer problema que exista neste momento em Portugal, recusam visceralmente que ainda possa ser culpa das políticas do governo anterior.
Claro que se pode perguntar se não se pode também dizer exatamente o inverso - em parte, mas creio que não com tanta intensidade (pode ser erro de perceção meu, mas parece-me que até se vê mais gente de direita a falar da crise argentina - e tentando defender o presidente atual - do que de esquerda).
Já agora, a ideia que a crise é culpa dos Kirchner parece muito difícil de conciliar com a "hipótese dos mercados eficientes" - afinal, "os mercados" sabem que políticas o governo argentino seguiu desde 2003 até 2015, logo (já em 2015) todos os efeitos dessas políticas já estariam incorporados no valor do moeda argentina, nos juros da sua dívida, etc. Assim, se em 2018 o peso argentino começou a desvalorizar, só pode ter sido por nessa altura (e não 3 ou 10 anos antes) ter havido alguma mudança de opinião dos investidores sobre as perspetivas da economia argentina.
31/08/18
29/08/18
Grécia. Porque celebra Centeno? Altos cargos e pequenos homens.
por
José Guinote
A propósito do texto que aqui escrevi sobre a lamentável declaração de Centeno suscitada pelo fim do resgate imposto pela Troika à Grécia, convêm recordar alguns aspectos não referidos no post, já que na data em que o escrevi eram ainda escassas as reacções.
Do lado da esquerda algumas figuras, associadas aos diferentes partidos que suportam a geringonça, manifestaram a sua discordência. Do lado do PS apenas João Galamba foi particularmente duro com a apreciação que fez do lamentável discurso. Numa declaração no Twiter o deputado em três linhas referiu o essencial do discurso de Centeno: "um vídeo lamentável que apaga o desastre que foi o programa de ajustamento grego e branqueia todo o comportamento das instituições europeias". Claro que Galamba não obteve qualquer apoio explicito por parte de algum dos mais importantes dirigentes do PS. Apanhou, como era de esperar, com as normais acusações de radicalismo burguês proferidas por figuras menores do seu partido, as quais ainda não se recompuseram da traumática experiência da Geringonça. gente que anseia pelo regresso ao passado.
No Bloco coube a Mariana Mortágua e a José Gusmão fazerem as honras da casa. O PCP não se dignou a emitir qualquer opinião específica, já que, para os comunistas, o problema, em última análise, está na UE e, num plano ainda mais geral, na existência do capitalismo. O resto são pequenos detalhes de uma absoluta irrelevância.
Ninguém se lembrou de salientar a incoerência de um discurso político, e de um acordo político centrado na condenação da austeridade, com a declaração de Centeno. Percebe-se o incómodo: como afirmámos no primeiro post não é possível ser-se Presidente do Eurogrupo e ministro das Finanças de um Governo apostado no combate à austeridade. Sobretudo se no Eurogrupo o nomeado Presidente abdicar do que pensava, ou fingia pensar, quando combatia a austeridade, a nível interno.
Centeno tem mais do que uma face. É um facto. O Centeno que, em 2 de Dezembro de 2015, a propósito da propalada saída limpa, anunciada um ano antes por Pedro Passos Coelho, afirmou : "Hoje, caídas todas as máscaras, e levantados todos os véus, percebemos que a expressão "saída limpa" foi um resultado pequeno para uma propaganda enorme", é a negação do Centeno que fez a declaração sobre o fim do resgate grego.
Propaganda enorme, disse ele. "Os gregos pagaram caro as más políticas do passado", diz ele agora, atribuindo aos erros próprios dos gregos as consequências da violenta punição que as instituições europeias lhes impuseram.
Apenas pequenos homens podem em cada momento vestir a fatiota que lhes destinam e falar de acordo com o guião de quem manda. Centeno falou como se fosse apenas uma máscara utilizada por wolfgang Schäuble, como fizera antes com Jeroen Dijsselbloem, para veicular a sua mensagem e louvar a sua política.
Isso mesmo referiu Viriato Soromenho Marques, num texto notável no Diário de Notícias. Centeno "o economista português que criticava as limitações estruturais da zona euro e que exibia os erros e os sacríficios inúteis das medidas de austeridade, eclipsou-se completamente". Há hoimens que são demasiado pequenos para os cargos que desempenham e que, por esse facto, são incapazes de assumir o poder de transformar a sociedade em que foram investidos. Homens pequenos que ficam para a história pelo mal que fizeram, quando tiveram a possibilidade de, mudando a política, melhorar a vida de milhões de europeus. Centeno não está para aí virado. Está preparado para subir mais alto na ortodoxia europeia e no sistema financeiro global. De que nos podemos queixar, nós portugueses que o temos como ministro das finanças ?
PS - o discurso de Centeno não "durou" mais do que meia semana na agenda da "Bolha Mediática". Há uma voragem da irrelevância e da vacuidade que tudo trucida à sua volta.
Do lado da esquerda algumas figuras, associadas aos diferentes partidos que suportam a geringonça, manifestaram a sua discordência. Do lado do PS apenas João Galamba foi particularmente duro com a apreciação que fez do lamentável discurso. Numa declaração no Twiter o deputado em três linhas referiu o essencial do discurso de Centeno: "um vídeo lamentável que apaga o desastre que foi o programa de ajustamento grego e branqueia todo o comportamento das instituições europeias". Claro que Galamba não obteve qualquer apoio explicito por parte de algum dos mais importantes dirigentes do PS. Apanhou, como era de esperar, com as normais acusações de radicalismo burguês proferidas por figuras menores do seu partido, as quais ainda não se recompuseram da traumática experiência da Geringonça. gente que anseia pelo regresso ao passado.
No Bloco coube a Mariana Mortágua e a José Gusmão fazerem as honras da casa. O PCP não se dignou a emitir qualquer opinião específica, já que, para os comunistas, o problema, em última análise, está na UE e, num plano ainda mais geral, na existência do capitalismo. O resto são pequenos detalhes de uma absoluta irrelevância.
Ninguém se lembrou de salientar a incoerência de um discurso político, e de um acordo político centrado na condenação da austeridade, com a declaração de Centeno. Percebe-se o incómodo: como afirmámos no primeiro post não é possível ser-se Presidente do Eurogrupo e ministro das Finanças de um Governo apostado no combate à austeridade. Sobretudo se no Eurogrupo o nomeado Presidente abdicar do que pensava, ou fingia pensar, quando combatia a austeridade, a nível interno.
Centeno tem mais do que uma face. É um facto. O Centeno que, em 2 de Dezembro de 2015, a propósito da propalada saída limpa, anunciada um ano antes por Pedro Passos Coelho, afirmou : "Hoje, caídas todas as máscaras, e levantados todos os véus, percebemos que a expressão "saída limpa" foi um resultado pequeno para uma propaganda enorme", é a negação do Centeno que fez a declaração sobre o fim do resgate grego.
Propaganda enorme, disse ele. "Os gregos pagaram caro as más políticas do passado", diz ele agora, atribuindo aos erros próprios dos gregos as consequências da violenta punição que as instituições europeias lhes impuseram.
Apenas pequenos homens podem em cada momento vestir a fatiota que lhes destinam e falar de acordo com o guião de quem manda. Centeno falou como se fosse apenas uma máscara utilizada por wolfgang Schäuble, como fizera antes com Jeroen Dijsselbloem, para veicular a sua mensagem e louvar a sua política.
Isso mesmo referiu Viriato Soromenho Marques, num texto notável no Diário de Notícias. Centeno "o economista português que criticava as limitações estruturais da zona euro e que exibia os erros e os sacríficios inúteis das medidas de austeridade, eclipsou-se completamente". Há hoimens que são demasiado pequenos para os cargos que desempenham e que, por esse facto, são incapazes de assumir o poder de transformar a sociedade em que foram investidos. Homens pequenos que ficam para a história pelo mal que fizeram, quando tiveram a possibilidade de, mudando a política, melhorar a vida de milhões de europeus. Centeno não está para aí virado. Está preparado para subir mais alto na ortodoxia europeia e no sistema financeiro global. De que nos podemos queixar, nós portugueses que o temos como ministro das finanças ?
PS - o discurso de Centeno não "durou" mais do que meia semana na agenda da "Bolha Mediática". Há uma voragem da irrelevância e da vacuidade que tudo trucida à sua volta.
24/08/18
LABOUR. Os objectivos políticos da campanha contra o Labour centrada no suposto antissemitismo de Corbyn (ACTUALIZADO)
por
José Guinote
O Miguel Madeira faz eco, no post anterior, da campanha contra o Labour com base numa práctica política acusada de antissemitismo. Com base numa estúpida definição do conceito
Esta campanha não se configura como um episódio passageiro destinado a marcar a agenda política britânica por uma ou duas semanas: estamos perante a mais demorada e consistente campanha política contra o Labour desde que, sob a direcção de Jeremy Corbyn, disputou as úlltimas eleições gerais e retirou a maioria absoluta aos Conservadores.
Quando das últimas eleições autárqicas tinhamos tido oportunidade de referir que, apesar da vitória do Labour, a campanha conduzida por vários sectores ligados à comunidade judaíca tinha evitado uma vitória estrondosa dos trabalhistas.Escrevi então que:
Parece que há algumas conclusões que é necessário retirar destes resultados. Em primeiro lugar a campanha contra o antissemitismo, que dominaria o Labour, foi muito eficaz. O partido de Jeremy Corbyn não foi capaz de lidar com a questão e a liderança, fortemente conservadora, da comunidade judaíca fez o resto. Os quatros círculos eleitorais com uma maior presença da comunidade são exactamente Barnet, Wandsworth, Westminter e Swindon.
O Miguel refere alguns blogues da direita mas, ainda recentemente, o Público dedicava duas páginas ao tema na sua edição do passado dia 15.08.2018. "Corbyn sob pressão para agir contra -antissemitismo no Labour", titulava o diário da Sonae. Esta noticia - com uma redacção ligeiramente diferente - está disponível online com o título " Corbyn na corda bamba, entre o apoio à Palestina e o antisemitismo".
A mudança no título não é nada inocente e entronca na questão de fundo que determina a campanha política em curso, que se organiza segundo dois eixos: por um lado promovendo a identificação das posições dos que sempre apoiaram a causa dos Palestinos, os que sempre apoiaram a luta da OLP - caso de Corbyn, mas também de gerações de dirigentes do Labour - os que defendem a solução política dos dois estados - Israel e Palestina - com uma posição de anti-semitismo; em segundo lugar colocando aqueles que criticam o estado de Israel - a propósito da sua política de ocupaçãoda Cisjordânia e do bloqueio à Faixa de Gaza, mas também da criação de um sistema de Apartheid no interior do estado de Israel, como está a acontecer com a polémica lei da Nacionalidade, promovida pela aliança entre Netanyahu e a extrema-direita judaíca - sob a acusação de serem antissemitas.
É aqui que radica, na minha modesta opinião, a recusa do Labour de subscrever na totalidade o conceito de antissemitismo promovida pela IHRA - International Holocaust Remenbrance Alliance. Na verdade não se trata de questionar a definição do conceito - por muito estúpida que ela seja como mostra o Miguel Madeira - mas um dos exemplos que o IHRA utiliza para o ilustrar. Como aqui se explica neste texto da autoria de um dos membros da comité executivo que lidera o Labour:
Olhemos agora para alguns factos: Em 2016 Ken Livingstone, ex-mayor de Londres e apoiante de Corbyn, fez declarações polémicas que suscitaram o repúdio da comunidade judaíca. Na edição online do Público refere-se que " o ex-autarca acabou por ser suspenso por Corbyn, acabando por se demitir em Maio". Na edição impressa esta parte foi omitida.
Podemos ver aqui que o ex-autarca de Londres - cuja carreira política pode ser parcialmente revisitada aqui - foi objecto de um processo disciplinar e suspenso, sendo essa suspensão prorrogada por um ano em 2017. Finalmente, em Maio de 2018, Livingstone decidiu deixar o partido. Essa decisão mereceu um comentário de Corbyn.
Mais recentemente uma deputada da ala conservadora dos trabalhistas, notória apoiante de Tony Blair e opositora desde sempre de Corbyn, acusou-o de ser racista e antissemita. Foi por esse motivo alvo de um processo disciplinar. Um outro ex-deputado, criticou duramente a comunidade judaíca do partido trabalhista por, segundo ele, estar a tentar minar a liderança de Corbyn aliando-se ao grupo de deputados apoiantes de Blair. Foi objecto de um processo disciplinar.
O Daily Mail, essa expressão máxima do jornalismo independente, desencantou uma imagem de Corbyn num cemitério em Tunes numa homenagem a quatro dos autores do atentado contra a delegação de Israel nos Jogos Olímpicos de Munique em 1972, que custou a vida a 11 atletas. As coisas não se passaram como o Daily Mail noticiou e Corbyn esteve em Tunes numa cerimónia que visou homenagear a memória das vitimas do bombardeamento efectuado por Israel sobre os escritórios da OLP na capital da Tunísia. Bombardeamentos israelitas que tinham sido repudiados pela senhora Teatcher, na altura primeiro-ministra inglesa. A noticia de que no local estão enterrados quatro operacionais palestinianos que, de acordo com o Público, estiveram envolvidos no atentado de Munique, não corresponde à verdade. Como foi desmentido nos dias seguintes não estão enterrados quatro operacionais no cemitério visitado por Corbyn. Estão lá dois dirigentes de topo da OLP: Salah Khalaf e Atef Bseiso. O primeiro foi o braço direito de Asser Arafat e foi assassinado pelo grupo Abu Nidal. Era um moderado, com ligações ao ocidente. Razão suficiente para ser odiado pelos israelitas. Quanto a Bseiso, igualmente assassinado nessa altura, negou sempre qualquer ligação ao atentado de Munique.
Owen Jones desmascara a hipocrisia com que se pretende atacar Corbyn a propósito do seu suposto antissemitismo e mesmo de um disparatado racismo. E deixa claro que havendo que denunicar o antissemitismo, que deve ser combatido, isso nunca pode ser um pretexto para que seja abandonada a causa do povo Palestiniano e que as torpes actuações da direita israelita, lideradas pelo tenebroso Netaniahu possam ser aceites. O Labour não pode aceitar que seja adequado manifestar cumplicidade com a violência perpetuada pelo estado de Israel, ao mesmo tempo que se condena qualquer solidariedade com o povo palestiniano.
Há um facto que resulta desta discussão: o Labour está debaixo de fogo face à proximidade ao poder e, sobretudo, face à notória viragem à esquerda do partido. O Labour de Corbyn é a maior ameaça à ordem internacionalmente estabelecida de que um dos pilares é a União Europeia. Infelizmente Corbyn tem manifestado muitas dificuldades em lidar com o Brexit e com o fracasso dos Tories na gestão do processo de separação. Esse aspecto, junto com esta campanha centrada no suposto antissemitismo estão a abrir algumas brechas no apoio ao partido. Mas, as propostas de Corbyn, de que a última foi a tributação- a cobrança de uma mais-valia - das empresas tecnológicas teimam em conduzir o debate para as verdadeiras questões (aqui e aqui ).
ACTUALIZAÇÃO. A polémica do dia acerca da "intima relação" entre "Corbyn e o antissemitismo que grassa no Labour" é apoiada numa declaração de 2013 sobre os sionistas. Declaração que terá estado na origem de uma queixa oficial contra o partido. Imparável este processo de vasculhar na memória recente e passada para encontrar "provas". Entretanto a linha de ataque centrada na "investigação" do Daily Mail foi abandonada por manifesta especulação baseada em mentiras grosseiras. Fez o seu papel a dita investigação.
Por cá, Miguel Esteves Cardoso também dedicou a Corbyn um dos seus, habitualmente excelentes, textos no Público. Diz ele que não dá mais para o Corbyn. E eu que estaria tentado a pensar que ele nunca tinha dado nada para o dito. Há uma frase que me merece destaque, que me perdoe o Miguel esta ousadia de salientar uma pequena frase entre tantas frases que se destacam:
"(...)Por isso é que [Corbyn] falhou como político: é inflexível. Triunfou recentemente por isso mesmo. Não abdica dos princípios. Defende os mais fracos. Não recebe ordens de Washington e blá blá blá(...)"
Esta campanha não se configura como um episódio passageiro destinado a marcar a agenda política britânica por uma ou duas semanas: estamos perante a mais demorada e consistente campanha política contra o Labour desde que, sob a direcção de Jeremy Corbyn, disputou as úlltimas eleições gerais e retirou a maioria absoluta aos Conservadores.
Quando das últimas eleições autárqicas tinhamos tido oportunidade de referir que, apesar da vitória do Labour, a campanha conduzida por vários sectores ligados à comunidade judaíca tinha evitado uma vitória estrondosa dos trabalhistas.Escrevi então que:
Parece que há algumas conclusões que é necessário retirar destes resultados. Em primeiro lugar a campanha contra o antissemitismo, que dominaria o Labour, foi muito eficaz. O partido de Jeremy Corbyn não foi capaz de lidar com a questão e a liderança, fortemente conservadora, da comunidade judaíca fez o resto. Os quatros círculos eleitorais com uma maior presença da comunidade são exactamente Barnet, Wandsworth, Westminter e Swindon.
O Miguel refere alguns blogues da direita mas, ainda recentemente, o Público dedicava duas páginas ao tema na sua edição do passado dia 15.08.2018. "Corbyn sob pressão para agir contra -antissemitismo no Labour", titulava o diário da Sonae. Esta noticia - com uma redacção ligeiramente diferente - está disponível online com o título " Corbyn na corda bamba, entre o apoio à Palestina e o antisemitismo".
A mudança no título não é nada inocente e entronca na questão de fundo que determina a campanha política em curso, que se organiza segundo dois eixos: por um lado promovendo a identificação das posições dos que sempre apoiaram a causa dos Palestinos, os que sempre apoiaram a luta da OLP - caso de Corbyn, mas também de gerações de dirigentes do Labour - os que defendem a solução política dos dois estados - Israel e Palestina - com uma posição de anti-semitismo; em segundo lugar colocando aqueles que criticam o estado de Israel - a propósito da sua política de ocupaçãoda Cisjordânia e do bloqueio à Faixa de Gaza, mas também da criação de um sistema de Apartheid no interior do estado de Israel, como está a acontecer com a polémica lei da Nacionalidade, promovida pela aliança entre Netanyahu e a extrema-direita judaíca - sob a acusação de serem antissemitas.
É aqui que radica, na minha modesta opinião, a recusa do Labour de subscrever na totalidade o conceito de antissemitismo promovida pela IHRA - International Holocaust Remenbrance Alliance. Na verdade não se trata de questionar a definição do conceito - por muito estúpida que ela seja como mostra o Miguel Madeira - mas um dos exemplos que o IHRA utiliza para o ilustrar. Como aqui se explica neste texto da autoria de um dos membros da comité executivo que lidera o Labour:
Afinal, apenas um dos exemplos apontados pelo IHRA é que não foi subscrito pelo Labour e por razões óbvias, já que, dessa forma, qualquer crítica à política de Israel podia ser imediatamente condenada por ser antissemitismo.
É interessante olhar para o debate entre os leitores do Guardian, para se perceber a verdadeira dimensão da questão. Nestas cartas enviadas pelos leitores há quem defenda as duas posições. E há aqueles que questionam quem tem poder para representar a comunidade judaíca, se é que ela existe.Olhemos agora para alguns factos: Em 2016 Ken Livingstone, ex-mayor de Londres e apoiante de Corbyn, fez declarações polémicas que suscitaram o repúdio da comunidade judaíca. Na edição online do Público refere-se que " o ex-autarca acabou por ser suspenso por Corbyn, acabando por se demitir em Maio". Na edição impressa esta parte foi omitida.
Podemos ver aqui que o ex-autarca de Londres - cuja carreira política pode ser parcialmente revisitada aqui - foi objecto de um processo disciplinar e suspenso, sendo essa suspensão prorrogada por um ano em 2017. Finalmente, em Maio de 2018, Livingstone decidiu deixar o partido. Essa decisão mereceu um comentário de Corbyn.
Mais recentemente uma deputada da ala conservadora dos trabalhistas, notória apoiante de Tony Blair e opositora desde sempre de Corbyn, acusou-o de ser racista e antissemita. Foi por esse motivo alvo de um processo disciplinar. Um outro ex-deputado, criticou duramente a comunidade judaíca do partido trabalhista por, segundo ele, estar a tentar minar a liderança de Corbyn aliando-se ao grupo de deputados apoiantes de Blair. Foi objecto de um processo disciplinar.
O Daily Mail, essa expressão máxima do jornalismo independente, desencantou uma imagem de Corbyn num cemitério em Tunes numa homenagem a quatro dos autores do atentado contra a delegação de Israel nos Jogos Olímpicos de Munique em 1972, que custou a vida a 11 atletas. As coisas não se passaram como o Daily Mail noticiou e Corbyn esteve em Tunes numa cerimónia que visou homenagear a memória das vitimas do bombardeamento efectuado por Israel sobre os escritórios da OLP na capital da Tunísia. Bombardeamentos israelitas que tinham sido repudiados pela senhora Teatcher, na altura primeiro-ministra inglesa. A noticia de que no local estão enterrados quatro operacionais palestinianos que, de acordo com o Público, estiveram envolvidos no atentado de Munique, não corresponde à verdade. Como foi desmentido nos dias seguintes não estão enterrados quatro operacionais no cemitério visitado por Corbyn. Estão lá dois dirigentes de topo da OLP: Salah Khalaf e Atef Bseiso. O primeiro foi o braço direito de Asser Arafat e foi assassinado pelo grupo Abu Nidal. Era um moderado, com ligações ao ocidente. Razão suficiente para ser odiado pelos israelitas. Quanto a Bseiso, igualmente assassinado nessa altura, negou sempre qualquer ligação ao atentado de Munique.
Owen Jones desmascara a hipocrisia com que se pretende atacar Corbyn a propósito do seu suposto antissemitismo e mesmo de um disparatado racismo. E deixa claro que havendo que denunicar o antissemitismo, que deve ser combatido, isso nunca pode ser um pretexto para que seja abandonada a causa do povo Palestiniano e que as torpes actuações da direita israelita, lideradas pelo tenebroso Netaniahu possam ser aceites. O Labour não pode aceitar que seja adequado manifestar cumplicidade com a violência perpetuada pelo estado de Israel, ao mesmo tempo que se condena qualquer solidariedade com o povo palestiniano.
Há um facto que resulta desta discussão: o Labour está debaixo de fogo face à proximidade ao poder e, sobretudo, face à notória viragem à esquerda do partido. O Labour de Corbyn é a maior ameaça à ordem internacionalmente estabelecida de que um dos pilares é a União Europeia. Infelizmente Corbyn tem manifestado muitas dificuldades em lidar com o Brexit e com o fracasso dos Tories na gestão do processo de separação. Esse aspecto, junto com esta campanha centrada no suposto antissemitismo estão a abrir algumas brechas no apoio ao partido. Mas, as propostas de Corbyn, de que a última foi a tributação- a cobrança de uma mais-valia - das empresas tecnológicas teimam em conduzir o debate para as verdadeiras questões (aqui e aqui ).
ACTUALIZAÇÃO. A polémica do dia acerca da "intima relação" entre "Corbyn e o antissemitismo que grassa no Labour" é apoiada numa declaração de 2013 sobre os sionistas. Declaração que terá estado na origem de uma queixa oficial contra o partido. Imparável este processo de vasculhar na memória recente e passada para encontrar "provas". Entretanto a linha de ataque centrada na "investigação" do Daily Mail foi abandonada por manifesta especulação baseada em mentiras grosseiras. Fez o seu papel a dita investigação.
Por cá, Miguel Esteves Cardoso também dedicou a Corbyn um dos seus, habitualmente excelentes, textos no Público. Diz ele que não dá mais para o Corbyn. E eu que estaria tentado a pensar que ele nunca tinha dado nada para o dito. Há uma frase que me merece destaque, que me perdoe o Miguel esta ousadia de salientar uma pequena frase entre tantas frases que se destacam:
"(...)Por isso é que [Corbyn] falhou como político: é inflexível. Triunfou recentemente por isso mesmo. Não abdica dos princípios. Defende os mais fracos. Não recebe ordens de Washington e blá blá blá(...)"
22/08/18
Uma definição idiota de antissemitismo
por
Miguel Madeira
Ultimamente têm surgido alegações (que têm sido retransmitidas em Portugal, em blogs como o Blasfémias e O Insurgente) de antissemitismo contra o líder trabalhista britânico Jeremy Corbyn.
A principal linha de ataque parece ser o Labour não ter adotado a definição de antissemitismo da Aliança Internacional de Recordação do Holocausto. Mas a verdade é que essa definição (ou, mais exatamente, a sua operacionalização) é estúpida.
Vamos lá ver em que consiste:
É antissemita "negar ao povo judeu o seu direito à auto-determinação", ou seja negar a legitimidade ao Estado de Israel? Isso faria, p.ex., de grupos judeus ortodoxos como o Neturei Karta (que acham que a existência de um Estado judeu antes da vinda do messias é uma blasfémia) antissemitas; pelo mesmo raciocínio quem fosse contra o Black Power nos EUA seria racista anti-negro, quem seja contra o referendo catalão será anti-catalão, quem se oponha à criação de um país para os ciganos será ciganofóbico, etc. etc. Em ultima instância, alguém que fosse contra a existência de estados nacionais (desde anarquistas que queiram acabar com todos os Estados até ultra-globalistas que queiram apenas um Estado mundial) seria quase automaticamente antissemita por esta definição (a título pessoal, digo desde já que, no contexto atual, sou a favor da existência do Estado de Israel, com fronteiras similares à linha de armistício de 1949; com dois povos que se odeiam, ideias como "Um Estado para dois povos" ou "Palestina Livre, do rio até ao mar" são completamente absurdas - num futuro longinquo talvez possa lá haver uma confederação multi-étnica de cantões autónomos, ms para já isso seria inviável).
E é antissemita comparar aspetos da moderna política israelita com a política nazi? Mesmo que essas comparação estejam erradas (e se percebo bem o significado da palavra "comparisons", isso nem significa dizer que são equivalentes), isso torna-as automaticamente antissemitas? Afinal, desde 1945 que fazer comparações com os nazis é quase um passatempo universal - quantos líderes internacionais têm sido o "novo Hitler"? Praticamente quase todos os presidentes dos EUA e também quase todos os presidentes de países posteriormente invadidos pelos EUA (outro clássico, além do "novo Hitler", é o "novo Munique", acerca de qualquer acordo internacional a que alguém se oponha); até há uma "lei" dizendo isso: "À medida que uma discussão online se alonga, a probabilidade de surgir uma comparação envolvendo Adolf Hitler ou os nazistas tende a 100%". No entanto, quando chega a Israel, essa comparação torna-se proibida: se as pessoas que dizem que Trump, Putin ou Khamenei são o "novo Hitler" disserem isso de Netanyau, passam automaticamente a ser antissemitas; se alguém dizer que os critérios israelitas para decidir quem é judeu são similares aos das leis de Nurumberga, é antissemita; se alguém dizer que, quando dirigentes politicos israelitas, a respeito de alguma guerra, dizem "o exército ganhou mais foi traído pelos políticos", estão a repetir a propaganda nazi da "facada nas costas", é antissemita. etc
E o grande paradoxo disto é que mais à frente a tal definição operacional até dá como exemplo de antissemitismo "Holding Jews collectively responsible for actions of the state of Israel"; ou seja, por um lado reconhecem (bem) que o Estado do Israel é uma coisa e os judeus são outra, mas, por outro, nos pontos anteriores identificam Israel com os judeus, considerando que certas opiniões sobre o Estado de Israel são antissemitas (mesmo que até sejam expressas por judeus).
A principal linha de ataque parece ser o Labour não ter adotado a definição de antissemitismo da Aliança Internacional de Recordação do Holocausto. Mas a verdade é que essa definição (ou, mais exatamente, a sua operacionalização) é estúpida.
Vamos lá ver em que consiste:
[Vermelhos meus]Adopt the following non-legally binding working definition of antisemitism:
“Antisemitism is a certain perception of Jews, which may be expressed as hatred toward Jews. Rhetorical and physical manifestations of antisemitism are directed toward Jewish or non-Jewish individuals and/or their property, toward Jewish community institutions and religious facilities.”
To guide IHRA in its work, the following examples may serve as illustrations:
Manifestations might include the targeting of the state of Israel, conceived as a Jewish collectivity. However, criticism of Israel similar to that leveled against any other country cannot be regarded as antisemitic. Antisemitism frequently charges Jews with conspiring to harm humanity, and it is often used to blame Jews for “why things go wrong.” It is expressed in speech, writing, visual forms and action, and employs sinister stereotypes and negative character traits.
Contemporary examples of antisemitism in public life, the media, schools, the workplace, and in the religious sphere could, taking into account the overall context, include, but are not limited to:
Antisemitic acts are criminal when they are so defined by law (for example, denial of the Holocaust or distribution of antisemitic materials in some countries).
- Calling for, aiding, or justifying the killing or harming of Jews in the name of a radical ideology or an extremist view of religion.
- Making mendacious, dehumanizing, demonizing, or stereotypical allegations about Jews as such or the power of Jews as collective — such as, especially but not exclusively, the myth about a world Jewish conspiracy or of Jews controlling the media, economy, government or other societal institutions.
- Accusing Jews as a people of being responsible for real or imagined wrongdoing committed by a single Jewish person or group, or even for acts committed by non-Jews.
- Denying the fact, scope, mechanisms (e.g. gas chambers) or intentionality of the genocide of the Jewish people at the hands of National Socialist Germany and its supporters and accomplices during World War II (the Holocaust).
- Accusing the Jews as a people, or Israel as a state, of inventing or exaggerating the Holocaust.
- Accusing Jewish citizens of being more loyal to Israel, or to the alleged priorities of Jews worldwide, than to the interests of their own nations.
- Denying the Jewish people their right to self-determination, e.g., by claiming that the existence of a State of Israel is a racist endeavor.
- Applying double standards by requiring of it a behavior not expected or demanded of any other democratic nation.
- Using the symbols and images associated with classic antisemitism (e.g., claims of Jews killing Jesus or blood libel) to characterize Israel or Israelis.
- Drawing comparisons of contemporary Israeli policy to that of the Nazis.
- Holding Jews collectively responsible for actions of the state of Israel.
Criminal acts are antisemitic when the targets of attacks, whether they are people or property – such as buildings, schools, places of worship and cemeteries – are selected because they are, or are perceived to be, Jewish or linked to Jews.
Antisemitic discrimination is the denial to Jews of opportunities or services available to others and is illegal in many countries.
É antissemita "negar ao povo judeu o seu direito à auto-determinação", ou seja negar a legitimidade ao Estado de Israel? Isso faria, p.ex., de grupos judeus ortodoxos como o Neturei Karta (que acham que a existência de um Estado judeu antes da vinda do messias é uma blasfémia) antissemitas; pelo mesmo raciocínio quem fosse contra o Black Power nos EUA seria racista anti-negro, quem seja contra o referendo catalão será anti-catalão, quem se oponha à criação de um país para os ciganos será ciganofóbico, etc. etc. Em ultima instância, alguém que fosse contra a existência de estados nacionais (desde anarquistas que queiram acabar com todos os Estados até ultra-globalistas que queiram apenas um Estado mundial) seria quase automaticamente antissemita por esta definição (a título pessoal, digo desde já que, no contexto atual, sou a favor da existência do Estado de Israel, com fronteiras similares à linha de armistício de 1949; com dois povos que se odeiam, ideias como "Um Estado para dois povos" ou "Palestina Livre, do rio até ao mar" são completamente absurdas - num futuro longinquo talvez possa lá haver uma confederação multi-étnica de cantões autónomos, ms para já isso seria inviável).
E é antissemita comparar aspetos da moderna política israelita com a política nazi? Mesmo que essas comparação estejam erradas (e se percebo bem o significado da palavra "comparisons", isso nem significa dizer que são equivalentes), isso torna-as automaticamente antissemitas? Afinal, desde 1945 que fazer comparações com os nazis é quase um passatempo universal - quantos líderes internacionais têm sido o "novo Hitler"? Praticamente quase todos os presidentes dos EUA e também quase todos os presidentes de países posteriormente invadidos pelos EUA (outro clássico, além do "novo Hitler", é o "novo Munique", acerca de qualquer acordo internacional a que alguém se oponha); até há uma "lei" dizendo isso: "À medida que uma discussão online se alonga, a probabilidade de surgir uma comparação envolvendo Adolf Hitler ou os nazistas tende a 100%". No entanto, quando chega a Israel, essa comparação torna-se proibida: se as pessoas que dizem que Trump, Putin ou Khamenei são o "novo Hitler" disserem isso de Netanyau, passam automaticamente a ser antissemitas; se alguém dizer que os critérios israelitas para decidir quem é judeu são similares aos das leis de Nurumberga, é antissemita; se alguém dizer que, quando dirigentes politicos israelitas, a respeito de alguma guerra, dizem "o exército ganhou mais foi traído pelos políticos", estão a repetir a propaganda nazi da "facada nas costas", é antissemita. etc
E o grande paradoxo disto é que mais à frente a tal definição operacional até dá como exemplo de antissemitismo "Holding Jews collectively responsible for actions of the state of Israel"; ou seja, por um lado reconhecem (bem) que o Estado do Israel é uma coisa e os judeus são outra, mas, por outro, nos pontos anteriores identificam Israel com os judeus, considerando que certas opiniões sobre o Estado de Israel são antissemitas (mesmo que até sejam expressas por judeus).
21/08/18
Relatos da Checoslováquia, há 50 anos
por
Miguel Madeira
O mais velho dos que ali estávamos, que conhecera muitas coisas, ocupara cargos de grande responsabilidade, quebrou o silêncio para contar a história dum rapaz soviético que parou o seu tanque num arrabalde industrial de Praga, a 28 de Agosto de 1968 pela manhã, quando se lhe deparou a barreira humana que em russo lhe gritava que regressasse a casa. «Da retaguarda da coluna assim bloqueada saiu um oficial que interpelou o rapaz instalado no alto da sua torre; e, como este, para explicar o seu gesto, lhe apontasse a multidão, abateu-o a frio. A coluna avançou. A multidão afastou-se, mas recolheu o corpo do rapaz. As gentes do subúrbio enterraram-no como se fosse um dos seus. É isto o internacionalismo proletário...»
(...)
Uma mulher sem idade explica que a sua filha se correspondia, segundo o costume vigente - costume e regra também - com uma estudante soviética da sua idade. Após a invasão, a soviética não disse mais nada. A jovem checa insiste, afim de saber o que pensava aquela que ela continuava a considerar ainda como sua amiga. Finalmente chega uma carta, mas com uma linguagem que parecia escrita por uma estranha: vós mataste o meu irmão aquartelado em tal sítio. Vós sois contra-revolucionários, verdadeiros fascistas, etc. Ora, justamente, ninguém na Checoslováquia matara soldados soviéticos (...).
A jovem checa e os seus pais quiseram ficar com a consciência tranquila. O endereço do aquartelamento era exacto. E , com grande espanto seu, lá encontraram o irmão de excelente saúde. Começaram a gozar a alegria do happy end e a rapriguinha pensa na alegria da sua amiga soviética quando souber que encontraram o irmão. Mas o rapaz parece não perceber nada. Lê e relê a carta da sua irmã e depois, subitamente, empalidece e vai-se abaixo. «Mas isto significa que nunca mais regressarei a minha casa. Nunca. É por isso que enviaram já à minha familia o aviso da minha morte...»
(...)
A mulher sem idade voltou a tomar a palavra. «Tenho um amigo ginecólogo. Um dia, os Soviéticos vieram requisitá-la ao seu hospital. Julgou que se tratava de um engano, pois o Exército Vermelho é, evidentemente [sic], formado por homens.Mas não era um engano. Teve de ir inspecionar o bordel militar. O meu amigo também é um velho comunista. Então exclama: «Um bordel? Mas que bordel? E para quem?» O oficial responde pausadamente que não se pode deixar a tropa meter-se com as mulheres da terra, pois isso seria politicamente inconveniente. E aí vai o nosso ginecólogo no exercício da sua função, um pouco curioso, apesar de tudo, por saber que espécie de mulheres se prostituem assim oficialmente na União Soviética. Encontra profissionais que foram mudadas da sua zona de trabalho, depois, de repente, encontra-se com estudantes de Leninegrado que foram presas por ocasião das manifestações de 1967 [Nesse ano houve grandes manifestações universitárias tanto na U.R.S.S. como em Varsóvia e em Praga]. Como eram presas de direito comum, foram deportadas para aqui com os outros...»
Perante isto, que se pode dizer que não seja nem imbecil nem cúmplice? Toda a gente sabe, desde Hegel e Marx, que a relação de escravo e senhor infecta toda a vida. Ora o Partido tornou-se o Partido dos senhores (...). Todos nós conhecemos, entre os nossos, pessoas capazes de matar um rapaz que desobedece na torre do seu tanque, ou de deportar um regimento inteiro contaminado por ideias perversas. Mas o caso das estudantes revoltadas e condenadas ao bordel já é menos evidente. Mas há quanto tempo esta desigualdade e esta repressão reinam na U.R.S.S.? Mesmo que tomemos 1930 como o ano da viragem, já faz trinta e nove anos neste Primavera! foi preciso menos tempo para fabricar SS num país que passava por civilizado, com belas maiorias de esquerda antes de 1933.
(...)
O velho homem cala-se. É que ele andou nas viaturas negras de cortinas fechadas que atravessavam todos os semáforos vermelhos, recebeu os sobrescritos secretos e a moeda especial para os armazéns reservados. Ele conhece o anverso feudal do Partido-Estado socialista e do exército de servidores e de policias que lhe impedem os acessos e lhe dissimulam as saídas. Depois excluiram-no do paraíso, mas sem o esmagarem na engrenagem das torturas, sem confissões falsas, sem processo. E ele calou-se até à Primavera. Avaliará ele agora o peso do seu silêncio?
Acreditei na Manhã, Pierre Daix
(...)
Uma mulher sem idade explica que a sua filha se correspondia, segundo o costume vigente - costume e regra também - com uma estudante soviética da sua idade. Após a invasão, a soviética não disse mais nada. A jovem checa insiste, afim de saber o que pensava aquela que ela continuava a considerar ainda como sua amiga. Finalmente chega uma carta, mas com uma linguagem que parecia escrita por uma estranha: vós mataste o meu irmão aquartelado em tal sítio. Vós sois contra-revolucionários, verdadeiros fascistas, etc. Ora, justamente, ninguém na Checoslováquia matara soldados soviéticos (...).
A jovem checa e os seus pais quiseram ficar com a consciência tranquila. O endereço do aquartelamento era exacto. E , com grande espanto seu, lá encontraram o irmão de excelente saúde. Começaram a gozar a alegria do happy end e a rapriguinha pensa na alegria da sua amiga soviética quando souber que encontraram o irmão. Mas o rapaz parece não perceber nada. Lê e relê a carta da sua irmã e depois, subitamente, empalidece e vai-se abaixo. «Mas isto significa que nunca mais regressarei a minha casa. Nunca. É por isso que enviaram já à minha familia o aviso da minha morte...»
(...)
A mulher sem idade voltou a tomar a palavra. «Tenho um amigo ginecólogo. Um dia, os Soviéticos vieram requisitá-la ao seu hospital. Julgou que se tratava de um engano, pois o Exército Vermelho é, evidentemente [sic], formado por homens.Mas não era um engano. Teve de ir inspecionar o bordel militar. O meu amigo também é um velho comunista. Então exclama: «Um bordel? Mas que bordel? E para quem?» O oficial responde pausadamente que não se pode deixar a tropa meter-se com as mulheres da terra, pois isso seria politicamente inconveniente. E aí vai o nosso ginecólogo no exercício da sua função, um pouco curioso, apesar de tudo, por saber que espécie de mulheres se prostituem assim oficialmente na União Soviética. Encontra profissionais que foram mudadas da sua zona de trabalho, depois, de repente, encontra-se com estudantes de Leninegrado que foram presas por ocasião das manifestações de 1967 [Nesse ano houve grandes manifestações universitárias tanto na U.R.S.S. como em Varsóvia e em Praga]. Como eram presas de direito comum, foram deportadas para aqui com os outros...»
Perante isto, que se pode dizer que não seja nem imbecil nem cúmplice? Toda a gente sabe, desde Hegel e Marx, que a relação de escravo e senhor infecta toda a vida. Ora o Partido tornou-se o Partido dos senhores (...). Todos nós conhecemos, entre os nossos, pessoas capazes de matar um rapaz que desobedece na torre do seu tanque, ou de deportar um regimento inteiro contaminado por ideias perversas. Mas o caso das estudantes revoltadas e condenadas ao bordel já é menos evidente. Mas há quanto tempo esta desigualdade e esta repressão reinam na U.R.S.S.? Mesmo que tomemos 1930 como o ano da viragem, já faz trinta e nove anos neste Primavera! foi preciso menos tempo para fabricar SS num país que passava por civilizado, com belas maiorias de esquerda antes de 1933.
(...)
O velho homem cala-se. É que ele andou nas viaturas negras de cortinas fechadas que atravessavam todos os semáforos vermelhos, recebeu os sobrescritos secretos e a moeda especial para os armazéns reservados. Ele conhece o anverso feudal do Partido-Estado socialista e do exército de servidores e de policias que lhe impedem os acessos e lhe dissimulam as saídas. Depois excluiram-no do paraíso, mas sem o esmagarem na engrenagem das torturas, sem confissões falsas, sem processo. E ele calou-se até à Primavera. Avaliará ele agora o peso do seu silêncio?
Acreditei na Manhã, Pierre Daix
20/08/18
Grécia. Porque celebra Centeno?
por
José Guinote
A Grécia viu chegar ao fim a sucessão de resgates que desde 2010 impuseram ao país uma austeridade violenta e muitas vezes criminosa. Os custos sociais desta imposição liderada pela CE, pelo BCE e pelo FMI, foram terríveis e a dimensão do tsunami que varreu a organização social e política gregas apenas será totalmente apercebida ao longo dos próximos anos.
A austeridade imposta aos gregos representou a página mais negra vivida pelo país numa situação de paz. Um página em que os gregos mais pobres e os da classe média suportaram sobre os seus frágeis ombros todos os sacrifícios impostos pela tecnocracia dominante no Eurogrupo e nas instituições europeias.
Coube a um português, Mário Centeno de seu nome, liderar o Eurogrupo no momento em que este procedimento chega ao fim. Mário Centeno mostrou no breve discurso que proferiu para assinalar o momento de que massa é feito. Estamos perante alguém que não fica a perder no confronto com o seu antecessor, o inaceitável Dijsselbloem. Um defensor fervoroso da austeridade e dos seus efeitos benéficos. Diga, a partir deste momento, Centeno o que disser, diga António Costa o que disser, digam os dirigentes socialistas o que disserem, há uma verdade que emerge: Centeno acredita piamente nas virtudes da austeridade e no tratamento imposto a países como a Grécia e Portugal.
Fosse o primeiro ministro Pedro Passos Coelho e Centeno o seu ministro das finanças -não há uma única razão política ou ideológica que pudesse impedir esta possibilidade - e este exacto discurso, neste momento preciso, provocaria uma generalizada repulsa, e a exigência por parte de toda a esquerda - PS incluído - da demissão do ministro.
Separar Centeno e a sua política interna desta triste figura que agora fez é um exercício de puro cinismo.
O resgate da Grécia foi um colossal fracasso. Inicialmente era suposto serem necessários dois anos para que o país regressasse aos mercados. Precisou de oito e de mais dois resgates. Estamos perante uma trágica história marcada pela incompetência dos burocratas europeus, pelo desprezo dos interesses das populações, pelo desprezo pela democracia no espaço europeu. Uma história em que os interesses do sistema financeiro como um todo prevaleceram como o novo objectivo comum da política europeia. Com o funcionamento da democracia amordaçado pelo dogma austeritário, com os estados remetidos a um papel de meros serventes dos mercados, o resgate da Grécia simboliza, ironicamente, a colocação, pelos centenos da europa, de uma última pedra no túmulo da ideia da Europa dos povos, da solidariedade e do desenvolvimento integrado.
Centeno com o seu breve discurso anunciou de forma festiva o fim da Europa dos cidadãos e a emergência da Europa dos poderosos. Cada um é para o que presta, como diria o seu padrinho, o poderoso Schäuble.
A austeridade imposta aos gregos representou a página mais negra vivida pelo país numa situação de paz. Um página em que os gregos mais pobres e os da classe média suportaram sobre os seus frágeis ombros todos os sacrifícios impostos pela tecnocracia dominante no Eurogrupo e nas instituições europeias.
Coube a um português, Mário Centeno de seu nome, liderar o Eurogrupo no momento em que este procedimento chega ao fim. Mário Centeno mostrou no breve discurso que proferiu para assinalar o momento de que massa é feito. Estamos perante alguém que não fica a perder no confronto com o seu antecessor, o inaceitável Dijsselbloem. Um defensor fervoroso da austeridade e dos seus efeitos benéficos. Diga, a partir deste momento, Centeno o que disser, diga António Costa o que disser, digam os dirigentes socialistas o que disserem, há uma verdade que emerge: Centeno acredita piamente nas virtudes da austeridade e no tratamento imposto a países como a Grécia e Portugal.
Fosse o primeiro ministro Pedro Passos Coelho e Centeno o seu ministro das finanças -não há uma única razão política ou ideológica que pudesse impedir esta possibilidade - e este exacto discurso, neste momento preciso, provocaria uma generalizada repulsa, e a exigência por parte de toda a esquerda - PS incluído - da demissão do ministro.
Separar Centeno e a sua política interna desta triste figura que agora fez é um exercício de puro cinismo.
O resgate da Grécia foi um colossal fracasso. Inicialmente era suposto serem necessários dois anos para que o país regressasse aos mercados. Precisou de oito e de mais dois resgates. Estamos perante uma trágica história marcada pela incompetência dos burocratas europeus, pelo desprezo dos interesses das populações, pelo desprezo pela democracia no espaço europeu. Uma história em que os interesses do sistema financeiro como um todo prevaleceram como o novo objectivo comum da política europeia. Com o funcionamento da democracia amordaçado pelo dogma austeritário, com os estados remetidos a um papel de meros serventes dos mercados, o resgate da Grécia simboliza, ironicamente, a colocação, pelos centenos da europa, de uma última pedra no túmulo da ideia da Europa dos povos, da solidariedade e do desenvolvimento integrado.
Centeno com o seu breve discurso anunciou de forma festiva o fim da Europa dos cidadãos e a emergência da Europa dos poderosos. Cada um é para o que presta, como diria o seu padrinho, o poderoso Schäuble.
14/08/18
A entrevista ao Expresso de António Costa. A ideologia algures entre o Roblismo e o temor pró-austeritário da senhora comerciante de Viseu
por
José Guinote
António Costa deu uma extensa entevista ao Expresso do passado fim de semana. Uma extensa entrevista em pleno estio de que pouco ou nada se aproveitou. António Costa revelou ao mundo a importância que teve a conversa com uma senhora comerciante de Viseu. Essa conversa permitiu-lhe antecipar a derrota nas eleições de 2015. Conversa que terá sido uma revelação: Costa percebeu a necessidade de descansar as pessoas, deixar claro que os ganhos obtidos com a austeridade não iriam ser hipotecados por uma governação aventureira. Costa não disse mas todos nós entendemos que Mário Centeno é o alter ego de todas as todas as pessoas que pensam como a senhora comerciante de Viseu. Foi por isso que o chamou para o Governo, para as poder sossegar.
Percebida a mensagem da comerciante viseense, feita a necessária clarificação ideológica, Costa acha estar agora melhor colocado para conseguir a maioria absoluta que lhe fugiu em 2015.
Para que uma Geringonça rejuvenescida se possa afirmar, António Costa apenas identifica uma única condição a satisfazer: um reforço da posição do PS. Nada de novo. Em 2015 Costa recorreu ao BE e ao PCP para criar as condições de viabilização de um Governo do PS. Conseguiu esse objectivo.
Agora, com o reforço do PS - a que Costa aspira e que de certo irá obter -, uma geringonça full sized será dispensável. Mas, Costa, magnânimo, promete ainda assim uma geringonça que, naturalmente, não assuste a senhora comerciante de Viseu.
Costa mostrou-se impiedoso com Robles e com o "Roblismo", a variante especulativa da actuação autárquica do BE na capital. Costa não esquece que o PS perdeu a maioria absoluta em Lisboa em grande parte devido ao crescimento do BE. O Roblismo é uma oportunidade que Costa não podia perder. Á falta de uma senhora comerciante de Lisboa avisada sobre estas coisas, define ele próprio as condições que lhe permitirão recuperar o precioso eleitorado da capital, que tinha delegado no BE a liderança do combate contra a especulação. Costa já afirmara que recusava o turismo enquanto agente transformador das cidades em parques de diversões. Mais de 2400 milhões de euros para garantir a coisa. Tendo Robles cedido ao vício é Costa, e não Medina - que carece do BE para a gestão corrente - a mostrar como se combate a especulação. Um único parágrafo basta para dizer tudo. Um parágrafo com a máxima generalidade, com uma defesa intransigente do arrendamento acessível - seja lá isso o que for e acessível a quem- e um irresistível, diz ele, apelo fiscal aos senhorios para arrendarem abaixo do preço do mercado.
Não fosse a momentânea atrapalhação causada pela captura da virtude pelo vício e o BE poderia fazer uma de duas coisas: aplaudir o que Costa disse sobre as políticas públicas urbanas na cidade e o seu compromisso com uma política de habitação que combata a especulação; denunciar a falta de clareza e a falta de ambição de uma política que não responde à liderança do mercado especulativo e ao seu potencial destrutivo das cidades.
Assim, nenhum comerciante, como a senhora de Viseu, poderá ficar preocupado com a falta de clareza nos conceitos utilizados, com a ausência de calendarização e de financiamento da intervenção prevista, com a aparente morosidade na execução das políticas, nestes tempos de velocidade estonteante. Afinal, vai tudo continuar no mesmo caminho, na mesma dinâmica, ou na falta dela, embora possa parecer que os desiquilibrios estão a ser contrariados. Ver-se-á daqui a uns anos, embora se note todos os dias, com ou sem maioria absoluta, isto é, com ou sem geringonça.
Percebida a mensagem da comerciante viseense, feita a necessária clarificação ideológica, Costa acha estar agora melhor colocado para conseguir a maioria absoluta que lhe fugiu em 2015.
Para que uma Geringonça rejuvenescida se possa afirmar, António Costa apenas identifica uma única condição a satisfazer: um reforço da posição do PS. Nada de novo. Em 2015 Costa recorreu ao BE e ao PCP para criar as condições de viabilização de um Governo do PS. Conseguiu esse objectivo.
Agora, com o reforço do PS - a que Costa aspira e que de certo irá obter -, uma geringonça full sized será dispensável. Mas, Costa, magnânimo, promete ainda assim uma geringonça que, naturalmente, não assuste a senhora comerciante de Viseu.
Costa mostrou-se impiedoso com Robles e com o "Roblismo", a variante especulativa da actuação autárquica do BE na capital. Costa não esquece que o PS perdeu a maioria absoluta em Lisboa em grande parte devido ao crescimento do BE. O Roblismo é uma oportunidade que Costa não podia perder. Á falta de uma senhora comerciante de Lisboa avisada sobre estas coisas, define ele próprio as condições que lhe permitirão recuperar o precioso eleitorado da capital, que tinha delegado no BE a liderança do combate contra a especulação. Costa já afirmara que recusava o turismo enquanto agente transformador das cidades em parques de diversões. Mais de 2400 milhões de euros para garantir a coisa. Tendo Robles cedido ao vício é Costa, e não Medina - que carece do BE para a gestão corrente - a mostrar como se combate a especulação. Um único parágrafo basta para dizer tudo. Um parágrafo com a máxima generalidade, com uma defesa intransigente do arrendamento acessível - seja lá isso o que for e acessível a quem- e um irresistível, diz ele, apelo fiscal aos senhorios para arrendarem abaixo do preço do mercado.
Não fosse a momentânea atrapalhação causada pela captura da virtude pelo vício e o BE poderia fazer uma de duas coisas: aplaudir o que Costa disse sobre as políticas públicas urbanas na cidade e o seu compromisso com uma política de habitação que combata a especulação; denunciar a falta de clareza e a falta de ambição de uma política que não responde à liderança do mercado especulativo e ao seu potencial destrutivo das cidades.
Assim, nenhum comerciante, como a senhora de Viseu, poderá ficar preocupado com a falta de clareza nos conceitos utilizados, com a ausência de calendarização e de financiamento da intervenção prevista, com a aparente morosidade na execução das políticas, nestes tempos de velocidade estonteante. Afinal, vai tudo continuar no mesmo caminho, na mesma dinâmica, ou na falta dela, embora possa parecer que os desiquilibrios estão a ser contrariados. Ver-se-á daqui a uns anos, embora se note todos os dias, com ou sem maioria absoluta, isto é, com ou sem geringonça.
13/08/18
Opressão estatal versus social
por
Miguel Madeira
Uma coisa que noto (por exemplo, aqui) é que, a respeito dos EUA, as mesmas pessoas conseguem simultaneamente dizer que são os "progressistas"/"politicamente corretos"/"guerreiros da justiça social" que dominam (apesar de neste momento os Republicanos controlarem os três ramos do governo - o raciocínio implícito parece ser que o "poder social" que os "progressistas" têm, via meios de comunicação, universidades e grandes empresas tecnológicas, é mais importante que o poder político que os conservadores têm), e que as minorias étnicas não são vítimas de discriminação, porque as leis que as discriminavam contra foram abolidas e pelo contrário até há políticas públicas discriminando a favor delas (ou seja, só o que interessa são as leis e o que o Estado faz; qualquer discriminação que possa existir a nível da sociedade civil é irrelevante).
Note-se que embora isto tenha a ver com uma questão dos EUA, não é raro encontrar, nos blogs e redes sociais, encontrar portugueses fazendo raciocínios nessa linha.
Note-se que embora isto tenha a ver com uma questão dos EUA, não é raro encontrar, nos blogs e redes sociais, encontrar portugueses fazendo raciocínios nessa linha.
11/08/18
Finalmente, alguém que resiste e protesta contra o marxismo cultural e o politicamente correto
por
Miguel Madeira
Milhares de pessoas manifestaram-se hoje, na capital da Tunísia, contra as reformas sociais propostas por uma comissão presidencial, que incluem a igualdade de direitos de herança entre mulheres e homens e a despenalização da homossexualidade.
“Defenderemos o islão com o nosso sangue”, gritaram os manifestantes, homens e mulheres, empunhando o Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos.
“Defenderemos o islão com o nosso sangue”, gritaram os manifestantes, homens e mulheres, empunhando o Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos.
03/08/18
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